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terça-feira, 11 de agosto de 2015

Regulação de trabalho médico não é coisa de ditadura

por Claudia Collucci na FSP

A presidente Dilma Rousseff resolveu comprar mais uma briga com as entidades médicas. Na semana passada, no pacote da comemoração de dois anos do programa Mais Médicos, ela publicou decreto criando um cadastro nacional de especialistas, o primeiro passo para a implantação do Mais Especialidades, uma das suas promessas na última campanha eleitoral.

Entre outras determinações, o decreto diz que o Ministério da Saúde irá dimensionar o número de médicos, sua especialização, sua área de atuação e sua distribuição em todo território nacional, de acordo com as necessidades do SUS (Sistema Único de Saúde). Também estabelecerá as prioridades de abertura e de ampliação de vagas de formação de médicos especialistas no país, além de regulamentar a reordenação de vagas para residência médica.

O governo diz que o banco de dados vai melhorar a distribuição de médicos especialistas e a aplicação de políticas públicas. Já as entidades médicas afirmam que o decreto, criado sem ouvi-las, tira o poder dos conselhos regionais e da Associação Médica Brasileira (AMB) na formação de especialistas. Elas ameaçam entrar na Justiça contra o decreto.

"Mais uma vez, o governo federal usa a sua mão de ferro estatal contra os médicos sem que sejam ouvidas previamente as sociedades médicas, a academia, os estudantes e demais entidades. Unilateralmente interfere de forma preocupante, lembrando países vizinhos com vieses totalitários", diz nota da AMB.

Setores da oposição ao governo manifestaram posição semelhante à categoria. "É o AI-5 da medicina", disse o líder da bancada do DEM, Mendonça Filho (PE), citando o Ato Institucional símbolo do período mais duro da ditadura militar (1964-1985). O senador e ortopedista Ronaldo Caiado escreveu na sua página no Facebook: "O governo optou por destruir todas as sociedades de especialidades médicas e implantar o que tem de mais atrasado no modelo cubano (...) Obriga o cidadão médico a trabalhar onde o governo determinar e ainda quer interferir na especialização dele. Isso funciona bem em ditaduras!"

Não é verdade. Isso não acontece só em Cuba ou outras ditaduras. Vários países desenvolvidos e democráticos –como o Canadá, a Alemanha, a França, a Holanda, a Irlanda e o Reino Unido– têm sistemas de gestão e de planejamento de recursos humanos em saúde centralizados no governo federal. Em última instância, é o Ministério da Saúde que define quais especialidades médicas são prioritárias para o sistema de saúde.

EXPERIÊNCIAS INTERNACIONAIS

Na Alemanha, por exemplo, se há superoferta de determinada especialidade, o governo veta novas entradas. Na Austrália, existe um comitê que trabalha para o governo, analisando a oferta e a demanda de especialistas e as adequam de acordo com as necessidades da população.

No Canadá, há 20 anos existe um comitê ligado ao Ministério da Saúde que planeja a mão de obra médica e realiza estudos sobre oferta e demanda. O Reino Unido também regula o ingresso de especialistas no mercado. E, sim, Cuba também faz isso.

Alguns estudos têm reforçado que não há um método perfeito de planejamento de médicos, mas sugerem que o caminho sejam modelos baseados na necessidade da população, e não aqueles praticados nos Estados Unidos e no Brasil – com médicos controlando o acesso à profissão e a avaliação da prática.

Já passou da hora de o governo federal assumir para si a responsabilidade de planejar e gerir os recursos humanos em saúde. Quantos profissionais são necessários, de que tipo, onde, quando e para quê? É uma tarefa árdua, complexa e que fere muitos interesses, mas que é obrigatória em qualquer país sério. Do contrário, a gente vê discrepâncias como as que existem hoje, por exemplo, má distribuição geográfica de médicos, superoferta de algumas especialidades e deficit de outras. A medicina de família e comunidade, por exemplo, representa apenas 8% do total de vagas de residência médica. E dessas, menos de 30% têm sido ocupadas.

ATENÇÃO PRIMÁRIA

Em países com uma atenção primária sólida, como Holanda, Espanha, Portugal, Canadá e Inglaterra, cerca de 40% das vagas de residência são para medicina de família –que é obrigatória para quem vai trabalhar na atenção primária do sistema de saúde.

Nunca é demais reforçar que a atenção básica pode resolver de 80% a 90% das queixas em saúde, sem necessidade de encaminhamento a especialistas. Mas, para isso, é preciso uma rede bem organizada, unidades com boa infraestrutura e médicos e outros profissionais de saúde bem formados e bem pagos, cenário bem diferente daquele que se vê na maior parte do país.

Por mais ideais e boas intenções que possa ter, o médico busca bons salários, reconhecimento profissional, qualidade de vida e condições de trabalho, como qualquer outro profissional. É legítimo. Se como especialista ele poderá ganhar até dez vezes mais do que um médico de família, fica difícil convencê-lo que é bacana trabalhar nas áreas pobres, distantes e violentas e em unidades de saúde precárias e superlotadas (e, de brinde, lidar com gestores incompetentes e com prefeitos que atrasam salários).

Como vocês veem, há muitas questões complexas em jogo. Não é com mais um decreto goela abaixo dos médicos que o governo federal resolverá distorções crônicas do sistema de saúde. Mas tampouco meias verdades e corporativismo médico contribuem para um debate qualificado.

Em tempo: Como mencionei anteriormente, vários países têm comitês, inclusive com a representação dos médicos, para tratar do planejamento dos recursos humanos em saúde. Não seria uma boa saída reproduzirmos isso no Brasil também em vez da imposição autoritária desse assunto por decreto-lei?

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