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quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

Violência Obstétrica: “Mãe, ele está me vendo nua?”

Um estranho na hora do parto

Justiça determina coleta do cordão umbilical de bebê e momento do nascimento vira situação de humilhação para mãe de Curitiba

na Gazeta do Povo

“Mãe, ele está me vendo nua?” A pergunta foi feita por Fernanda* no momento em que, já devidamente acomodada na sala de parto, preparava-se para o nascimento de Augusto*. Ela estava acompanhada da mãe, Lúcia*, quando percebeu a presença de um homem desconhecido ao lado da mesa de cirurgia, junto à equipe de enfermeiros e do médico obstetra.

A pergunta foi feita por Fernanda* no momento em que, já devidamente acomodada na sala de parto, preparava-se para o nascimento de Augusto*. Ela estava acompanhada da mãe, Lúcia*, quando percebeu a presença de um homem desconhecido ao lado da mesa de cirurgia, junto à equipe de enfermeiros e do médico obstetra.



O estranho que assistiu ao parto de Fernanda estava lá a serviço de um laboratório de Curitiba, para realizar a coleta do cordão umbilical do recém-nascido para comprovação da paternidade por exame de DNA. Tão logo o bebê nasceu, o homem se retirou da sala de posse de amostras de sangue da mãe e do cordão umbilical.

Conflito

A situação vivida por Fernanda, que se considera vítima de violência obstétrica, é resultado de um conflito com o pai da criança (cuja paternidade foi comprovada posteriormente pelo exame), que culminou em uma decisão judicial emitida às vésperas do parto. A liminar determinava à gestante indicar alguém habilitado para realizar a coleta do material biológico para fazer o DNA. No entanto, não há em nenhum documento menção à necessidade de que essa pessoa assistisse ao parto, como de fato ocorreu. Além disso, devido à iminência do nascimento do bebê, Fernanda não indicou ninguém.

“Quando percebi um desconhecido de avental, touca, máscara e luvas, parado, sem função nenhuma, meu coração ficou pequeno e fui invadida por um sentimento de impotência absoluta, de solidão plena, sem ter ninguém a quem pedir ajuda. Fernanda estava com as pernas abertas, já em posição para dar à luz, amarrada por faixas de gaze, totalmente imobilizada e absolutamente vulnerável”, relembra Lúcia.

Impotência

A sensação descrita por Lúcia, no entanto, não é exclusividade de mãe. O obstetra de Fernanda compartilhou da mesma impotência. “Fiquei traumatizado também. Nunca tinha visto nada igual. A decisão judicial foi agressiva. A coleta não precisava ter sido feita naquele momento”, desabafa o médico de 67 anos, 41 de profissão.

Segundo ele, o nervosismo provocado pela situação poderia ter resultado em prejuízos à mãe e ao bebê. “O leite poderia não descer, a mãe poderia ter desenvolvido depressão pós-parto, o vínculo entre mãe e bebê poderia ter sido prejudicado”, completa.

O episódio ocorreu em 29 de setembro. Dois meses depois, o sentimento de revolta de Fernanda permanece. Ela ainda busca respostas. “O que eu quero é entender como isso foi acontecer. Como alguém que eu não sei quem é assistiu ao meu parto? Como é que o hospital deixou que isso acontecesse? Aquele era um momento meu e do meu filho. Na hora eu tentei ignorar a presença daquele homem. Mas o clima na sala ficou pesado. Dava para perceber que o médico e os enfermeiros também estavam incomodados. A sensação de desamparo é muito grande. Precisava ter sido desse jeito?”, questiona.

*Os nomes são fictícios para preservar a identidade das pessoas envolvidas na história.

Repercussão

Diante da colisão de direitos fundamentais, Justiça priorizou o direito à paternidade

A experiência vivida por Fernanda* foi resultado de uma decisão judicial possivelmente inédita no Brasil. A Justiça determinou a presença de alguém, a ser indicado pela gestante, no momento do nascimento do bebê para a coleta de material biológico para comprovação de paternidade. O episódio suscita alguns questionamentos: qual é o limite da intervenção do judiciário?; no caso de colisão de direitos fundamentais, como o direito à intimidade e à vida privada da gestante e o direito à paternidade do recém-nato, qual deve se sobrepor?; havia necessidade de o responsável pela coleta assistir ao parto? 

Nesse caso há, ainda, o agravante de que Fernanda não indicou pessoa de sua confiança, conforme oportunizava a liminar e, mesmo sem previsão legal, alguém que ela ainda não sabe quem é presenciou o parto e coletou o material biológico dela e do filho. 

