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domingo, 24 de janeiro de 2016

Os Estados Unidos precisam de um sistema público de saúde

Os EUA gastaram 17,1% do PIB com saúde. França e Reino Unido, que têm um sistema público, gastaram 11,6% e 8,8%. Essa é a eficiência da iniciativa privada?

DAVE LINDORFF - CounterPunch (reproduzido na Carta Maior)

As possibilidades crescentes do candidato presidencial Bernie Sanders, o senador de Vermont (EUA) que se descreve como socialista democrata, nas primárias presidenciais do Partido Democrata, proporciona uma oportunidade única para a organização de um novo movimento radical em torno de objetivos políticos chaves, incluindo um programa nacional pela implementação de um sistema de saúde universal, não apenas para idosos e deficientes, e um programa nacional de reforma da previdência, com a qual as pessoas realmente possam viver.

As condições já existem. O Senador Sanders está clamando por benefícios da Previdência Social expandida, que com o colapso das pensões e a destruição da poupança dos aposentados na Grande Recessão e na consequente "década perdida" do mercado de ações, se faz hoje extremamente necessária. Ele também fala sobre a ampliação do programa Medicare, para cobrir toda a população, desde o nascimento até a morte, como é feito no Canadá ou em qualquer outra nação moderna do globo, exceto nos EUA.

A chave aqui é construir um movimento em torno destes dois programas, que podem se fortalecer em paralelo com a campanha presidencial de Sanders, mas que se mantenha independente da candidatura e que prossiga, ganhando ou perdendo as eleições. Se Sanders de fato ganhar a presidência, o que parece cada vez mais possível, como as pesquisas indicam, sua vitória poderia ajudar os democratas a retomar tanto o Senado e quanto a Câmara. O movimento, assim, alcançaria um patamar crítico, colocando pressão social sobre o mandato presidencial e sobre o Congresso, exigindo um Medicare ampliado e mais vastos benefícios da Previdência Social. E, no caso da derrota de Sanders, um movimento forte, bem organizado em defesa de ambos os programas se tornaria ainda mais urgente.

Melhor ainda, Sanders é um veterano dos movimentos sociais, não apenas alguém como Obama, que supostamente teve uma pequena experiência como "líder comunitário". Toda vida política de Sanders, desde a militância estudantil, remonta uma luta por mais igualdade, em defesa dos pobres, das minorias, da classe trabalhadora. Podemos criticar o seu apoio, como membro do congresso, à maioria das políticas imperiais do governo dos EUA no exterior, e até mesmo à maior parte das guerras ilegais tocadas pelos EUA, mas - ao menos internamente- , é marcante e inatacável seu apoio a luta por justiça racial e econômica, pelos direitos dos trabalhadores e pela igualdade das mulheres.

Tudo isto significa que, enquanto ele estiver concorrendo - o que dura pelo menos até novembro -, ele tende a alavancar uma força política que represente essas questões e que reforce o apelo pela Seguridade Social e pela substituição do Obamacare - esse programa que contempla largamente os interesses da indústria de seguros - por uma versão expandida e universal da saúde pública estatal. Se um movimento construído em torno dessas duas pautas motivasse passeatas e comícios, no melhor estilo occupy, em Washington e em todo o país, certamente contaríamos com a presença e apoio do Sanders.

Também poderíamos imaginar que um movimento forte em torno dessas pautas impediria que os meios de comunicação fossem tão traiçoeiros e continuassem a propagar a espécie de mentiras que espalham atualmente, como aquelas expelidas pela principal adversária de Sanders, Hillary Clinton. Beneficiária de milhões de dólares em "doações" da indústria da saúde, Hillary recebe toda a anuência da mídia corporativa para afirmar que o Medicare universal do Sanders significaria o "desmantelamento do Obamacare, do Medicare, do Medicaid e dos CHIPs” (programas estaduais que oferecem seguro de saúde para crianças pobres), além de defender que seu projeto “tornaria os planos de saúde mais caros para a maioria das pessoas”. 

Suas afirmações são falsas, e Clinton sabe disso. Ela sabe que a única hipótese em que Sanders desmantelaria o Obamacare seria pela expansão do Medicare e pela eliminação da necessidade de seguros privados, tanto para indivíduos quanto para empregadores. Ele claramente não pretende eliminar o Medicare, mas torná-lo universal, e não apenas disponível para pessoas com deficiência ou mais de 65 anos de idade, como funciona hoje. Ele eliminaria o Medicaid, esse seguro estatal miserável e burocrático que é fornecido aos pobres, mas apenas porque Sanders incluiria essas pessoas na mais ampla cobertura de cuidados do Medicare. O mesmo que vale para as crianças que atualmente recebem seguros através do CHIP. E o esquema de Sanders seria mais barato para todos, porque mesmo sendo o Medicare universal financiado por impostos mais elevados sobre os salários, ninguém mais precisaria pagar pelos lucros das seguradoras privadas.

