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terça-feira, 1 de setembro de 2015

Entrevista: Lumena Almeida Castro Furtado (Secretária de Atenção à Saúde do MS)

no ConsenSUS


Com 30 anos de experiência e atuação nas mais diversas áreas do Sistema Único de Saúde (SUS), Lumena Almeida Castro Furtado é psicóloga, sanitarista, mestre em Saúde Pública e doutoranda na área de gestão. Já foi secretária municipal adjunta de saúde em São Bernardo do Campo e secretária municipal de saúde em Mauá.

Pela terceira vez no Ministério da Saúde, comanda hoje uma das secretarias mais estratégicas do ministério: a Secretaria de Atenção à Saúde (SAS). 

Ciente da responsabilidade que tem em mãos, faz questão de esclarecer que, apesar de estar à frente da SAS e de certa forma simbolizar aquele espaço, não tem dúvidas de que todo o trabalho lá desempenhado é fruto do esforço coletivo de muitas pessoas. “Aqui na SAS, que é uma secretaria grande e com muitas áreas nós temos feito um grande trabalho de construção coletiva a fim de cumprirmos com o nosso trabalho da melhor maneira possível”, enfatiza ao nos receber para conceder esta entrevista.

Nas próximas páginas, a secretária fala dos problemas enfrentados na Atenção Especializada (AE) no SUS e sobre as estratégias que o Ministério da Saúde tem desempenhado na tentativa de sanar o gargalo que existe atualmente no cuidado especializado.

Consensus Quais são hoje, os principais problemas da Assistência Ambulatorial Especializada no SUS?

Lumena Almeida – O Sistema Único de Saúde avançou muito nos últimos anos na articulação e na organização da Atenção Básica (AB) com muitos dispositivos que têm feito com que seja cada vez mais universal o acesso a AB. Avançamos com os municípios assumindo fortemente o processo de gestão da Rede de Atenção Básica e com a incorporação de profissionais nas equipes de AB, o que tem permitido uma ampliação da qualidade. E com o Programa Mais Médicos, nos últimos anos, 63 milhões de brasileiros que não tinham acesso a um cuidado médico continuado passaram a ter esse cuidado pela Atenção Básica.

Nós temos hoje no Brasil, fruto do esforço dos estados, dos municípios e do Governo Federal, um processo de cuidado na AB muito mais ampliado e qualificado.

Por outro lado, temos também o maior sistema público de transplante do mundo. Hoje quase 100% dos transplantes no Brasil são públicos. Outro exemplo diz respeito ao acesso público à hemodiálise que no Brasil é também de quase 100%. O SUS tem avançado fortemente em alguns pontos do sistema de uma forma mais global, no entanto, temos um ponto dessa rede que é a Atenção Especializada em que tivemos pouca acumulação coletiva nos últimos anos no SUS. 

Temos talvez, dois ou três pontos mais importantes de problemas na Atenção Especializada. O primeiro consiste na fragmentação do cuidado nessa área. Temos em alguns locais, um acesso melhor ao diagnóstico, mas não conseguimos dar continuidade ao tratamento. Já em outros, nem mesmo o diagnóstico está sendo garantido de forma mais ampla. 

Nós temos uma forma de organização do cuidado especializado que ainda é por procedimentos, ou seja, a consulta é especializada, o exame é especializado. Não é um processo integral de cuidado. Acho que o primeiro problema consiste na fragmentação da forma como se organizam hoje os pontos de atenção na Atenção Especializada. Isso traz também o segundo problema que é ainda a insuficiência da oferta que temos nessa área, fazendo com que o acesso seja precário. Esse é segundo ponto do problema: a insuficiência da oferta que ainda é agravada por uma desigualdade regional entre as várias Regiões de Saúde do Brasil. Das 438 Regiões de Saúde, se você pegar qualquer exemplo da área especializada e fizer um diagnóstico de acesso regional, é possível perceber uma enorme desigualdade. Nós temos alguns problemas de saúde que demandam AE em estados com 0% de cobertura e outros com 100% de cobertura, ou seja, temos uma desigualdade regional importante do acesso.

Consensus Tendo em vista os problemas que envolvem a Atenção Especializada, quais ações o Ministério da Saúde tem desenvolvido para a construção de uma política para esta área?