Segundo a advogada Ana Carla Matos, especialista em Direito de Família e professora da UFPR, trata-se de uma decisão polêmica e complexa. “Não há dúvida de que a oportunidade de reconhecimento de paternidade é um direito do pai e do filho. Contudo, a condução desse direito não pode representar violência obstétrica, nem uma intromissão indevida no exercício da medicina, devendo se priorizar a segurança no nascimento da criança.”

Por outro lado, pondera a advogada, que a Justiça concedeu à gestante o direito de escolher quem seria a pessoa responsável pela coleta do cordão umbilical, que poderia ser o próprio médico obstetra. Segundo Fernanda, no entanto, o avançado da gestação não permitia que se submetesse ao estresse que a contestação judicial provocaria – ela recebeu a intimação no dia 24 de setembro, com 39 semanas e meia de gestação e, cinco dias depois, entrou em trabalho de parto.

A decisão liminar não deixa claro onde, exatamente, a pessoa designada para coletar o material biológico deveria estar – na sala de parto ou na sala de espera? “A decisão é vaga. Mas acredito que positivamente vaga, pois possibilitaria que a mãe indicasse essa pessoa para realizar a coleta e de que maneira isso seria feito”, observa Ana Carla. Entretanto, uma vez que a indicação não foi feita, ninguém poderia ter entrado na sala de parto e coletado amostra de sangue e o cordão umbilical sem determinação expressa da Justiça, como ocorreu.

“Nesse caso, o hospital falhou imensamente na fiscalização, foi omisso. A liminar determinava que a mãe indicasse. Não havia abertura para o suposto pai indicar. O hospital deveria ter consultado seu assessor jurídico, porque o que se cumpriu não foi a ordem judicial. Em última instância, o médico poderia ter impedido a entrada na sala de parto, uma vez que ele é o responsável direto pelo bem-estar da parturiente e do bebê.” Por meio de nota, a maternidade onde o parto foi realizado alegou ter apenas atendido à ordem judicial para coleta de material do cordão umbilical no momento do nascimento.

Confira o depoimento da avó da criança

Já passava das 13 horas quando entrei na sala de parto onde Fernanda* daria a luz ao meu terceiro neto. A princípio, para leigos, o local é meio confuso, claro demais, com fios, luzes e equipamentos piscando, enfermeiros e médicos de máscaras, luvas e toucas. O primeiro cuidado é obedecer com rigor à ordem de “não tocar em nada azul”, para não contaminar a sala de cirurgia. Minha filha já estava deitada, com a touca cobrindo os cabelos e recebendo a anestesia. Um pouco ansiosa, mas rindo, brincou, perguntando se se eu, muito mais ansiosa do que ela, estava pronta para fotografar tudo. Respondi que sim, me sentei numa banqueta atrás dela, segurando-lhe os ombros descobertos. Alguns minutos se passaram, e o que se ouvia eram apenas sons metálicos dos equipamentos médicos. A equipe toda estava silenciosa, concentrada. Foi quando Fernanda virou os olhos pra mim e, com a voz meio embargada, me perguntou – “Mãe, ele está me vendo nua?”.

Só nesse momento percebi um homem alto, de avental, touca, máscara e luvas, parado do lado da mesa de cirurgia, a meio metro de distância de minha filha, sem função nenhuma. Percebi logo que o estranho estava lá a serviço de um laboratório de Curitiba para garantir o exame de DNA do recém nascido. Meu coração ficou pequeno e me invadiu um sentimento de impotência absoluta, de solidão plena, sem ter ninguém a quem pedir ajuda. Penso que deve ser esse o sentimento que invade as mães quando são incapazes de proteger seus filhos. Fernanda* estava com as pernas abertas, já em posição para dar à luz, amarrada por faixas de gaze, totalmente imobilizada, absolutamente frágil, vulnerável. Procurei tranquilizá-la: - “Não, filha, ele não está vendo nada. Você está toda coberta”. Fiz carinho nos ombros dela e nós duas começamos a chorar, tentando esconder uma da outra o sentimento mais doloroso das nossas vidas. 

O parto começou, o médico empurrou com força a barriga de nove meses para baixo, Fernanda* reclamou de dor e eu me preparei para fotografar o nascimento. Foi quando a enfermeira pegou o braço de minha filha, tirou uma seringa de sangue e levou para o estranho, que o guardou. Os trabalhos prosseguiam, e depois da pergunta de Fernanda* a tensão na equipe aumentou. Era visível, mas ninguém disse uma palavra. Virei o visor da máquina fotográfica para o estranho e acionei os botões. E até hoje não tive coragem de ver as imagens.

