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segunda-feira, 9 de março de 2015

O que está por trás de renúncia e desoneração fiscal

Publicada originalmente na Revista Radis (Fiocruz) reproduzido na Plataforma Política Social
250 bilhões de reais deixaram de ser arrecadados em 2014 com o não pagamento de contribuições e impostos; estratégia gera impactos negativos no orçamento federal da saúde, no pagamento de aposentadorias e pensões, e na garantiade benefícios assistenciais
Menos impostos e contribuições, mais crescimento econômico, mais emprego e bem-estar para a população. Essa lógica utilizada pelo governo e pelo setor empresarial para defender a política de renúncias e desonerações parece simples, mas esconde o real impacto da diminuição da arrecadação que financia a Seguridade Social: menos direitos sociais para todos os brasileiros. A estimativa da Receita Federal é que em 2014 o governo abriu mão de recolher R$ 136,5 bilhões somente com as contribuições sociais. Somado aos impostos, este valor chega a cerca de 250 bilhões perdidos com desonerações e renúncias.
Para a maioria da população, expressões como gastos tributários e renúncias fiscais parecem não ter qualquer relação com a realidade cotidiana. Mas essa política que pretende favorecer o mercado diminuindo a capacidade de arrecadação do Estado atinge os recursos utilizados para garantir a Saúde, a Previdência e a Assistência Social, direitos previstos pela Constituição Federal de 1988. A conta das desonerações chega até os cidadãos porque é menos dinheiro a ser gasto pelo governo para compor o orçamento federal da saúde, pagar aposentadorias e pensões e garantir os benefícios assistenciais. Radis conversou com especialistas da área tributária e da economia da saúde para entender as contradições que se escondem por trás das desonerações e os dilemas e desafios que se apresentam para o financiamento do Sistema Único de Saúde (SUS).

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Por trás das desonerações
Quando o presidente da República em exercício, Michel Temer, em dezembro de 2014, assinou a lei que tornou permanente a chamada desoneração da folha de pagamentos, 56 setores da economia tiveram a extensão de um benefício que representou a perda de R$ 21,6 bilhões para a Seguridade Social em 2014. A lógica da estratégia do governo é diminuir os encargos sobre o setor empresarial e estimular a competitividade da economia brasileira. O mesmo argumento já havia sido usado pelo então ministro da Fazenda, Guido Mantega, ao se reunir com empresários no Palácio do Planalto na presença da presidenta Dilma Rousseff, em maio do mesmo ano. Na prática, porém, as desonerações impactam as contribuições sociais e, somadas, geraram a diminuição de R$ 102,5 bilhões no orçamento a ser gasto com Saúde, Previdência e Assistência Social somente em 2013 (veja quadro na página 17). Os dados são da Associação Nacional dos Auditores-Fiscais da Receita Federal (Anfip) e revelam que o valor que deixou de ser arrecadado com as contribuições sociais foi maior que o orçamento federal da Saúde para o mesmo ano (R$ 85 bilhões). Se de um lado o segmento empresarial e o governo destacam que essa política pretende proteger a economia brasileira em um contexto de crise internacional, de outro uma pergunta precisa ser feita: Quem paga a conta das desonerações?
“Brasil Maior”, seguridade menor
Em artigo publicado na Folha de S.Paulo, em agosto de 2014, o mesmo vice-presidente Michel Temer qualifica a concessão de benefícios tributários como um exemplo de inclusão social reconhecido internacionalmente, ao lado do Bolsa Família e outros incentivos. Ao defender a política de desoneração da folha de pagamentos, ele argumenta que “o governo abre mão de arrecadação volumosa em prol do bem-estar da população”. Criada três anos antes, em agosto de 2011, e regulamentada pela lei 12.546, essa modalidade de benefício soma-se a outros estímulos do governo dados ao setor empresarial, como a renúncia de recursos do Programa de Integração Social (PIS) e da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins) — fontes estratégicas de dinheiro para as três áreas da Seguridade (Saúde, Previdência e Assistência Social).