Lumena Almeida – O cuidado especializado pressupõe uma integralidade que não será dada apenas com o cuidado ambulatorial, portanto também o cuidado hospitalar tem que estar presente nesse processo de desenho de uma política que possa dar conta dessa perspectiva. Estamos construindo diretrizes que estão sendo discutidas com o CONASS e com o Conasems sempre na direção de alguns pontos: buscar a oferta de módulos integrais de cuidado que acabem com a fragmentação e no qual possamos de fato garantir acesso às necessidades que aquele cidadão tem naquele momento. Essa é uma forte diretriz para a construção que nós estamos fazendo. Para isso vamos ter de pensar formas de financiamento e formas de modelagem de organização de serviços. Temos que investir em possibilidades que possam nos ajudar a garantir esse cuidado integral. Vamos ter que investir fortemente também no processo de regulação que possa dar conta de garantir o acesso com base em critérios clínicos, em critérios de classificação de riscos e de priorização do acesso às pessoas que necessitam daquele cuidado. 

Também teremos que investir no processo de informação, de educação permanente, de criar possibilidade de troca entre os profissionais e nós temos um foco nesse desenho na Política da Atenção Especializada que são as Regiões de Saúde, porque temos muita convicção de que o caminho de pactuação e construção dessa rede de cuidados serão as Regiões de Saúde. 

A regionalização é um caminho sem volta no SUS e cada vez mais temos avançado nessa discussão. O Pacto pela Saúde há alguns anos colocou centralidade na Região de Saúde e nos convidou a radicalizar isso que a própria Constituição já trazia como princípio do SUS. 

Acredito que a gente já vive uma situação diferente da que vivíamos há dez anos. As 438 regiões de Saúde no SUS são hoje uma realidade. Elas são um espaço regional de gestão compartilhada e é nesse espaço que a vida real acontece: com conflitos, problemas, diferenças, mas também com consenso, pactuação e construção de estratégias regionais. Estamos investindo no espaço regional como o espaço de construção e pactuação dessa rede de cuidados que deve dar conta de uma Atenção Especializada com qualidade integral.

Consensus Qual é o peso das doenças crônicas na Atenção Especializada?

Lumena Almeida – Na nossa discussão sobre um processo de cuidado para a Atenção Especializada nós temos assumido como uma das diretrizes, ficarmos atentos a esses dois fluxos de necessidades da população. O primeiro que é aquele que advém das doenças crônicas que exigem um cuidado continuado, em um acompanhamento longitudinal das pessoas e em uma multiplicidade interdisciplinar de necessidades que elas demandam. Isso com certeza terá sempre um peso importante na formulação dessa política de atenção na área especializada.

No entanto, temos também um segundo eixo colocado nesse processo que é o fato de precisarmos, ao mesmo tempo, nos dedicarmos àquelas situações de saúde que demandam cuidado transitório e resolutivo. Ou seja, também temos que pensar em estratégias dentro desse processo de qualificação do cuidado especializado para que avançarmos nesse cuidado integral porque muitas vezes em uma mesma especialidade teremos que ter estratégias para um cuidado mais continuado e também para um cuidado mais imediato, resolutivo e transitório.

Consensus O Ministério da Saúde está trabalhando no desenvolvimento do Programa Mais Especialidades, de maneira que ele se constitua como um conjunto de estratégias para ampliação do acesso a consultas, exames e procedimentos para determinadas especialidades. Como esse programa vai funcionar e como ele irá contribuir para a solução do gargalo que existe na Atenção Especializada?

Lumena Almeida – O ministério está formulando e iniciando um processo de pactuação com o CONASS e com o Conasems sobre o Programa Mais Especialidades. Nós temos alguns objetivos importantes a atingir com esse programa que consistem em ampliar e qualificar o acesso no tempo oportuno de forma integral a consultas, exames e a tratamentos especializados, além do acesso à tecnologia adequada. É fundamental esclarecer que o acesso à tecnologia adequada é essencial porque nem sempre mais consultas, mais exames e/ou mais medicamentos significam melhor cuidado. Então a gente também quer priorizar nessa discussão o acesso à tecnologia adequada que nos ajude a cuidar melhor das pessoas nessa área.

Consensus Como resolver os problemas das filas e listas de espera na Atenção Especializada?

Lumena Almeida – Esse é um desafio que estamos trabalhando no processo de formulação. Temos convicção de que não será possível resolver a questão da Atenção Especializada se não for de maneira articulada com a AB, com as Redes de Urgência e com o cuidado ambulatorial e hospitalar. Acredito que investir em novos serviços específicos para dar conta de tudo que se refere à AE não é a solução para o problema. Teremos que ser capazes de pensar em uma rede de cuidados onde o cuidado especializado possa estar presente em vários pontos da rede e com base em problemas específicos, pensarmos módulos de cuidados integrais que possam garantir o cuidado com qualidade.

