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segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

O trabalho dos senhores tem valor social, doutores? Ou é só mercadoria?

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gustavo

Não restrinjo aos médicos o drama retratado hoje na manchete da Folha, sobre um quarto dos médicos brasileiros não mais atenderem pacientes através de planos de saúde. Seria, em princípio, uma problema privado, nas relações entre estes profissionais e as empresas – milionárias e cada vez mais internacionalizadas, vide o caso do BTG de André Esteves e a Rede D'Or de hospitais.

Mas não é, por duas razões simples.

A primeira é que o dinheiro público paga boa parte  do que é ganho por estas empresas e, por consequência, dos profissionais que prestam serviços através delas, bem como os hospitais privados. Porque uma parcela expressiva é debitada do Imposto de Renda devido por pessoas e empresas, como renúncia fiscal do Estado, e outra parte, nos hospitais, pelos pagamentos do SUS.  Na revista Radis, da Fundação Oswaldo Cruz, estima-se que o Estado transfere ao setor privado de medicina cerca de R$ 50 bilhões por ano.

A segunda é relativa ao valor social do trabalho e, especialmente, do trabalho médico.

A visão capitalista "pura" do trabalho o faz ser visto como uma mercadoria privada, a qual se compra ou vende de quem e a quem possa detê-la ou pagá-la.

Leva-la ao extremo nos tornaria monstros. Quem não puder pagar o que o jornalista quer ganhar, não leia. Quem não puder pagar o advogado, que vá preso. E quem não puder pagar o que o médico quer, que morra.

Ah, mas o Estado, então, deve suprir todos estes serviços, em alto padrão, para todos.

Bem, não é exatamente assim que se fazia no paraíso capitalista dos EUA, que precisaram chegar ao século 21 para terem um arremedo de sistema público de saúde, o combatido Obamacare.

E nem é assim que os proprietários deste saber-mercadoria o adquiriram: foram anos de escolas de medicina – as melhores, públicas -, de residência médica, o aprendizado nos atendimentos em hospitais públicos. onde se vê de tudo e de tudo se aprende a tratar…

Não se pense que a mercantilização da medicina afeta só aos pobres. As consultas de até R$ 1.500 que o jornal registra serem cobrados em São Paulo. além de porem em dúvida o compromisso deste profissional com a saúde humana, mesmo para aqueles que a podem pagar, afeta a todos, porque deixará, afinal, de ser tributada, num modelo de regime fiscal que, a pretexto de suprir casos merecedores – uma internação emergencial, um acidente, um mal terminal – não estabelece limites para o desconto dos valores no IR.

Ontem, recebi um vídeo de uma amiga, emocionada com a bela história de superação de um amigo, piloto de helicóptero, que perdeu um braço num acidente rodoviário em Santa Catarina. Meses depois, graças a uma prótese, reviveu a alegria de pilotar de novo uma máquina voadora.

A prótese e sua adaptação foram feitas no Centro de Reabilitação e Readaptação Dr. Henrique Santillo, em Goiás. É público, embora sob administração de uma associação privada, sem fins lucrativos e vive, essencialmente, com os recursos do SUS. Se a medicina fosse exclusivamente uma mercadoria privada, a instituição sequer existiria. Não sei se ele pagou algo por ela, talvez. Certamente, porém, muito menos do que pagaria num centro voltado para o lucro.

Talvez não tivesse sequer sobrevivido, pois foi removido por ambulâncias públicas e socorrido num hospital público, o Regional de São José, em Florianópolis. Depois, sim, estabilizado, procurou assistência em hospital privado.

Agora você entendeu a razão da foto lá de cima, retirada da reportagem do Fantástico, que aparentemente nada tem a ver com o tema.

Mas tem.

"Foi retomada uma coisa que a gente achou que estava em declínio: o médico 'liberalzão', que atende quem quer, quando quer e cobra quanto quer", diz Mario  Scheffer, coordenador do estudo do Conselho de Medicina de São Paulo, que a Folha publica.

