Lenir Santos1 José Fernando Casquel Monti2
Nos dias 18 e 19 de maio de 2015, o Conselho Nacional de Justiça
(CNJ) promoveu em São Paulo a II Jornada de Direito da Saúde. No evento foram
votados e aprovados novos enunciados para orientação e uniformização dos
julgados da saúde pelo Poder Judiciário no mar de ações judiciais contra os entes
federativos. Os enunciados se aplicam à saúde pública (SUS) e à saúde
suplementar (planos e seguros privados de saúde).
Esse evento, mesmo sendo uma contribuição importante do CNJ
que muito louvamos, nos causa, de todo modo, uma sensação (a nós,
profissionais de saúde) de que os caminhos do SUS estão sendo bastante
labirínticos e tortuosos, uma vez que nos parece que tudo está a concorrer para a
perpetuação de suas mazelas, como o aprofundamento de sua desorganização
sanitário-administrativa, o seu desfinanciamento, as evasivas na solução de seus
reais problemas, como a própria judicialização, exceção que passa a figurar no
cenário nacional como se regra fosse; aceita e aperfeiçoada.
Na mesma semana da Jornada, em um evento em SP, que tratou
do tema da judicialização, tendo na mesa de debates operadores do direito, da
ANS e magistrados, tivemos o mesmo sentimento de estranhamento por perceber
que o Poder Judiciário, mesmo com todos os esforços que muitos de seus vem
desenvolvendo, ao lado do controle jurisdicional, atividades de definição e
determinação da política pública da saúde. Um papel de intervenção direta na
política de saúde, com definição de tecnologias e medicamentos e escolhas sobre
a garantia de determinados procedimentos e assim por diante.
Vê-se assim que a judicialização lamentavelmente se
institucionalizou e certamente passa a fazer parte do SUS como mais uma porta
de acesso; acesso que muitas vezes viola o direito à igualdade de uma coletividade que adentra o SUS pelas suas filas com enfrentamento direto de suas dificuldades.
Pela judicialização são possíveis medicamentos e serviços definidos pelo ato
médico individual ao arrepio da Comissão Nacional de Incorporação de
Tecnologias em Saúde (CONITEC).
Nenhuma palavra a respeito das causas da judicialização, que
certamente se iniciou, e continua, sem dúvida, a ser a inadequação dos serviços
públicos aos reclamos sociais. Um sistema que tem sérias dificuldades em razão
de causas macrossistêmicas, dentre elas, o subfinanciamento, a formação
inadequada de recursos humanos às necessidades do SUS e a gestão pública
ineficiente por falta de modernização de suas formas e processos e, às vezes, por
incompetência técnico-administrativa. Um SUS apedrejado pela mídia, chamado
de quebra galho e desrespeitado em suas diretrizes e princípios constitucionais.
De um lado, o Poder Executivo insistindo há 27 anos no
subfinanciamento da saúde, que não consegue passar de 3,9% do PIB, quando já
deveria ter atingido 8% se tivesse havido planejamento de seu crescimento ao
longo desse tempo fundado nas necessidades de saúde da população; a
integralidade da assistência que não pode ter o céu como limite, pendente até
hoje de um pacto Estado-sociedade para definir que SUS queremos e podemos.
Esses desacertos se somam ao do Judiciário que decide medicamento,
procedimento, o como, o quanto, a tecnologia a ser incorporada, em acordo a
uma determinada prescrição médica.
A formação de recursos humanos, ainda hoje pautada pelo setor
privado, visando ao especialista que interessa ao mercado privado, em especial os
que dominam sofisticadas tecnologias em saúde, nem sempre necessárias na
proporção em que são solicitadas; a inovação tecnológica brasileira que não se
desenvolve para garantir suficiência em áreas de dependência do SUS e assim por
diante. Essas questões são essenciais para a consolidação e maturidade do SUS.
O Poder Legislativo a deixar, algumas vezes, dúvidas sobre quais
interesses quer ver atendidos. Veja-se o caso da Lei 13.097 que abriu a saúde ao
capital estrangeiro, afrontando a Constituição; a votação recente das emendas
impositivas e a consagração do baixo financiamento da saúde (EC 86, de 2015),
isso sem falar da PEC 451 que tramita no Congresso Nacional, que guarda em seu
seio a potência de subverter o que foi conquistado como princípios e diretrizes
próprios de um sistema público de saúde.
O Poder Judiciário tem assumido, muitas vezes, o papel do
Executivo num forte ativismo judicial, definindo as políticas de saúde de maneira
individualizada, em detrimento do coletivo e da organização constitucional do
SUS. Não somos contra se recorrer ao Judiciário em razão de omissões governamentais; somos contra não atacá-las de frente, em suas raízes mais
profundas, sem desvios ou tergiversação com aprofundamento das desigualdades
sociais.
Muitos interesses em jogo: o poder médico; o pleito por
atendimento específico para pacientes de planos de saúde; a medicina privada
buscando no SUS somente o que lhe interessa; os interesses das indústrias de
fármacos e de equipamentos; as bancas de advocacia; interesses privados de
mercado pautando a política pública da saúde.
