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quinta-feira, 5 de setembro de 2013

SUS: papéis e opções da sociedade e Estado

Revista Radis via Blog do CEBES

 
Para analisar e propor sobre nossa política de saúde nos dias de hoje julgo fundamental lembrar a síntese das raízes do SUS nos anos 70 e 80, quando os movimentos da Reforma Sanitária, no bojo das lutas políticas e sociais pela democratização do Estado, iniciaram a formulação das diretrizes da universalidade, integralidade, igualdade e descentralização.
 
Nessas duas décadas avançaram iniciativas de atenção primária à saúde principalmente nas periferias urbanas, com grande impacto de inclusão social e adesão da população, o que refletia na pronunciada queda da mortalidade infantil e das doenças imunopreveníveis, como poliomielite e sarampo. Eram formuladas as bases no novo modelo de atenção à saúde com foco nas necessidades e direitos de cidadania de toda a população e a uma atenção básica de fácil acesso, universal e capacitada para resolver acima de 80% das necessidades de saúde.
 
A força social e política dessa mobilização cresceu ao ponto de conseguir amplo debate e aprovação na Assembleia Nacional Constituinte, em 1987 e 1988, com base nas experiências nacionais então em curso, respaldadas pelo modelo europeu de sistemas públicos de saúde que incorpora o Canadá, Japão e outros países. Aprovada a Constituição, o desafio era sair do modelo vigente de atenção à saúde, voltado ao atendimento de demanda, com procedimentos diagnósticos e terapêuticos predominantemente especializados, eletivos e de urgência, remunerados por tabela de valores, modelo este organizado com hegemonia dos interesses da oferta: indústria de medicamentos, equipamentos e demais insumos diagnósticos e terapêuticos, os prestadores de serviços laboratoriais e hospitalares e parte dos profissionais.
 
A partir dos anos 90 começa a verificar-se que a parcela federal no financiamento público da saúde prossegue evidente retração em relação à parcela municipal/estadual: cai de 75% em 1980 para 46% em 2012, obrigando a elevação de 25% para 54% na outra parcela. A parcela federal nem sequer acompanhou a retenção federal superior a 60% da receita tributária, e contribuiu em 2011 com somente 47% do financiamento do SUS. Segundo levantamento da OMS, em 2008 o gasto público do nosso país com Saúde representava 3,7% do PIB, 44% do gasto total e 385 dólares públicos per capita padronizados pelo poder de compra.
 
No mesmo levantamento, os 15 países com sistemas públicos de saúde mais responsáveis apresentavam respectivamente 7,1%, 75% e 2.530. Esta comparação permanece a mesma, e ficamos atrás inclusive de Uruguai, Argentina, Chile e Costa Rica. Não por outro motivo, foi política de Estado o descumprimento da recomendação constitucional de 30% do Orçamento da Seguridade Social (1990), a retirada do Fundo Previdenciário da base de cálculo para o SUS (1993), o caráter substitutivo da CPMF (1996), a parcela federal segundo a VNP (EC-29/2000) e Lei 141/2012).
 
Somente esse drástico subfinanciamento barra qualquer pretensão de implementação das diretrizes constitucionais e de novo modelo de atenção à saúde: o consequente desinvestimento e a limitação de expansão do pessoal da saúde pela Lei da Responsabilidade Fiscal coloca o gestor público como comprador dependente do mercado, de 92% dos exames laboratoriais, 65% das hospitalizações e mais de 60% do pessoal de saúde, com promiscuidade incontrolável dos interesses públicos e privados. Como se não bastasse, verificou-se simultaneamente o crescimento de subvenções públicas federais ao mercado de planos privados de saúde: somente a renúncia fiscal no IRPJ e IRPF correspondia a quase 23% do gasto do Ministério da Saúde em 2012, ou perto de 10% do faturamento, ou 160% do lucro líquido declarado do conjunto de todas as empresas de planos privados de saúde, esta última comparação relevando que o Estado remunera a rentabilidade desse setor do mercado.
 
Verificou-se também que o Estado cobre o co-financiamento de planos privados à totalidade dos servidores e empregados públicos federais do Executivo, Legislativo e Judiciário incluindo as estatais, além de desconsiderar o blefe do não ressarcimento pelas empresas de planos privados, dos custos do atendimento dos seus consumidores nos serviços do SUS. Quanto à regulação desse mercado, há vários anos a ANS foi por ele capturada: seus cinco diretores são extraídos do próprio mercado.
 
O Estado permanece pétreo no centralismo, burocratismo e lentidão, desconsiderando as alternativas de descentralização com autonomia gerencial e orçamentária vigentes nos sistemas públicos de saúde responsáveis de outros países. Ao contrário, abdica da sua responsabilidade gerencial e vem entregando estabelecimentos públicos para o gerenciamento privado: fundações privadas, organizações sociais e outras, com planos abertos aos interesses de mercado. Não há como desconhecer que o Estado brasileiro assumiu desde o início, estratégia que já transita da implementação para consolidação, com a totalidade das classes médias e trabalhadores com as estruturas sindicais aderidos e dependentes aos planos privados, excluídos do SUS e a ele retornando para assistência de custo indesejável aos planos privados, restando aos pobres não consumidores de planos privados, um SUS pobre com atenção básica de baixa cobertura e resolutividade e grande repressão de demanda na assistência de média e alta tecnologia/ custos.
 
É a opção deste Estado por caricatura do modelo dos EUA, ao contrário do disposto pela sociedade na Constituição. Considerando a rica e consistente acumulação histórica na Saúde, nos anos 80 e no SUS atual, ainda que contra-hegemônica, há possibilidades reais de retomar o rumo inicial, caso seja assumida a vontade política para tanto (Sociedade-Estado). Senão, vejamos: • Com empréstimos do tipo BNDES a Petrobras, hospitais complexos sem fins lucrativos e outros, o SUS pode construir e equipar, em oito anos, mais 200 hospitais regionais, 500 policlínicas e 600 UPAs, além da ampliação e qualificação da atenção básica.
 
Com ou sem esses empréstimos, podem ser criadas taxações pesadas sobre grandes fortunas, bebidas alcoólicas, tabaco, movimentações financeiras acima de patamar, além da redução gradativa das subvenções públicas ao mercado de planos privados, até seu zeramento, e, por que não, redução dos encargos da dívida pública após auditoria. 
 
Assunção das metas de 6,5% do PIB, 65% dos gastos em saúde e 900 dólares públicos per capita, de origem pública, mediante metas pactuadas, de universalização e resolutividade da atenção básica e atenção integral à saúde na regionalização das redes de serviços.
 
Autor:  Nelson Rodrigues dos Santos*
* Professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e histórico militante em defesa do SUS.

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