Ao lançar o Plano Brasil Maior, em 2011, que previa medidas para manter a estabilidade da moeda e retomar o crescimento econômico, o governo federal anunciou a implantação da desoneração da folha, inicialmente sobre quatro setores da economia (confecções, couro e calçados, call center, móveis e software). A política substituiu a contribuição previdenciária sobre 20% da folha de pagamentos por outra no valor de 2% ou de 1%, a depender do setor, sobre a receita bruta da empresa. Atualmente, outras 52 áreas da economia são beneficiadas, incluindo indústrias de medicamentos e fármacos. Como lembra a presidente da Associação Brasileira de Economia da Saúde (ABrES), Rosa Maria Marques, o próprio governo federal, logo quando lançou o projeto, reconheceu que essa substituição não era neutra, pois traria perdas para a Seguridade Social.
Na visão do vice-presidente de Assuntos Fiscais da Anfip, Vanderley Maçaneiro, os governos fizeram, ao longo do tempo, a opção política de usar as contribuições sociais para promover benefícios tributários. Em outras palavras, sobra menos dinheiro para investir em áreas sociais. “Ao abrir mão desses recursos, o governo deixa de aplicar na Saúde e na Previdência, o que ameaça as conquistas conseguidas com o capítulo da Seguridade Social da Constituição, que reconheceu esses direitos a serem garantidos pelo Estado”, ressalta.
Contribuições e impostos
Diferentes dos impostos, as contribuições sociais — Programa de Integração Social (PIS),Contribuição para Financiamento da Seguridade Social (Cofins) e Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), além das contribuições previdenciárias — são o chamado “dinheiro carimbado”, que tem o destino certo de financiar áreas sociais (veja a diferença na página 16). De acordo com Vanderley, a Anfip defende que a política de desonerações seja feita com impostos e não com contribuições sociais.
Segundo uma estimativa da própria Receita Federal, o governo pode ter deixado de arrecadar R$ 136,5 bilhões em 2014 somente com as contribuições sociais, o que corresponde a 54,7% dos chamados gastos tributários no ano (perdas com desonerações e renúncias sobre impostos e contribuições). Nesse total, estão à frente o que se deixou de arrecadar com a Cofins, que teria sido de R$ 58,5 bilhões, e com as contribuições previdenciárias (57,1 bilhões), incluindo as desonerações sobre a folha (ver quadro).
A Seguridade Social é a garantia dada pela Constituição Federal de 1988 para três direitos sociais: saúde, previdência e assistência social. Em 2014, seu orçamento definido em lei foi de R$ 643,9 bilhões. Esse dinheiro é usado para compor a despesa do governo federal com saúde, além de pagar todas as aposentadorias dos trabalhadores urbanos e rurais regidos pela Previdência, bem como pensões e outros benefícios assistenciais, como o Bolsa Família, programas de segurança alimentar (Programa de Aquisição de Alimentos para o combate à fome) e pagamentos vinculados ao Sistema Único de Assistência Social (SUAS), destinados a idosos e pessoas com deficiência que não possam prover sua própria subsistência — e também para as que se encontram em situações de vulnerabilidade ou de fragilidade social, decorrente da pobreza ou outros fatores. Na hora de fazer a conta, o dinheiro que deixa de ser arrecadado com as desonerações significa menos recursos para garantir esses direitos.
O grande dilema é que as compensações sobre as desonerações previstas em lei não têm sido repassadas pelo governo. A regra era de que a União deveria compensar o Fundo do Regime Geral de Previdência Social (RGPS) para que as medidas não gerassem perdas. Mas somente em 2013, quando foram deixados de arrecadar R$ 19,04 bilhões com a folha, menos da metade desse total foi compensado (9,02 bilhões), de acordo com o relatório Desoneração da Folha de Pagamentos: Oportunidade ou Ameaça?, elaborado pela Anfip. Com isso, a perda para a Seguridade Social foi de R$ 10,02 bilhões apenas naquele ano, que se soma aos outros 92,5 bilhões perdidos com Cofins, PIS, CSLL e contribuição previdenciária.
