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segunda-feira, 20 de outubro de 2014

O uso da relação médico-paciente para influenciar o voto em momento de fragilidade é abuso de autoridade

“Para quem você torce?”, pergunta o doutor

 O uso da relação médico-paciente para influenciar o voto em momento de fragilidade é abuso de autoridade. Silêncio dos Conselhos de Medicina os torna coniventes

por Maria Gabriela Curubeto Godoy

 

na Carta Maior


Imaginemos a seguinte situação: você vai ao seu médico, que, ao final da consulta pergunta:

- João, para que time você torce?

- Para o Flamengo, doutor.

- Flamengo? Hmm... O Flamengo persegue a classe médica e prejudica o Brasil. O Botafogo é melhor. Vamos fazer o seguinte, vou acrescentar na sua prescrição, mas sem escrever nada: torcer pelo Botafogo, certo?

Outra versão de conversa semelhante poderia ser:

- João, qual é a sua religião mesmo?

- Espírita, doutor.

- Hmm... Seria melhor você adotar o catolicismo, João. É melhor para todos nós, sobretudo os médicos.

Essas conversas aparentemente sem sentido foram encenadas aos milhares pelo Brasil afora, mas não tendo como tema o futebol ou religião, mas a política e a escolha eleitoral. Relatos feitos em redes sociais e conversas pessoais registradas por diversas pessoas mostraram pacientes desabafando sobre o assunto. A maioria deles não quis tomar nenhuma atitude que viesse a colocar em risco a relação com seu doutor ou doutora. Alguns até devem ter se convertido à crença “prescrita” pelo doutor, que usou da sua relação de confiança e vínculo para fazer apologia a suas escolhas eleitorais.

O tema levantou debates acalorados entre médicos e estudantes de medicina nas redes sociais. Enquanto alguns defendiam fazer campanha eleitoral explícita ou sutil com seus pacientes, outros acusavam tal atitude de ser antiética. Uma busca na legislação do Portal do Conselho Federal de Medicina sobre o tema revela muito pouco sobre o tema, mais especificamente, textos que tratam de situações que envolvem médicos enquanto candidatos.

Apenas o CRM da Paraíba lançou uma cartilha voltada a médicos candidatos para orientar seus profissionais. Nela, proíbe-se o profissional, durante o período eleitoral, de realizar consultas gratuitas na própria residência, distribuir amostras grátis de medicamentos e intermediar a realização de cirurgias. Por outro lado, o CRM de Goiás foi multado pelo TSE no valor de 30.000 reais por fazer propaganda eleitoral contra uma candidata enviando correspondência a todos os médicos do estado.

Fora esses exemplos, inúmeros outros ocorreram, como o apoio da Associação Médica Brasileira (AMB) a um candidato à presidência, o mesmo tendo ocorrido com diversos sindicatos médicos. Quanto aos Conselhos de Medicina, com exceção do de Goiás, mais explícito, todos mantiveram silêncio conivente com tais atitudes de seus congregados.

As situações descritas envolvem pelo menos duas linhas de discussão. Primeiro, o uso político da relação médico-paciente. Depois, a adesão político-eleitoral de instituições médicas a um determinado partido ou candidato, considerando que representam médicos com diversos posicionamentos político-ideológicos.

Quanto à primeira questão, o(a) médico(a) utilizar o momento de encontro com o paciente para dissuadi-lo, convencê-lo ou reforçar que volte em determinado candidato caracteriza infração do artigo 40 do Código de Ética Médica, no Capítulo V, que trata da Relação com Pacientes e Familiar e diz ser vedado ao médico "aproveitar-se de situações decorrentes da relação médico-paciente para obter vantagem física, emocional, financeira ou de qualquer outra natureza".

Considerando-se histórica e sociologicamente a constituição da Medicina Científica Moderna, esta exerce sua função social alinhada aos interesses dominantes através do “poder médico”. Portanto, a relação médico-paciente já pressupõe uma assimetria de poder entre as partes. A utilização dessa relação para influenciar o paciente em um momento de fragilidade e sofrimento, que é geralmente o que o leva a consultar um médico, caracteriza um abuso de autoridade.

Dentre as várias pessoas que fizeram seus desabafos pessoalmente ou em redes sociais sobre o fato de terem sido abordadas por seus(suas) médicos(as), nenhuma delas pretendeu dar seguimento a qualquer tipo de ação, seja nos respectivos Conselhos de Medicina, cujo silêncio deixa nas entrelinhas uma possível conivência com a situação, seja em outras instâncias legais. O motivo? Embora discordem do posicionamento político de seus doutores, não querem colocar em risco o atendimento e a relação.

O silêncio dos pacientes como forma de ação e/ou resistência caracteriza experiências de submissão a determinadas ordens, o que denota, de fato, o exercício de um “poder” advindo da autoridade médica que não é questionado pelo paciente quando o percebe exercido sobre ele. Esse poder tampouco é limitado a partir da tentativa de acionamento dos mecanismos legais vigentes em função do vínculo e confiança técnica no referido médico ou do medo de retaliação no próprio cuidado à saúde.

Assim, infelizmente, esse tipo de ação micropolítica vigente em muitas consultas médicas continuará acontecendo. Ação antiética, mas sancionada subliminar ou expressamente pelas instituições médicas.

Alinhavando, então, com o segunda questão acima assinalada, que trata da adesão político-eleitoral de instituições médicas a um determinado candidato, vale destacar que as mesmas representam coletivos maiores, com distintos posicionamentos político-ideológicos. O posicionamento de uma instituição médica (sindicato, associação, conselho ou outro) pode ser feito desde que seguindo o estatuto, que costuma pressupor uma assembléia aberta e ampla de seus membros, o que não parece ter sido o caso de algumas dessas instituições.

No caso dos Conselhos de Medicina, cabe lembrar que sua principal missão trata de questões que regulamentam a profissão. A adoção de um alinhamento político-partidário até caberia a um sindicato, talvez até a uma associação, pois nesses se associa quem quer. Mas um Conselho representa a instituição obrigatória de inscrição e contribuição de todos os médicos que desejam manter ativa a autorização para sua atividade profissional. Cabe questionar, portanto, a utilização do dinheiro arrecadado e oriundo de todos os médicos em campanhas específicas anti ou a favor de qualquer candidato que seja, como fez o CRM de Goiás.

O legado desta campanha eleitoral no segundo turno deixa o País dividido. Não seria diferente para a categoria médica, na qual também rebatem essas cisões. A liberdade política está garantida na Constituição Federal, cabe fazê-la valer nas instituições, inclusive as médicas.

* Maria Gabriela Curubeto Godoy é médica psiquiatra, doutora em Saúde Coletiva e professora-adjunta de Saúde Coletiva da UFRGS

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