Consensus Sabemos que o acesso direto à Atenção Ambulatorial Especializada por demanda espontânea é uma das principais causas das filas e das dificuldades de se conseguir consultas com especialistas. Esse é um padrão de comportamento da sociedade que tem por hábito buscar diretamente o atendimento com esses profissionais. Como enfrentar esse desafio de mudar o padrão de comportamento desses pacientes?

Lumena Almeida – Na verdade a responsabilidade por ordenar esse fluxo não é do usuário. É do gestor. E um dispositivo que temos colocado de maneira central na discussão dessa política de cuidado especializado é a questão da regulação. Nós teremos que fortalecer os processos regulatórios nas Regiões de Saúde para que possamos verdadeiramente assumir que a regulação desse fluxo tem que estar na mão do gestor. Hoje o usuário vai por conta própria procurar atendimento porque muitas vezes recebe um pedido de exame e tem que ir atrás desse exame. Essa responsabilidade não pode ser deslocada para o usuário. Ela tem que ser deslocada para o sistema, para o gestor. E a forma que entendemos que qualifica o processo de organização desse cuidado é a regulação. Estamos investindo muito na qualificação de processos regulatórios regionais que nos ajudem a organizar este fluxo.

Consensus No SUS há experiências relevantes de utilização de equipes interdisciplinares em ambulatórios especializados. O Ministério da Saúde conhece essas experiências? Em caso positivo, pretende aproveitá-las para resolver os problemas da Atenção Ambulatorial Especializada?

Lumena Almeida – Nós temos feito junto com CONASS e Conasems um esforço de ampliar a escuta para as experiências estaduais e municipais que colocaram na sua agenda esse desafio de qualificar a Atenção Especializada. Temos feito várias oficinas, ouvido vários municípios e estados e ido às Regiões de Saúde. Enfim, temos feito muitos arranjos de escuta para podermos de fato nos deixar impregnar pelas experiências que têm enfrentado esse desafio. 

É importante ressaltar que nenhuma experiência vai ser seguida como ela está posta porque o país tem muitas diversidades. Esse é um ponto que estamos trabalhando com muito cuidado na discussão da política: construir uma política com diretrizes e estratégias que orientem a reorganização do cuidado especializado, mas que estejam absolutamente abertas à diversidade regional no Brasil. Uma experiência que dá certo numa região do interior de Minas Gerais pode não ser a mesma que vai dar certo no Alto Solimões, por exemplo, ou uma experiência que pode ser muito exitosa em uma região metropolitana bastante adensada pode não ser a mesma que vai ser adequada para uma região com um vazio assistencial importante. Sendo assim estamos ouvindo muitas experiências e aprendendo com todas elas. É muito bom conhecer a diversidade desse SUS que dá certo, desse SUS que está ali de forma bastante viva e articulada, criando experiências importantes, mas é importante ressaltar que teremos que fazer com base nas escutas, uma proposta que dialogue com a diversidade nacional.

Consensus Quais são hoje as especialidades com maior demanda para atender as necessidades da população e o que o Ministério da Saúde tem feito para reverter essa situação?

Lumena Almeida – Temos feito várias escutas de processos com as Centrais de Regulação, com os gestores e com os profissionais e temos notado diferença entre regiões. Há algumas especialidades que eu poderia dizer que em todos os estados brasileiros apresentam problemas. A oftalmologia e a ortopedia se destacam nesse processo como especialidades onde todos relatam dificuldade de acesso. 

A cardiologia é também uma área bastante importante, assim como a urologia, nefrologia e a endocrinologia são áreas que estão apresentando dificuldades. 

No entanto temos algumas especialidades que na relação com os gestores municipais, estaduais e em pesquisas feitas com a população aparecem como especialidades que demandariam cuidado mais importante. Junto a essas especialidades a área de oncologia também aparece como um vazio assistencial significativo para pensarmos em dispositivos que ajudem na ampliação do cuidado integral.

Consensus Por se tratar de uma área dependente da formação de médicos especialistas para dar conta das demandas, quais ações o MS tem feito para tratar essa questão da formação de recursos humanos?