Em algumas especialidades, como a da qual dependo, a cardiologia, a coisa chega a níveis afrontosos, de consultas da R$ 1 mil, proibitivas. Eu, que poderia aliviar o sistema pagando valores razoáveis, sobrecarrego o SUS, onde sou muito bem atendido, aliás. Idem quando tive emergências, por conta do diabetes, numa unidade municipal onde encontrei vizinhos, com plano de saúde, porque este não lhes dava o atendimento urgente que precisavam.

Quando se tratou de suprir a falta de médicos e, sobretudo, sua ausência nas periferias e no interior, o Cremesp fez de tudo para derrubar o "Mais Médicos", numa mobilização jamais feita contra a degradação das remunerações dos planos de saúde aos profissionais de saúde. Esta, os que puderam combateram-na cancelando os atendimentos ou marcando-os para as calendas ou para as "horas vagas".

Quando se defende a medicina pública e a adoção de limites razoáveis de transferência de recursos públicos à medicina privada não se está desvalorizando a imensa valia social do trabalho médico.

Defende-se, sim, o seu valor, que é muito maior do que o que possam cobrar mercadejando consultas.

O valor que tem para todos os seres humanos, que não podem ser iguais apenas na morte.

Um comentário:

  1. Aviso aos que atacam o SUS: ser mordido de cobra nos EUA pode custar US$ 153 mil
    julho 21, 2015 13:50
    Aviso aos que atacam o SUS: ser mordido de cobra nos EUA pode custar US$ 153 mil
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    Como diz o título da reportagem do Washington Post, “esta mordida de cascavel de $ 153,000 é tudo de errado com os serviços de saúde (norte) americanos”. No Brasil, não custaria nada, porque o país trata o ofidismo, há mais de um século, como um problema de saúde pública
    Por Fernando Brito, no Tijolaço
    Quando li, achei que era destas “histórias da internet”. Mas saiu no insuspeito Washington Post:
    O americano Todd Fassler foi mordido por uma cascavel em San Diego, Califórnia.
    Não seria notícia, porque há entre sete e oito mil ataques de cobras peçonhentas nos Estados Unidos todo ano. Aqui, em 2010, o número chegava, em 2010, a 30 mil vítimas.
    Mas virou, quando uma emissora local noticiou quanto isso custou a Fassler em custo de hospital e de soro antiofídico: US$ 153.161,25, ou R$ 483 mil, na cotação de ontem.
    Como diz o título da reportagem do Post, “Esta mordida de cascavel de $ 153,000 é tudo de errado com os serviços de saúde (norte) americanos“
    Aqui, é claro, não custaria nada, porque o Brasil trata o ofidismo, há mais de um século, como um problema de saúde pública. E construiu, com esforço, uma rede de produção e distribuição de soros – pelos quais cobraram US$ 83 mil ao americano – que dão o sentido de heroísmo ao trabalho de gente como Vital Brazil, o grande marco nesta história, com um esforço que ele próprio descreve, na virada do século 19, quando comprovou a necessidade de soros específicos para cada espécie de serpente, desbancando o conhecimento europeu que produzia soros de baixa efetividade.
    “Não dispondo o Instituto de verba para a aquisição de serpentes, tive eu mesmo de assumir o encargo. Em pequeno terreno adquirido próximo a minha residência, mandei construir meu primeiro serpentário, bastante imperfeito, o qual serviu-me de orientação quando mais tarde tive que construir outros em Butantan. Nesse período trabalhei intensamente na aquisição de serpentes e na propaganda entre agricultores amigos, dos meios de captura e transporte dos ofídios, distribuído-lhes laços e caixas”.
    A saúde pública no Brasil ainda bem, sempre contou com gente abnegada como ele.
    Quem enche a boca para ver só os defeitos no Sistema Único de Saúde do Brasil deve tomar cuidado para não morder a língua, um dia destes.
    Pode ser pior que o veneno da cascavel.
    Pode ser sua própria vida.
    Fotomontagem: Tijolaço
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