Mais alguns minutos e o médico segurou o meu neto, ele chorou, minha filha quis vê-lo e lá veio ele, vermelho, enrugado, ainda encolhido no meio das toalhas azuis. “É ele mãe, é o meu filho”, saudou Fernanda*. Naquela hora tão bonita, o bebê procurou-lhe o seio e, para ela, o centro do mundo estava ali, absorvendo-a completamente.

Vi o estranho sair quase correndo, segurando os vidrinhos do laboratório, com o sangue de Fernanda* e do cordão umbilical. Saí em seguida, enquanto a equipe concluía a cirurgia. Não me lembro de ter tirado as roupas hospitalares, nem se falei com alguém. Ficou apenas um vazio na alma que hoje, 60 dias depois, ainda permanece, intacto. Como minha filha sabia, o teste do DNA deu positivo. O que nem eu, nem ela sabíamos, naquele momento, é que o nosso calvário estava apenas começando. Mas essa é outra longa e triste história.

Falhas institucionais resultaram em violência obstétrica

Na avaliação da advogada Sabrina Ferraz, coordenadora da Subcomissão de Violência Obstétrica da Comissão de Estudos sobre Violência de Gênero (Cevige) da Ordem dos Advogados do Brasil – Seção Paraná (OAB-PR), a experiência vivida por Fernanda* ocorreu devido a um conjunto de falhas . O resultado foi a submissão da gestante a uma situação de violência obstétrica.
“Nesse caso, violência obstétrica foi submeter a intimidade da gestante a um estranho.”
Para Sabrina, a privacidade e a dignidade da mãe foram violadas. “Acredito que o pai tenha agido de má-fé, fez valer uma ordem judicial de forma equivocada. A liminar era para ela, e não para ele. Houve, também, inabilidade do hospital em interpretar a decisão. Não há autorização para que se assista ao parto. O hospital não analisou o conteúdo da liminar com exatidão. Mas também houve negligência por parte da gestante e familiares em não questionar a presença do estranho que realizou a coleta dentro da sala de parto”, argumenta a especialista.

Há dois casos marcantes no Brasil em que houve colisão de direitos envolvendo reconhecimento de paternidade:

Apreensão de placenta

Em 2002, o Supremo Tribunal Federal manteve decisão de instância inferior que determinou a coleta de sangue da placenta, durante o parto, e do recém-nascido, para posterior realização de DNA. A gestante em questão era a cantora mexicana Gloria Trevi, presa no Brasil em 2000 após fugir do México devido a acusações de abuso sexual de menores. Gloria foi mantida em carceragem da Polícia Federal em Brasília sem direito a visitas íntimas. Em 2001, anunciou estar grávida e acusou mais de 60 pessoas (policiais federais e ex-detentos) de estupro. Todos os suspeitos negaram as acusações e forneceram material para o exame. Diante da recusa de Gloria, a Justiça determinou a coleta do material biológico durante o parto. A defesa da cantora alegou violação ao direito à vida privada e à intimidade, enquanto a defesa dos acusados pedia pela preservação do direito à honra e à imagem. O STF ponderou que a realização do exame não traria prejuízos à intimidade ou vida privada uma vez que a coleta da placenta não é invasiva, já que o material é descartado após o parto. Pesou, ainda, o direito à personalidade do recém-nascido – argumento também usado pela Justiça no caso de Fernanda.

DNA não consentido

O outro caso, de 2003, é o de Roberta Jamilly Martins Borges. Após descobrir que sua mãe, Vilma Martins Costa, havia sequestrado o filho, Pedro, ainda na maternidade e o criado como seu filho biológico, foi aventada a possibilidade de que Roberta também tivesse sido vítima de sequestro. Por isso, a Justiça solicitou que ela fizesse exame de DNA, mas Roberta recusou. Por causa disso, a Polícia Civil solicitou à Justiça um mandado de busca e apreensão para coletar objetos pessoais de Roberta que pudessem conter material para o exame. Antes que a decisão fosse emitida, a polícia conseguiu realizar o exame por meio de uma bituca de cigarro deixada por Roberta no lixo da delegacia (a saliva da jovem foi isolada). O resultado deu negativo e comprovou que Vilma também havia sequestrado a menina ainda bebê. Mesmo tendo sido feito sem o consentimento da jovem, a prova laboratorial teve validade legal. Nesse caso, o direito à privacidade e intimidade, que protege uma pessoa da obrigação de emprestar seu corpo ou parte dele para produção de provas, foi preservado. A saliva foi coletada quando já se encontrava fora do corpo de Roberta, não havendo impedimento para que se procedesse a perícia.

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