Lumena Almeida – Esse é um excelente questionamento. O Brasil, com o Programa Mais Médicos, mudou radicalmente a forma como o Estado brasileiro está lidando com a formação de médicos no Brasil. Até o Programa Mais Médicos a formação médica não era regulada de forma global pelo Estado brasileiro e respondia, às vezes, muito mais aos interesses corporativos e de mercado do que exatamente à necessidade do SUS que fortemente coloca prioridades para a formação médica no Brasil.

Nessa questão da formação médica temos dois eixos muito importantes: o primeiro trata da graduação dos médicos e traz a discussão da necessidade de ampliação do número de médicos no Brasil. Acredito que essa polêmica hoje já está superada, porque todos os atores que dialogam conosco como as entidades médicas, as universidades, a sociedade, o governo etc., já têm o consenso de que no Brasil faltam médicos. 

Nossa proporção médico/habitante é muito menor do que em todos os países que têm sistemas nacionais universais. Nós enfrentamos esse debate com muita radicalidade e vale ressaltar que a presidente Dilma, com o Programa Mais Médicos teve muita coragem ao enfrentar conflitos de interesses e ao enfrentar a reação de setores da sociedade que se colocaram contra o programa que tem feito um movimento sem volta, estruturante e importante para conseguirmos resolver o problema da falta de médicos no Brasil.

Hoje temos a presença de médicos estrangeiros que vêm nos ajudar no provimento emergencial daquelas vagas onde os brasileiros não estão conseguindo se colocar, mas também estamos investindo na abertura de novas faculdades de medicina. No dia (10/7), o ministro Arthur Chioro, junto com o ministro da educação, Renato Janine, finalizou um edital exitoso para levar mais faculdades de medicina para municípios brasileiros que não tinham essa possibilidade e que têm estrutura de rede para poder receber essas faculdades. É importante dizer que isso tem sido feito com muita preocupação com a equidade. Nós temos hoje, nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste investimento diferenciado para que possamos ampliar também a oferta de faculdade de medicina nessas regiões, aproximando-as da oferta já existente nas regiões Sul e Sudeste, além de estarmos ampliando também a oferta nessas duas regiões.

Esse é um movimento sério, cuidadoso e que tem muita preocupação com a qualidade do ensino, com o conteúdo. Podemos citar, como exemplo, a mudança nas diretrizes curriculares dos cursos de medicina que, com o Mais Médicos, trouxe para dentro da formação e da graduação a obrigatoriedade desse aluno estar inserido no SUS, compreendendo as necessidades da população brasileira. Então podemos afirmar que esse é um primeiro movimento muito forte do Estado brasileiro assumindo a regulação da formação médica.

O segundo movimento que também dialoga com o Mais Especialidades de forma intensa diz respeito a mais uma diretriz do Programa Mais Médicos que se direciona à formação de especialistas. Já está em curso, em uma parceria do Ministério da Saúde com o Ministério da Educação, um grande programa de regulação, acompanhamento e qualificação das residências médicas com a abertura de novas vagas de residência que até 2017. Serão abertas 11.400 novas vagas de residência médica e acho até que abriremos mais porque estamos construindo uma estratégia que vai levar a um número maior que este, universalizando o acesso dos médicos que se graduam em medicina à residência. Hoje você tem um número importante de médicos que se formam e não conseguem acesso à residência porque não são oferecidas vagas suficientes para isso. Então haverá esse primeiro impacto de universalização do acesso.

E o segundo impacto é o Estado brasileiro dizer onde é preciso formar mais especialistas, assumindo para si a responsabilidade de regular a definição de quais especialidades serão oferecidas mais vagas. Nós chegamos em um momento no país, por exemplo, em que quase não havia pediatras e psiquiatras nos municípios e nos estados para dar conta das necessidades que temos no SUS. Por outro lado, em algumas outras especialidades havia uma formação muito maior do que a necessidade do sistema.

Quem tem que dizer se é necessário oferecer mais vagas de pediatria ou de outra especialidade é o Estado brasileiro. E como isso será feito? Olhando-se para o SUS. 

Também é importante mencionar que até mesmo o sistema privado de saúde sente os efeitos da formação insuficiente em algumas áreas. Não é um problema apenas do sistema público de saúde. É um problema também do sistema privado e por isso, temos feito debates com entidades que congregam serviços de excelência na área privada e que congregam especialidades médicas. Essa pergunta é muito importante porque trata de uma ação estruturante hoje do Ministério da Saúde, do Governo Federal, com o Programa Mais Médicos e que tenho certeza que vai mudar o jeito do Brasil lidar com essa agenda.

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