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segunda-feira, 9 de março de 2015

Epidemia de ultrassons

O excessivo número de exames para câncer de tireoide não tem salvado mais pacientes da doença

por Drauzio Varella na Carta Capital (dica do César Titton)


Deve existir alguma síndrome tireideo-vaginal que desconheço. Minha ignorância é a única explicação para justificar por que as mulheres saem da revisão ginecológica com pedidos de ultrassom da tireoide.Em 1947, um estudo mostrou a discrepância entre o grande número de casos de câncer de tireoide encontrados nas autópsias e a raridade das mortes pela doença. Os autores estimaram que ao menos um terço dos adultos apresenta pequenos carcinomas papilares de tireoide que jamais causarão complicações.

O New England Journal of Medicine, que publicou esse estudo, agora analisa o exemplo da Coreia do Sul. O país assegura acesso à saúde para seus 50 milhões de habitantes, desde os anos 1980. O sistema é tecnologicamente intensivo: é o segundo do mundo em leitos de UTI por milhão de habitantes, o quinto em aparelhos de tomografia e o quarto em ressonâncias magnéticas.

Embora o câncer de tireoide não faça parte do programa nacional de diagnóstico precoce, hospitais e médicos incluíram o ultrassom de tireoide nos chamados 
check-ups. As estatísticas vitais revelaram que a incidência desse tipo de câncer aumentou lentamente até os anos 1990, para dar um salto exponencial ao redor de 2000.

Em 2011, a proporção de diagnósticos foi 15 vezes maior do que em 1993. Atualmente, 56% dos casos são de tumores com menos de 1 centímetro, ante 14% naquela época. Você, leitor, poderá pensar que esses dados comprovam a eficácia doscreening. Afinal, diagnóstico precoce é passo fundamental para a cura. A realidade é, no entanto, mais complexa.

O aumento dramático do número de diagnósticos não foi acompanhado de redução da mortalidade. Essa constatação, em medicina, sempre sugere exagero de diagnósticos (overdiagnosis, na literatura). Hoje, câncer de tireoide é o tipo mais prevalente na Coreia. Foram 40 mil casos no ano de 2011, ante 300 a 400 mortes pela enfermidade.

Virtualmente, todos os pacientes receberam tratamento: dois terços pela tireoidectomia total e um terço pela parcial. A retirada da tireoide não é uma tarde no circo. Além do trauma cirúrgico, exige reposição diária de hormônio tireoidiano pelo resto da vida, cerca de 10% dos pacientes desenvolverão deficiências das paratireoides e 2% terão paralisias de corda vocal, com alterações permanentes da voz.

Nas últimas duas décadas, diversos países observaram fenômeno semelhante: aumento substancial da incidência de câncer da tireoide, sem impacto na redução da mortalidade. De acordo com o banco de dados Cancer Incidence in Five Continents, a proporção de diagnósticos mais do que duplicou na França, Itália, República Tcheca, Israel, China, Canadá e Estados Unidos. Estamos vivendo uma epidemia de ultrassons de tireoide que sobrecarrega os serviços especializados, encarece o sistema de saúde e expõe as pessoas a punções, cirurgias, angústias e sofrimentos desnecessários.

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