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sábado, 3 de janeiro de 2015

Meu médico não é assim [sobre as práticas da indústria farmacêutica e a classe médica]

É fácil reconhecer a corrupção na cara suja de um político, no sorriso oblíquo de um cartola, no olhar distraído de um empresário rico. Décadas de jornalismo investigativo prepararam nossa percepção para saber que com frequência os ideais não são eternos e os sistemas de controle são insuficientes. Servidor público corrupto não surpreende – azar dos honestos que são muitos mais. Nenhuma área está livre de que seus representantes cometam abusos, mas a julgar pelo que divulga a mídia, a transgressão moral na área de saúde parece ser “apenas” um assunto de superfaturamento ou desvio de dinheiro nos hospitais públicos, fatos que aparecem dia sim dia não nas manchetes brasileiras. Um crime organizado que envolve a poucos, pessoas que a gente nunca viu nem verá de perto.
Na última semana do ano, porém, a imprensa começou a mostrar que os médicos corruptos não são tão poucos. A jornalista Cecilia Ritto publicou na Veja a matéria “Três stents e uma viagem“ sobre práticas mafiosas da classe médica. Basicamente, ela descreve uma prática profissional na qual as decisões não são tomadas apenas com critério científico. Se o texto da Veja parece focado nas empresas e hospitais do Rio de Janeiro, que estão sendo devidamente investigados pela Polícia Federal, fica evidente na leitura das cartas dos leitores que o caso não e único: é apenas exemplar. Sem dúvida não são os 400.000 médicos do Brasil os que ferem a ética médica; mas, seja qual for o número, são suficientes como para manter vivo o sistema. E teriam que sê-lo também para atrair mais atenção da mídia.

O poder da informação
Todos somos pacientes, porém poucos podemos escolher os médicos. Quando é o caso, e critério de seleção é a confiança que o olhar dessa pessoa de jaleco branco nos inspira. A sua capacidade não vem definida em cavalos de força como nos caso dos motores, nem sua qualidade recebe estrelas como os hotéis. As avaliações ao estilo Trip Advisor, que alguns propõem, também não resolvem o problema essencial: não temos como saber como o homem ou a mulher que cuida de nossa saúde responde às pressões indevidas. Mas, ainda assim, a mídia pode ajudar ao consumidor com mais informação.
Os medicamentos são desde sempre uma potencial fonte de riqueza para os profissionais da saúde que os prescrevem, e a escolha de um remédio ou outro atinge diretamente o bolso do consumidor – que no Brasil paga cerca de 70% dos medicamentos que se usam. Nunca é pouco dinheiro, e depois de determinada idade os aniversários se percebem basicamente pela necessidade de comprar mais remédios. Os avanços da terapêutica permitiram tornar crônicos males que antes eram mortais e a enfermidade deixou de ser algo que acontece para passar a ser algo que sempre está.
Em um país que em oito anos passou de décimo para o sexto lugar no mercado mundial de medicamentos (e há previsões que o situam no quarto, em 2016) é e imprescindível mostrar ao público como funciona o sistema comercial farmacêutico. Informar que o controle sobre a prescrição, que quantifica a fidelização dos médicos a um laboratório determinado, se faz habitualmente na farmácia (quando o vendedor registra o CRM da receita, por exemplo, ou outras maneiras mais sofisticadas). É preciso mostrar também que fórmulas de controle mais complexas estão em andamento e podem, de acordo com o uso, melhorar ou piorar a situação.
Em Brasília está se discutindo um projeto sobre as práticas de prescrição (ver aqui). A fidelização dos médicos a uma empresa determinada pode logo ter um aliado no receituário eletrônico.
No sábado (27/12), o jornal argentino La Nación publicou uma corajosa reportagem – “El negocio detrás de las recetas“ (O negócio por trás das receitas) – na qual os jornalistas Pablo Tonino e Fabiola Czubaj mostram o lado escuro do receituário. O texto indaga sobre as compensações que recebem alguns médicos por escrever um nome e não um outro. Depois de falar com 22 fontes, muitas delas off the records, os jornalistas concluíram que as especialidades mais vulneráveis são dermatologia, traumatologia, reumatologia, oncologia e urologia. Os “canetas”, como os corruptores chamam aos corruptos, recebem às vezes compensações em viagens, outras em dinheiro vivo.
Corrupção ramificada
As mentes mais brilhantes e prestigiosas são as mais influentes, e portanto podem ser as mais importantes para manter esse sistema. Na hora da apuração, fica difícil para um jornalista pensar em brigar com as suas melhores fontes – parece um suicídio profissional. Mas pode ser desnecessário, já que a procura dos culpados não deve obedecer a impulsos voyeurísticos de filmar pessoas sendo presas, mas levar a uma subsequente melhora do sistema.
Para a imprensa, essas investigações são tão difíceis de fazer como de publicar. Produzir informações sobre a prática médica exige do repórter muito mais do que saber fazer as perguntas certas. O positivo é que os jornalistas estão cada vez mais conectados, a ideia da transparência não para de crescer; e as leis, as recomendações éticas e os códigos de conduta da prática médica são mais o menos os mesmos em muitos países. Como os delitos também o são, talvez uma investigação jornalística transnacional sobre as práticas clássicas de fidelização dos médicos, que logo vai ter um aliado no receituário eletrônico, não seria uma ideia ruim.
O meu 2014 termina com a esperança de que o 2015 seja um ano em que os jornalistas de saúde vamos contar a verdade, sem fingir que foi isso o que sempre fizemos. Desejo para 2015 que possamos investigar o que todos sabemos, sem medo de brigar com as nossas melhores fontes, nem receber pressões dos editores. Que ninguém tenha medo de dizer que no ambiente médico a corrupção é ramificada e poderosa: começa nos consultórios do bairro e acaba infectando até o centro cirúrgico mais especializado.
2015 pode ser um bom ano para iniciar as boas ações.
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Roxana Tabakman é bióloga e jornalista, autora de A saúde na mídia – Medicina para jornalistas, jornalismo para médicos (Editora Summus)

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