Páginas

terça-feira, 24 de março de 2015

EC-86: Surge o orçamento impositivo à brasileira - Congresso criou uma meia sola para cuidar de interesses eleitorais

Parlamentares criaram uma meia sola apenas para cuidar de seus interesses eleitorais


Fernando Facury Scaff  no Consultor Jurídico (título da matéria modificado pelo blogueiro)

Consta que o advogado Sobral Pinto foi preso em 1968 pela ditadura militar no dia seguinte à edição do AI-5. Os militares tentaram convencê-lo de que estavam implantando uma democracia à brasileira, ao que Sobral Pinto respondeu de forma irritada: “Tenha paciência. À brasileira eu conheço peru – Peru a Brasileira. A democracia é universal”. Esta história foi publicada em abril de 1977, em entrevista que o advogado concedeu ao jornal O Pasquim, logo após o Pacote de Abril..., mas essa é parte da história.

Na semana passada, sob condições completamente diferentes — pois o país passa por um período onde se goza das mais amplas liberdades públicas — o Congresso aprovou a Emenda Constitucional 86, que criou a curiosa figura do Orçamento impositivo à brasileira, pois ao invés de aprovar uma norma que realmente obrigasse o Poder Executivo a cumprir as leis orçamentárias, foi aprovada uma emenda constitucional que obriga o Poder executivo a cumprir as emendas parlamentares, que se caracterizam como uma pequena parte do orçamento, e vinculada a interesses eleitorais dos próprios parlamentares.

A bem da verdade, em face de tantos limites impostos aos parlamentares para dispor de matéria orçamentária eles tinham duas alternativas: ou propunham uma verdadeira reforma constitucional orçamentária, estabelecendo poderes para que pudessem efetivamente gerir os recursos públicos, ou criavam uma meia sola apenas para cuidar de seus interesses eleitorais — o que acabou prevalecendo. Uma pena. Para usar uma expressão popular, vê-se que a montanha pariu um rato. Poderiam ter ousado mais.

De toda forma, mesmo estas tímidas normas aprovadas já tem o poder de causar muitas modificações nas relações político-partidárias existentes, pois a liberação de emendas parlamentares deixará de ser uma espécie de moeda de troca nas relações entre o Congresso e o Planalto. Nem falo apenas do atual governo, mas de todos os governos do período democrático, em todos os níveis federativos, durante os quais se usou a liberação de emendas parlamentares para aprovar as matérias de interesse do Executivo junto ao Legislativo. Se o deputado votasse de acordo com o Planalto, as emendas seriam liberadas (mesmo que a conta-gotas); se votasse contra, não haveria liberação de recursos. Nos estados e municípios brasileiros esta mesma dinâmica existe e, tal como na União, é indiferente quais sejam os partidos na situação ou na oposição. A Emenda 86, embora tímida e circunstancial, se propõe a liberar o Legislativo do jugo do Executivo, o que é positivo. Repito: a ousadia poderia ter sido maior e colocado o Legislativo no efetivo comando dos destinos dos recursos que são arrecadados de todos em nosso país. Claro que muitos erros poderiam ocorrer, mas desta forma, ao longo de algumas eleições, conseguiríamos melhorar a qualidade da composição de nossos Parlamentos e instaurar um sistema de representação parlamentar estável e mais representativo em nosso país.

A Emenda 86, promulgada em 17 de marco de 2015, basicamente altera e insere alguns parágrafos e incisos nos artigos 165 e 166, referentes à vinculação de recursos para a execução de emendas parlamentares individuais, e altera o artigo 198 da Constituição Federal para estabelecer 15% de vinculação de recursos da União para os programas e ações de saúde, consoante abaixo se busca demonstrar.

No que se refere à vinculação criada para financiar as emendas parlamentares individuais, as alterações são as seguintes:

1) Foi estabelecida uma vinculação de receitas para gastos com emendas parlamentares individuais no percentual de até 1,2% da receita corrente líquida prevista no Projeto de Lei Orçamentária enviado pela União (o que, considerados os valores de 2014, se aproximaria de R$ 8 bilhões), sendo que metade desse percentual deverá ser destinada a ações e serviços públicos de saúde (artigo 166, parágrafo 9o), inclusive para custeio, sendo vedado seu uso para pagamento de despesas com pessoal ou encargos sociais (artigo 166, parágrafo 10). Este valor destinado à saúde será considerado no montante anual que a União obrigatoriamente deve despender (artigo 166, parágrafo 10).

2) Este percentual de 1,2% é de obrigatória execução financeira e orçamentária, consoante vier a ser estabelecido através de uma lei complementar a ser editada que determinará a execução equitativa da programação orçamentária (artigo 166, parágrafo 11), entendido o conceito de “execução equitativa” como “a execução das programações de caráter obrigatório que atenda de forma igualitária e impessoal às emendas apresentadas, independentemente da autoria" (artigo 166, parágrafo 18). Nesse percentual devem ser considerados os “restos a pagar” até o limite de 0,6% da receita corrente líquida realizada no exercício anterior (artigo 166,parágrafo 16).

3) A obrigatoriedade de execução orçamentária cessa quando ocorrer impedimento de ordem técnica (artigo 166, parágrafo 12), entendido como aquele que impeça a realização do empenho da despesa. Este impedimento deverá ser formalmente comunicado ao Poder Legislativo no prazo de 120 dias da promulgação da lei orçamentária pelos Poderes Executivo ou Judiciário, pelo Ministério Público ou Defensoria Pública (artigo 166,parágrafo 14, I). É curioso que o texto menciona que até mesmo o Poder Legislativo deverá comunicar esse fato ao Poder Legislativo, o que é uma hipótese, no mínimo, cerebrina.

