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sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Doutor Miranda, o médico do postinho

por JOSÉ CARLOS FERNANDES (Texto publicado na Gazeta do Povo)


A cena se repete. O médico Sílvio Miranda, 57 anos, vai à padaria e encontra uma paciente. Cumprimentam-se na fila, “olá”, cada um com sua meia dúzia de francês para pagar. Eis que ela levanta a blusa – “doutor, o que será essa pinta que me apareceu aqui, ó”. Tem outra boa. De repente, rola um salseiro na sala de espera. “Não e não”, decreta o senhorzinho à enfermeira. “Exame de próstata, só se for com o doutor Sílvio...”

Esses arroubos de intimidade só têm uma explicação – o doutor e seus pacientes são vizinhos. Compram pão no mesmo lugar. Não é de hoje. Salvo engano da turma da estatística, Sílvio Miranda é o profissional de medicina brasileiro há mais tempo em atividade numa mesma unidade de saúde.

Chegou à Vila Santo Inácio, uma área outrora alagadiça do Boqueirão, em 1979. Detalhe: ele não vai até lá – ele mora lá. Assim que começou suas atividades, ainda estudante, deixou as Mercês – seu bairro de nascença – e se mudou para perto do serviço. Fazia parte de sua práxis. Poderia chegar de bicicleta, seu meio de transporte oficial, a bordo do qual costuma ser visto, circulando pelas cercanias da Rua Maestro Carlos Frank. Lá se vão 36 anos, tempo em que se tornou por honra e mérito o “médico do postinho”, título que carrega como se fosse uma comenda do Cruzeiro do Sul.

A história de Sílvio com a saúde veio pelo avesso. Tentou vestibular de Veterinária e não passou, graças ao bom Noé. Ano seguinte, arriscou Medicina. Banhos de lama de nada adiantaram, a cabeça do moço estava em outras latitudes. Não tinha sonhos de jalecos alvaiades, mas de revolução. Membro de um esquerdíssimo grupo de jovens da paróquia, andava anestesiado pelas teologias libertárias. Queria partir em missão para Roraima. Era ledor de Leonardo Boff e de João Batista Libânio. Chegou mesmo a pensar em ser padre, no que foi dissuadido durante um retiro inaciano. O celibato não lhe caía bem.

Aconteceu que arrumou uma Roraima mais próxima – a então miserável Vila Santo Inácio, espremida entre a linha de trem e o rio, território de evangelização da mítica freira vicentina Teresa Araújo. A religiosa o recebeu como a um pródigo, avisando à turma da ocupação que aquele estudante um dia seria o médico deles. Como em toda profecia, encontrou desdéns: “Isso não dá dinheiro, seu moço”.

Pois quem duvidou mordeu a língua. Três décadas depois, os moradores ainda podem ver, da esquina, vindo a pé, o doutor prometido pela “irmã Araújo” – como a chamavam. Responde por mil famílias, 4 mil pessoas. Casado com Maria da Graça, médica como ele, têm três filhos, todos boqueirãoenses. Guarda o mesmo jeito de piá. Parte da boa forma deve à bicicleta – sua ambulância –, parte a suas escolhas. Explico. Sempre se fez três perguntas: por que há ricos e pobres; por que sofremos tanto; e qual o sentido da vida. No consultório da vila encontra respostas, no atacado e no varejo.

Clínico geral, sanitarista e médico da família, Sílvio atua numa área que desconhece o sentido da palavra tédio. As consultas exigem tempo e afeto. As visitas a domicílio pedem disposição infinita para a prosa. Quem nunca viu uma equipe de saúde da família em ação deveria se coçar. Dá vontade de ser um deles. “A gente não dá remédio para dormir. A gente quer entender por que o paciente perdeu o sono”, resume o médico missionário.

A pergunta presa ao nosso gogó é por que diabos não existem mais tipos como doutor Miranda. Ele não atira pedras em seus colegas de ofício. Confessa que já se alistou entre os que anunciavam a falência múltipla do humanismo médico. Mas recuou. Costuma ser preceptor de uns tantos acadêmicos que vão até a unidade e vê nessa turma a tal da chama que, tempos atrás, o trouxe até ali. Acredita que se entregar é próprio do ser médico – e que muitos não o fazem seduzidos pela crença de que só podem exercer a medicina se estiverem munidos da mais alta tecnologia, feito astronautas de Marte.

O que diria aos médicos que agem como mecânicos de concessionária autorizada? Ora, que medicina da família é tecnologia tanto quanto – tecnologia humana, do berço até a cova. Num rolê com doutor Miranda, bem se nota. Sua prosa com o pedreiro aposentado Valmor, com a ambulante Silvana e com a vó que cuida da neta, dona Terezinha de Jesus, é o tal do mundo sonhado. Não é só ciência – é bem melhor.

No mais, tem a padaria – conversas na fila do caixa, convenhamos, são um pedacinho do céu. Bons médicos recomendam.

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