Falta debate e informação
Se de um lado o Brasil precisa de uma reforma tributária para cobrar os impostos de modo mais equilibrado, de outro a sociedade não foi ouvida na polêmica das desonerações. É o que aponta Rosa Maria Marques, ao afirmar que essa política tem representado uma “minirreforma tributária” vinda de cima para baixo, sem a discussão com os principais interessados. “As desonerações têm sido adotadas sem que os trabalhadores, os aposentados e a população brasileira, interessados no SUS, tenham podido discutir sobre o assunto”, alertou.
Se não há debate, também falta informação. Um dos argumentos usados pelo governo para promover as desonerações é a ideia difundida pelo setor empresarial de “Custo Brasil”, que seriam os encargos que dificultam os investimentos no país. Mas, de acordo com Vanderley Maçaneiro, não há dados que comprovem que essa política gera competitividade e leva à formalização do emprego. Por outro lado, a desoneração tem um efeito claro: a diminuição de recursos para a Seguridade Social. Ele aponta ainda que as contribuições sociais são responsáveis por mais da metade do dinheiro arrecadado pela União (somente em 2013, foram 56% dos R$ 1,14 trilhões arrecadados com todos os tributos) — o que mostra o seu papel estratégico.
O economista Carlos Octávio Ocké-Reis, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), acredita que a desoneração da folha de pagamentos tenha tido papel importante na manutenção do emprego, principalmente em um contexto de crise econômica internacional. Mas ele defende que esses incentivos devem ser dados sobre tributos que não incidam nas políticas sociais. O pesquisador alerta, porém, para outro tipo de renúncia, em relação aos planos privados de saúde, que ameaçam o SUS. “O problema da saúde no Brasil não é conjuntural e sim estrutural, e vem da relação parasitária que o setor privado sempre desenvolveu em relação ao SUS, ameaçando um direito da população”, enfatiza. É o caso das renúncias fiscais dadas a prestadores privados de saúde e da dedução feita pelos cidadãos e pelas empresas no Imposto de Renda (IR), que estimulam o consumo de planos e contribuem para a precarização da saúde pública.(Radis 131)
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Gasto invisível
Além das desonerações sobre as contribuições sociais, as renúncias fiscais também impactam a saúde pública. A diferença entre uma e outra é que a desoneração, como acontece com a folha de pagamentos, deveria envolver compensações do governo, como explica Vanderley. Já com as renúncias, o Estado simplesmente abre mão dos tributos para estimular a iniciativa privada. O que ambas têm em comum, no caso dos impostos e contribuições que financiam a saúde, é que representam menos recursos para garantir os direitos da população.
Ao abrir mão de parte do dinheiro destinado à saúde ou à previdência, o governo faz os chamados gastos tributários, isto é, despesas indiretas por meio de renúncia ou desoneração de tributos. Na prática, são perdas na arrecadação, com a entrada de menos recursos que poderiam ser usados para financiar os serviços que garantem os direitos sociais. De acordo com estimativa da Receita Federal, os gastos tributários com saúde em 2014 foram de cerca de R$ 23 bilhões, o que representa tudo o que a União deixou de arrecadar com os impostos pagos pelas famílias, pelos empregadores, pela indústria farmacêutica e pelos hospitais filantrópicos. Tal valor — invisível para o cidadão — representa aproximadamente 27% de todo o orçamento federal da Saúde no mesmo ano. (veja quadro)
Autor do livro SUS: o desafio de ser único e de uma série de estudos que apontam as disputas entre a saúde pública e a privada no Brasil, Ocké-Reis analisou os gastos tributários com saúde, entre 2003 e 2011, e concluiu que os recursos que deixam de ser utilizados pelo SUS favorecem o mercado privado de planos. Para ele, as renúncias fiscais têm diminuído as despesas dos brasileiros mais ricos e estimulado a “saúde” financeira dos prestadores privados — segundo ele, uma atividade econômica já altamente lucrativa. No artigo “Renúncia de arrecadação fiscal em saúde no Brasil: eliminar, reduzir ou focalizar?”, publicado em 2014, o pesquisador aponta que em 2012 as renúncias e desonerações foram responsáveis por 10,5% do faturamento dos planos de saúde. “Não adianta defender mais recursos para o SUS se não enfrentamos o problema do favorecimento dado ao setor privado”, destaca.
