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segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

Ciência, não ciência e reforma psiquiátrica


Desde o final do século XVIII, ao iniciar sua formulação como campo de conhecimento, a Psiquiatria tem se defrontado com um dilema de identidade relacionado à sua origem.

Embora nascida no território objetivo das ciências médicas, seu objeto de investigação - a psique humana - compreende a subjetividade como dimensão irrefutável na construção do seu campo de conhecimento. Isto se impôs como seu maior desafio, tornando-a uma ciência interdisciplinar por princípio.

Assim, a Psiquiatria não pode obter uma única certidão de nascimento nas ciências naturais por ter outro registro, este, nas ciências humanas.

Ao ser incumbido pela Assembleia da Revolução Francesa de realizar um ordenamento nos asilos parisienses de Bicêtre e La Salpêtrière, Pinel tratou de separar o que considerava “alienação” e o que percebia como mero "problema social”. Criou-se então uma falsa dicotomia, como se uma condição não se comunicasse nem afetasse a outra.

Ao longo dos dois séculos seguintes, sob influência da matriz biológica de entendimento, a subjetividade humana passou a se chamar de “doença mental”, sendo constituído um conjunto de práticas que se revelaram como verdadeiras “tecnologias de exclusão”.

Legitimados por essa concepção organicista, os manicômios proliferaram, promovendo o ocultamento e a reclusão dos pacientes psiquiátricos. Esses dispositivos de triste fama e memória, recorrentemente atentaram contra os direitos e contra a dignidade humanas.

Dessa maneira, a internação psiquiátrica foi erigida no imaginário da sociedade como a melhor forma de tratamento e, apesar do insucesso das iniciativas de transformação do hospital psiquiátrico ao longo da segunda metade do século XX, esse modelo permaneceu hegemônico até os anos '70.

A ciência tem como princípio a colocação do conhecimento em permanente estado de suspensão. Se ficar estagnada - abrindo mão de seu dinamismo - passa a ser qualquer outra coisa deixando de ser ciência.

Ao longo da História - mesmo na vigência de períodos obscurantistas - os paradigmas científicos foram alterados em face de novas ideias frente a "verdades" tidas como imutáveis.

Dessa maneira, a partir dos anos ’70, as formulações da Psiquiatria Democrática e a concomitante implementação da Reforma Psiquiátrica, levaram ao entendimento do transtorno mental a partir de a referência psicossocial.

O desenvolvimento dessas novas concepções e manejos dos transtornos mentais, promoveu a desinstitucionalização dos internos e a superação do hospital psiquiátrico, mediante a criação de serviços territoriais abertos, diversificados, provando a viabilidade do convívio social desses cidadãos.

Da mesma forma, a constituição do campo interdisciplinar da Saúde Mental, integrando a Psiquiatria, a Psicologia, a Terapia Ocupacional, o Serviço Social, a Enfermagem e demais saberes afins, promoveu o nivelamento da importância de outros olhares sobre o sofrimento dos seres humanos acometidos por sofrimento psicoemocional.

Apesar não ter conseguido ainda resolver seu conflito de origem - por ter surgido do casamento entre as ciências naturais e as ciências humanas - a Psiquiatria, por sua própria natureza, teve de se desenvolver fazendo interface com outras ciências, trazendo o seu dilema até os dias atuais.

Essa questão está refletida na recente substituição do Coordenador Nacional de Saúde Mental do Ministério da Saúde. O fato levou à ocupação das dependências da Coordenação por representantes de vários setores do movimento social que luta contra os manicômios.

Estes protagonistas não reconhecem nessa atitude o compromisso com a continuidade da Política Nacional de Saúde Mental. Ao lado de entidades como o Conselho Nacional de Saúde, Conselho Federal de Psicologia, FIOCRUZ, entre outras, veem nessa medida um retrocesso aos tempos em que prevalecia a lógica de uma Psiquiatria monocrática centrada na internação hospitalar.

Dessa maneira, o significado dessa luta é defesa do Sistema Único de Saúde e a garantia da continuidade do investimento na ampliação dos serviços de saúde mental territoriais, impedindo o seu desmonte.

Além disso, significa pelejar contra o retorno da "indústria da loucura" mediante o financiamento público dos hospitais psiquiátricos privados, estimulando o ressurgimento dos manicômios, mesmo travestidos de outras denominações.

Esse impasse representa principalmente a explicitação do inaceitável recuo frente aos avanços obtidos, avanços esses que colocaram o nosso país como referência mundial.

Essa condição foi atestada em comunicação ao atual Ministro da Saúde, onde signatários de vários países enfatizaram a relevância do modelo brasileiro em saúde mental.

Após 25 anos de construção – considerando apenas o nosso país – o robusto acervo de conhecimentos acumulados pela Reforma Psiquiátrica, demonstra sobejamente sua invejável contribuição - permanentemente aprimorada - para as ciências e o pleno êxito como uma política pública vitoriosa e irreversível.

Dessa forma, é impossível abrir mão dessa árdua conquista do povo brasileiro, em prol daqueles que padecem de sofrimentos tão candentes.

Nenhum passo atrás, manicômio nunca mais!

A ‘Casa de locos’ retratada por Francisco de Goya y Lucientes (1746-1828) (Foto: Reprodução)

*Augusto Cesar de Farias Costa é médico psiquiatra, psicoterapeuta, filiado à Associação Brasileira de Psiquiatria e Vice-presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria Cultural

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