Sendo insuperável o impedimento apontado, o Poder Legislativo em 30 dias indicará ao Poder Executivo o remanejamento da programação orçamentária daquela verba (artigo 166, parágrafo 14, II), o qual deverá encaminhar esta reprogramação como projeto de lei em até 30 dias, ou até a data de 30 de setembro (artigo 166, parágrafo 14, III).

Supondo que o Congresso não delibere acerca desse tema em 30 dias, ou até a data de 20 de novembro, o remanejamento proposto pelo Legislativo deverá ser implementado por ato do Poder Executivo, nos termos previstos na lei orçamentária. Aparentemente se tem uma situação paradoxal, pois a norma menciona que se deve implementar o remanejamento, mesmo que não haja lei nesse sentido, o que subverte todo o sentido de respeito ao sistema de legalidade existente no âmbito orçamentário pela Carta de 1988 e se trata de uma inovação dessa Emenda Constitucional (artigo 166,parágrafo 14, IV). A forma de compreensão desse aparente paradoxo é explicitada pelo artigo 166, parágrafo 15, que menciona que essa verba deixe de ser obrigatória, findo o prazo estabelecido para a deliberação do Parlamento. Ou seja, o que era uma despesa obrigatória tornou-se despesadiscricionária findo o prazo referido.

4) Quando os recursos desta vinculação para financiamento das emendas parlamentares individuais for destinada a Estados, Distrito Federal ou Municípios, sua transferência não dependerá da adimplência do ente federativo destinatário dos recursos e também não integrará a base de cálculo da receita corrente líquida para fins de aplicação dos limites de despesa de pessoal de que trata o caput do artigo 169, o que é regulado pelos artigos 19 e 20 da Lei de Responsabilidade Fiscal (artigo 166, parágrafo 16).

5) Esta vinculação de 1,2% poderá ser contingenciada, na forma do artigo 9º da Lei de Responsabilidade Fiscal, caso haja ameaça do descumprimento da meta de superavit primário estabelecido no anexo de metas fiscais da Lei de Diretrizes Orçamentárias, o que demonstra que até mesmo os interesses eleitorais cessam quando entra em questão o pagamento dos credores públicos (artigo 166, parágrafo 17).

Trata-se, portanto, de uma Emenda Constitucional que vincula recursos do orçamento da União para os gastos que vierem a ser estabelecidos pelos parlamentares para atendimento de suas bases eleitorais. Observe-se que todo o restante do orçamento permanece ao sabor dos controles do Poder Executivo, que poderá contingenciá-lo da maneira que melhor lhe aprouver, dentro dos limites estabelecidos pelo ordenamento jurídico.

A bem da verdade, o percentual de 1,2% da receita corrente líquida da União para emendas parlamentares já constata da Lei de Diretrizes Orçamentárias (Lei 13.080/15, artigo 55), mas sem o caráter de perenidade e obrigatoriedade que os parlamentares se atribuíram através da EC 86.

Outro âmbito da referida Emenda Constitucional 86 diz respeito à vinculação de recursos da União para os programas e ações de saúde. Foi estabelecido que a União deverá aplicar montante não inferior a 15% da receita corrente líquida do respectivo exercício financeiro (artigo 198,parágrafo 2o, I). Este preceito cria uma mecânica normativa vinculando um percentual da receita pública ao financiamento da saúde, sendo que a sistemática anterior, revogada pela EC 86, transferia a uma lei complementar esta fórmula, que obedecia a um calculo incremental, sem percentual estabelecido, e com um “efeito catraca” para resguardar eventuais recuos do PIB. A Lei Complementar 141/12 regulava a matéria em seu art. 5º, mencionando que a União aplicaria, anualmente, em ações e serviços públicos de saúde, o montante correspondente ao valor empenhado no exercício financeiro anterior, acrescido de, no mínimo, o percentual correspondente à variação nominal do PIB. Os Estados devem vincular 12% de sua receita corrente líquida e os Municípios 15% (artigos 7º e 8º, LC 141/12), o que foi mantido pela EC 86 (artigo 198, parágrafo 3o, I da Constituição Federal).

Essa regra, agora revogada, levou a União a gastar em 2014 quase R$ 92 bilhões em saúde (valor superior ao que foi gasto em 2013, R$ 83 bilhões).

O percentual de 15% estabelecido pela EC 86 será alcançado de forma gradual, sendo 13,2% em 2016; 13,7% em 2017; 14,1% em 2018; 14,5% em 2019 e apenas em 2020 será aplicado o percentual de 15% da receita corrente líquida em ações e serviços de saúde de forma plena (artigo 2o, da EC 86). No cômputo desse montante foram incluídos os valores arrecadados de royalties do petróleo e a parcela das emendas parlamentares destinadas à ações e serviços de saúde.

Em face das alterações havidas, tanto na determinação de uma alíquota, quanto na unificação da base de cálculo, a determinação de perdas ou ganhos nessa área ainda dependerá de cálculos que pendem de realização. Possivelmente só quando forem divulgados os relatórios de gestão orçamentária é que será possível identificar com precisão o verdadeiro impacto dessa Emenda no setor de saúde pública.

O fato é que foi criada pela EC 86 — além dessa vinculação para a saúde — um modelo de Orçamento impositivo à brasileira, onde apenas as dotações orçamentárias para emendas parlamentares se tornaram impositivas, mas o restante permanece ao bel prazer de quem tem tinta na caneta, ou seja, o Poder Executivo, o que bem demonstra a permanência do modelo de presidencialismo imperial vigente no Brasil.

Fernando Facury Scaff é advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados; é professor da Universidade de São Paulo e livre docente em Direito pela mesma Universidade.

Nenhum comentário:

Postar um comentário