Setor privado favorecido
As medidas econômicas de desonerações e renúncias fiscais fazem parte de um contexto mais amplo de ameaça ao SUS e de benefícios dados ao setor privado. É o que acredita a pesquisadora Maria Angélica Borges dos Santos, da Escola de Governo em Saúde, vinculada à Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz). Ela explica que as desonerações são mecanismos de incentivo ao mercado. Como determina a Constituição, tanto a saúde quanto a educação são obrigações do Estado, que podem ser prestadas utilizando capacidade própria ou da iniciativa privada.
Em sua análise, enquanto na área da educação, a atuação privada e o capital estrangeiro entraram livremente nos últimos dez anos, a esperança era de que o SUS oferecesse algumas blindagens a essas mudanças que ameaçam os direitos da população. Porém, o avanço do setor privado, que deveria funcionar de forma complementar ao SUS e não de modo independente, tem levado a um cenário de favorecimento cada vez maior da chamada “medicina de mercado”. “O conceito que parece estar sendo abraçado pelo governo é o de que desonerar a saúde privada equivale a dar acesso à população a serviços de saúde”, enfatiza a pesquisadora.
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Segundo Maria Angélica, os recursos dos quais o governo abre mão de arrecadar são compreendidos como “investimentos públicos”. “Mas não se trata disso, porque o que ocorre é o fortalecimento da iniciativa privada e da lógica de consumo via planos de saúde”, explica a pesquisadora, ao concordar que quem perde são os cidadãos, com menos dinheiro para a área da saúde. De acordo com sua visão, trocar recursos que iriam financiar o SUS por desonerações aos planos privados não é garantir o direito à saúde e sim favorecer o predomínio da lógica financeira do “quem pode pagar”.
O que Maria Angélica faz questão de destacar é que a luta contra as desonerações é uma questão ideológica e não apenas técnica. É uma disputa entre um modelo que privilegia o sistema privado e outro que garante o acesso a todos os brasileiros. “O que se está discutindo não é tanto uma questão de valores financeiros, são valores em termos de princípios — saúde como direito de cidadania versus saúde como bem de consumo privado”, pondera. Na sua análise, por trás das desonerações, esconde-se o incentivo aos brasileiros a dependerem cada vez mais dos planos de saúde.
SUS ameaçado
De acordo com a Receita Federal, as desonerações podem compensar gastos realizados pelos contribuintes com serviços não atendidos pelo governo ou incentivar determinado setor da economia. Também servem para “promover a equidade” ou para compensar associações privadas que prestam serviço que deveriam estar a cargo do Estado, tais como hospitais filantrópicos. Já na visão da vice-presidente do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) e pesquisadora na área de economia da saúde da Ensp/Fiocruz, Isabela Soares Santos, essas medidas passam uma mensagem bem clara para a população: que o governo está abrindo mão da prestação de um serviço público.
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Para os cidadãos que fazem a opção pelo setor privado e deduzem os gastos com saúde no Imposto de Renda, o bolso pode ser aliviado em um primeiro momento, mas o enfraquecimento da saúde pública é um prejuízo a longo prazo para todos, alerta Isabel. “Esse segmento da população que utiliza o setor privado deixa de usar e defender o SUS”, comenta. Segundo ela, essa é talvez a principal armadilha das desonerações e renúncias fiscais. “Se as pessoas podem recorrer aos planos de saúde, para que investir na saúde pública? Como convencer a opinião pública de que a saúde é um direito?”, completa.
Em sua tese de doutorado, apresentada em 2009 na Ensp, Isabela constatou que a concorrência entre os sistemas público e privado privilegia os brasileiros mais ricos e favorece o consumo de planos. “A existência de dois sistemas em competição afeta negativamente o que é público”, alerta, destacando que o Brasil é o segundo maior mercado de planos de saúde no mundo, com 50,6 milhões de beneficiários em 2014, segundo dados da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).
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