A responsabilidade solidária tanto defendida pelo Judiciário
desorganiza o SUS por desconsiderar as desigualdades federativas e as
iniquidades fiscais decorrentes, violando o modelo de saúde fundado na atenção
básica como ordenadora do sistema. A incorporação pelo médico de tecnologias e
fármacos afronta as definições dos gestores do SUS nas suas comissões
intergestores e desrespeita os regramentos sobre incorporação de tecnologias da
CONITEC e a igualdade da assistência, uma vez que não se pode incorporar
tecnologia a esmo, não garantida a todos.
Parece-nos que tudo isso é desconhecido ou não levado em conta
nos julgamentos judiciais, o que nos leva a crer no desconhecimento dos
regramentos constitucionais organizativos do SUS e das responsabilidades
compartilhadas de acordo com a inserção do ente federativo na rede de atenção à
saúde na região de saúde, em respeito as suas características demográficas,
socioeconômicas, espaciais e epidemiológicas.
Infelizmente a exceção virou regra. Judicializar, algumas vezes,
pode ser mais fácil do que enfrentar a fila no SUS; além do mais, obter tecnologia
e medicamento sem registro no país é possível pela via judicial. Muitas vezes, vale
mais uma decisão do FDA no Brasil do que uma da própria ANVISA. E nessa visão
equivocada de tudo para todos, que não há em nenhum sistema público de saúde
do mundo, o Cartório Distribuidor acaba por se transformar em uma porta de
entrada do sistema público de saúde.
A judicialização da saúde tem sido um fenômeno crescente em
países pobres ou em desenvolvimento. Colômbia, Peru, Chile, Gana, África do
Sul, Brasil têm padecido desse mal; desloca-se a política pública do Executivo e
Legislativo para a esfera do controle jurisdicional. Não há judicialização nesta
proporção em países centrais. A quem interessa incorporar tecnologias e
fármacos sem análises de seus órgãos técnicos competentes? Quase todos os
medicamentos vendidos no Brasil são sempre mais caros do que quando vendidos
em países centrais e não é somente porque o imposto aqui é mais alto.
Quando vamos todos nós, Estado e sociedade, encarar esses
problemas e buscar uma concertação pública para enfrentamento dos reais
problemas da saúde? Ou vamos preferir medidas que aperfeiçoem a
judicialização, incentivando o seu incremento? O ativismo judicial infelizmente
não parece uma boa medida. Ainda mais quando incentiva o modelo curativo e
não o modelo de promoção e proteção da saúde, conforme determina nossa
Constituição.
Há um mês, os jornais veicularam a noticia do parto da princesa
Kate Middleton da Inglaterra no serviço público de saúde. Parto normal,
realizado por profissionais de saúde não médicos, com 12 horas de internação,
enquanto no Brasil, um país que aplica 3.9% do PIB na saúde, campeiam taxas
incríveis de cesarianas, tanto no setor privado como no público, e se houver
recusa do serviço público, a judicialização poderá, muitas vezes, mudá-la;
bastaria, talvez, o médico solicitar e dizer que a paciente corre risco de vida.
Finalmente, com nossa vênia, ousamos algumas medidas de
longo e curto prazo visando à desjudicialização da saúde:
- Compromisso do Poder Executivo com o planejamento de longo prazo da saúde que incorpore as mudanças atuais e futuras da sociedade em todos os seus aspectos (epidemiológico, demográfico, socioeconômico, cultural, ambiental, estilo de vida), com indicação de per capita mínimo regional para atendimento das necessidades de saúde e metas de alcance a ser monitoradas;
- Definição entre sociedade e Estado dos conteúdos da integralidade da assistência: o SUS que queremos e podemos;
- Comprometimento do Poder Executivo com a reforma administrativa para a melhoria da gestão pública;
- Atuação para que a formação de profissionais de saúde atendam as necessidades do SUS;
- Revisão das regiões de saúde e celebração dos contratos organizativos de ação pública da saúde para a fixação de responsabilidades dos entes federativos na região de saúde e suas metas sanitárias;
- Instituição obrigatória de comissões administrativas, estaduais e regionais, de análise das demandas por saúde como medida de prevenção da instauração de conflito e a consequente judicialização, já apontando, de modo justificado, de quem é a responsabilidade (ente federativo) na garantia do que se demanda;
- Pacto entre o Poder Executivo e Judiciário para a desjudicialização, como a fixação da justiça federal para fornecimento de medicamentos e procedimentos de alto custo por ser da União essa obrigação e chamamento do Estado à lide em demandas contra município de menos de 200 mil habitantes, por exemplo, e respeito às pactuações intergestores nas decisões judiciais, abandonando-se o conceito da responsabilidade solidária em saúde por não ser constitucional ante o disposto no art. 198.
Quem sabe assim possamos caminhar mais um pouco para
garantir um sistema de saúde verdadeiramente justo, que privilegie o sentido do
direito à saúde sem a contaminação do consumo de saúde e, sobretudo, que
atenda os reais interesses da sociedade como um todo.
1 Doutora em saúde pública pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), advogada em direito da saúde e gestão pública e coordenadora do curso de especialização em direito sanitário IDISA-Sírio Libanês.
2 Médico, Secretário Municipal de Saúde de Bauru - SP, Presidente do Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde (CONASEMS) e Professor Assistente do Departamento de Medicina da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). 2
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