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quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

Terapeutas em choque

Novo coordenador nacional de Saúde Mental vira alvo de críticas

Manifestação
Contra a escolha do psiquiatra, entidades ocuparam o Ministério da Saúde

Um “armazém” em Paracambi, a 90 quilômetros do Rio de Janeiro, onde se confinavam pacientes mentais de todo o País. Assim era a Casa de Saúde Doutor Eiras, o maior manicômio privado da América Latina, na memória do psiquiatra Ricardo Vaz, funcionário da instituição durante a gestão de Valencius Wurch Duarte Filho, nomeado na segunda-feira 14 o novo coordenador nacional de Saúde Mental.

Fundado por Leonel Miranda, ministro da Saúde do ditador Costa e Silva e um dos principais representantes da indústria hoteleira psiquiátrica da ditadura, o manicômio fechado em 2012 notabilizou-se por receber em seus 2,5 mil leitos pacientes considerados “irrecuperáveis”.

Os métodos garantiam o estigma: homens e mulheres sedados com medicamentos passavam o dia amarrados a argolas de ferro e tinham de dormir em camas sem colchões.

Era a versão fluminense dos campos de concentração psiquiátricos da repressão, entre os quais se destacavam os hospitais do Juqueri, em São Paulo, e Barbacena, em Minas Gerais.

Mesmo após o fim da ditadura as práticas desumanas persistiram, lembra Vaz. Além de serem sistematicamente submetidos a sessões de eletrochoque, os pacientes muitas vezes eram deixados sem roupa nos pavilhões. “Em um deles, 80 mulheres passavam o dia nuas e eram submetidas a banhos coletivos de mangueira. Um escárnio.”

Em 1991, Vaz e outros funcionários da instituição formalizaram uma denúncia pública na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro sobre os maus-tratos e as péssimas condições do local.

Dois anos depois, o médico psiquiatra Wurch assumiu o controle do manicômio, onde ficou até 1998. Segundo o ex-funcionário, as condições dos pacientes não mudaram durante sua gestão. “Ele foi escolhido para defender um lugar indefensável. 

O antigo gestor do hospital foi nomeado por Marcelo Castro, ministro da Saúde, para coordenar as políticas públicas de saúde mental, álcool e outras drogas. A escolha causou revolta entre psicólogos, psiquiatras e assistentes sociais engajados na luta antimanicomial, cuja atuação tem sido responsável pela diminuição de hospitais psiquiátricos e das internações compulsórias no País há 15 anos.

Além de serem submetidos a eletrochoque, os pacientes eram muitas vezes deixados nus (Fábio Seixo/Ag. O Globo)

Na terça-feira 15, o gabinete da Coordenação em Brasília foi ocupado por 50 ativistas da luta antimanicomial em defesa da imediata exoneração de Wurch. Na noite do mesmo dia, Castro recebeu os manifestantes, mas não cedeu.

“O ministro afirmou que as denúncias sobre o novo coordenador eram falsas”, diz Alyne Alvarez, da Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial, uma das entidades responsáveis pela ocupação. 

Em nota, o Ministério da Saúde afirma que a escolha do novo coordenador “reforça” a política de construção de um modelo humanizado na Saúde Mental. A pasta afirma que “considera a Reforma Psiquiátrica uma conquista do setor e não admite retrocessos na política em desenvolvimento”. 

Aprovada em 2001, a Lei de Reforma Psiquiátrica abriu caminho para a consolidação dos Centros de Atenção Psicossocial (Caps) como política central para o atendimento de doentes mentais.

De autoria do ex-deputado federal Paulo Delgado, o texto prevê que qualquer modalidade de internação, compulsória ou involuntária, seja indicada apenas quando os recursos extra-hospitalares, entre eles o atendimento mais íntimo e humano prestado pelos Caps, se mostrarem insuficientes. 

Atualmente, há mais de 2,2 mil Caps no País, segundo dados do Ministério da Saúde. Nos últimos três anos, foram destinados perto de 3 bilhões de reais à Rede de Atenção Psicossocial.

O investimento demonstra como as gestões anteriores do Ministério da Saúde respeitaram as exigências da legislação: 20,6% dos recursos voltados para a saúde mental foram destinados a serviços hospitalares e 79,3% à rede extra-hospitalar.



O ex-ministro da pasta José Gomes Temporão, atual diretor do Instituto Sul-Americano de Governo em Saúde, considera a escolha de Wurch “infeliz”. “Rompeu-se com uma tradição de décadas de se optar por nomes alinhados com a reforma psiquiátrica. Escolher alguém que passou pela direção de uma instituição com graves problemas de direitos humanos não me parece uma boa solução.”

A escolha revela a distância entre ramos mais conservadores da psiquiatria e o atendimento psicológico no País. Em nota, a Associação Brasileira de Saúde Coletiva, o Conselho Federal de Psicologia e o Movimento Nacional da Luta Antimanicomial foram contrários à nomeação de Wurch.

A Associação Brasileira de Psiquiatria considerou “inadequada e intempestiva” a reação contra sua escolha e fez críticas ao modelo baseado na Rede de Atenção Psicossocial. “É insuficiente e, em geral, não qualificado para atender o paciente com transtorno mental grave e persistente.”

Autor da atual legislação, Delgado compara a nomeação do novo coordenador à abolição da Lei Áurea. “Qualquer recuo é um retorno à escravização de doentes mentais.”

O ex-deputado defende que o ensino de psiquiatria no Brasil seja revisto. “O Ministério da Educação tem de valorizar o contato dos estudantes com políticas sociais para reduzir o dano de tratamentos equivocados. A cura é pela liberdade, não pelo remédio.”

Vaz, Cristina Vidal, Fabiana Valadares e outros psicólogos e psiquiatras responsáveis pelo fechamento da Casa de Saúde Doutor Eiras defenderam o primeiro caminho. A instituição encerrou suas atividades definitivamente há três anos.

A memória de uma ex-paciente de 87 anos, 30 deles passados em confinamento, que entrou em uma revendedora de automóveis interessada em testar um carro e foi atendida gentilmente pelo funcionário ainda emociona Vaz. “Trabalhar para um paciente readquirir sua confiança é uma luta duríssima, de anos. Não se pode mexer em uma estrutura tão delicada.”

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