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domingo, 31 de março de 2013

A parábola e a medicina





Meu pai, José Lobato da Costa (o apelido dele era Zizo), foi um abnegado trabalhador da saúde pública. 

Na década de 1960, ele chegou a exercer o cargo de Diretor do Departamento Estadual da Criança (sim, existia um departamento só para as crianças) na então Secretaria Estadual de Saúde e Bem Estar  Social (sim! existia uma secretaria do bem estar social... mas isto foi antes da turma neoliberal decretar que o bem estar era uma coisa maldita).

Zizo saiu do departamento por ter trombado com o secretário da pasta, por conta da distribuição de umas máquinas de costura para clubes de mães (esta era a política pública da época) que foi feita sem comunicar o secretário que, evidentemente, queria ter cacarejado em cima do ovo posto por outrem.

Conto esta história para exemplificar o quanto algumas coisas mudaram nestas décadas... enquanto outras não mudaram nada.

Se compararmos as nossas ações na área da saúde com a imagem de uma parábola, poderíamos descrever as áreas onde avançamos e onde estacionamos. 

Comecemos pelo início da curva:

Não mudou quase nada o modo de fazer política, posto que continuamos cacarejando sobre os ovos de outrem (e, pior, trocamos os nomes dos ovos a ser cacarejados)... 

Subindo mais um pouco, podemos constatar que mudaram muito as políticas públicas. Hoje em dia as nossas políticas vão muito mais além do que distribuir máquinas de costura, temos a o sistema universal de saúde, as estratégias de atenção primária, a cobertura vacinal universal ampliada e diversificada, a ampliação universal do acesso...

No ápice da parábola, está o avanço tecnológico. Os avanços em aquisição de tecnologia são inequívocos. Quando eu me formei, lá se vão pouco mais de 35 anos, fui fazer a minha residência no Hospital dos Servidores do RJ. Fui para lá porque no HSE existia uma das primeiras UTI's neonatais do país. Naqueles tempos, manter um pacientinho entubado em respiração assistida era uma façanha. Tínhamos como grande avanço o "scalp nº 27" para puncionar veias em recém-natos prematuros de... 1000 gramas (hoje em dia conseguimos manter vivos, viáveis e sem sequelas bebês de quase a metade deste peso). 

Sem dúvida, a tecnologia é o ápice da curva.

Descendo pelo outro lado da parábola, temos a Humanização. 

Certamente avançamos nas questões da humanização da atenção, mas - certamente - não avançamos o necessário. Ainda deixamos a desejar na transparência, na atenção aos doentes da saúde mental e dependentes de drogas, no acolhimento nas nossas unidades de saúde e - em especial - na atenção aos nossos irmãos criticamente enfermos internados em UTI.

Por fim, bem no rabicho da curva, ficam as questões referentes a bioética, aos direitos humanos e a sua interface com o emprego da tecnologia. 

Temos nos recusado a discutir as questões que se referem aos limites da tecnologia, ao direito humano pela "boa morte", a eutanásia, a distanásia e a ortotanásia. 

Nós médicos, "PhDeuses" que somos, nos furtamos a abrir estes temas diante de nossos pacientes e suas famílias. Afinal, o cidadão comum nos tem na conta de oniscientes e onipotentes e nós adoramos cultivar esta fama...

Em 2006 o CFM emitiu uma resolução sobre o tema (Resolução 1805/2006) e posteriormente a complementou com a resolução 1.995/2012 

Pelo que tenho lido e ouvido por aí, as questões importantíssimas abordadas nos dois diplomas do CFM não alcançaram a necessária e devida publicidade e divulgação na sociedade.

Diante dos acontecimentos recentes, temos que reconhecer que a discussão está colocada e - NÃO PODE FICAR RESTRITA AO SEIO DAS CORPORAÇÕES. 

Esta não é uma discussão exclusiva de sábios e iniciados. Esta é uma discussão da sociedade,



Um comentário:

  1. Mario, sinto escrever, como sempre, comentários tão estensos, quando não... inúteis. Mas, arrisco. A democracia 'blogana' permite devaneios de todos os tipos e por todos(as) os(as) loucos(as).
    Sua crônica é permeada de grande sensibilidade e clareza, mas não teme e nem tergiversa ao analisar o desenvolvimento da medicina e da prática médica através dos tempos. Poderia ser impressa em "Opinião" de qualquer jornal brasileiro.
    Eu, por minha vez repleto de limitações, creio que a medicina, ao colocarmos na balança os avanços e as perdas/retrocessos, não sei se ao final teríamos, como vc apresenta graficamente, uma curva normal de distribuição.
    Ganhou-se muito em tecnologia, sem dúvida, mas para uma pequena parcela que dela pode usufruir; ganhou-se muito em novas drogas, mas ainda muitos necessitam judicializar o direito às mesmas; ganhou-se muito em medicina, agora baseada em evidências clínicas e epidemiológicas, mas a prática mercantil, mesmo no interior do SUS é perversa e presente. Não é incomum auditores, como você, se depararem com queixas de cidadãos submetidos à seguinte decisão, difícil para o doente: "o SUS oferece o stent "x", mas não é dos melhores para o seu caso. Podemos fazer com o stent "y", mas o senhor terá que pagar por ele!".
    A medicina baseada no sujeito, na pessoa integral e apoiada por fantásticas inovações tecnológicas perde espaço desproporcionalmente em relação à medicina do corpo em partes, dos exames complementares desnecessários e que tornam a vida de pacientes uma via-crucis e o financiamento do poder público inviável.
    Marshall Berman, citando um breve trecho do Manifesto Comunista – “Tudo que é Sólido Desmancha no Ar” -, cita um trecho de Marx em que ele coloca como fato básico da vida moderna ela ser radicalmente contraditória em essência:
    “De um lado, tiveram acesso à vida forças industriais e científicas de que nenhuma época anterior, na história da humanidade, chegara a suspeitar. De outro lado, estamos diante de sintomas de decadência que ultrapassam em muito os horrores dos últimos tempos do Império Romano. Em nossos dias, tudo parece estar impregnado do seu contrário. O maquinário, dotado do maravilhoso poder de amenizar e aperfeiçoar o trabalho humano, só faz, como se observa, sacrificá-lo e sobrecarregá-lo. As mais avançadas fontes de saúde, graças a uma misteriosa distorção, tornaram-se fontes de penúria. As conquistas da arte parecem ter sido conseguidas com a perda do caráter. Na mesma instância em que a humanidade domina a natureza, o homem parece escravizar-se a outros homens ou à sua própria infâmia. Até a pura luz da ciência parece incapaz de brilhar senão no escuro pano de fundo da ignorância. Todas as nossas invenções e progressos parecem dotar de vida intelectual às forças materiais, estupidificando a vida humana ao nível da força material”.
    Talvez Cacaso, poeta nosso, tenha se inspirado no materialismo marxista ao escrever as Logias e analogias:
    No Brasil a medicina vai bem
    mas o doente vai mal
    Qual o segredo profundo
    Desta ciência original?
    É banal: certamente
    Não é o paciente
    Que acumula capital".

    Assim, sinto, mas acho que a curva de distribuição, apesar dos avanços inegáveis, tende a pender para perdas (-1 > +1), pelo menos para a maioria dos habitantes do nosso planetinha Terra.
    Abraços prolixos....
    Antonio Carlos Nascimento.

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