A realidade é que os EUA são, de longe, o maior consumidor de saúde do mundo, tanto em parcela do PIB, tanto em gasto per capita. De acordo com o Fundo Commonwealth, baseado em dados da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), os EUA gastam mais em cuidados de saúde do que as 13 nações de alta renda do mundo: Austrália, Canadá, Dinamarca, França, Alemanha, Japão , Holanda, Nova Zelândia, Noruega, Suécia, Suíça, Reino Unido. Mas, em termos de resultados de saúde, os indicadores norteamericanos de expectativa de vida e de taxas de mortalidade infantil são muito piores.

Dados da OCDE de 2013 mostram que os EUA gastaram 17,1% do Produto Interno Bruto, uma medida de toda a atividade econômica no país, em cuidados de saúde. Esse valor é 47% maior do que os 11,6% gastos pela França, segundo país no ranking, que tem um modelo de sistema universal e índices de saúde largamente superiores. É também 60% maior do que a percentagem do PIB gasta em cuidados de saúde pelo vizinho Canadá, que tem um sistema universal também chamado Medicare e que alavanca quase o dobro do custo do Sistema Nacional de Saúde britânico (NHS), um modelo semelhante ao sistema da US Veterans Administration, que efetivamente emprega trabalhadores médicos e detém os hospitais, e que dedica parcos 8,8% do PIB inglês para os gastos em saúde.

Quando observamos os gastos per capita em saúde, a situação fica ainda mais dramática. Somando as despesas públicas de saúde pelos estados, governos locais e o governo nacional com os gastos do empregador e os gastos dos indivíduos e famílias, o gasto anual per capita em em saúde nos EUA (em 2013), segundo a OCDE, foi $9.086. O próximo na lista era a Suíça (ironicamente outro desses países que se baseiam nas seguradoras privadas para cobrir a maior parte de seus cidadãos, embora ali seja proibido obter lucros sobre os planos básicos, que todas as seguradoras devem ofertar), com $6.325 por pessoa - apenas dois terços do que os americanos gastam. Na França, o valor era de $4,361 e, no Canadá, $4,569. Esses números se aproximam da metade da despesa per capita em saúde dos EUA.

No caso de Previdência Social, os EUA novamente apresentam índices inferiores em relação aos países da OCDE, em termos de prestações pagas aos cidadãos aposentados. Na maioria dos países modernos, os sistemas de seguridade garantem cerca de 60% da renda do trabalhador que se aposenta. Em geral, esse trabalhador não têm mais filhos para sustentar e dispõe de assistência médica gratuita (ou quase gratuita) e, nessa fase, possui casa própria ou vive em apartamentos a preços acessíveis, medida suficiente para permitir que ele se aposente sem sofrer um grande impacto no seu padrão de vida. Já nos EUA, onde nasceu a Seguridade Social, seus benefícios nunca foram além de uma lógica "subjacente" para as pessoas mais pobres ou com deficiência. Aqui o montante previdenciário, em média, substitui apenas 40% da renda do trabalho, sistema que, em outras palavras, não se destina a financiar uma aposentadoria decente, mas apenas a manter os idosos e enfermos fora da rua.

Um movimento para transformar essa realidade, organizado durante esse ano eleitoral e tendo entre seus principais expoentes o candidato Bernie Sanders, poderia realmente angariar forças. E, caso mantivesse sua independência da campanha, poderia levar adiante um projeto de Seguridade que, depois das eleições, esteja na agenda do candidato vitorioso. Seria também um baluarte contra ataques inevitáveis %u20Bdos republicanos, caso de alguma forma consigam ganhar a Casa Branca e ambas as casas do Congresso.

As primárias estão chegando. Não há tempo a perder. Todas as organizações progressistas, juntamente com o movimento sindical, devem se unir urgentemente para lançar um movimento de massas que construa unidade entre jovens e velhos, trabalhadores e desempregados, cidadãos, imigrantes e indocumentados, a fim de lutar por esses programas - e não apenas para preservar os avanços conquistados até hoje, mas para nos trazer ao século 21 com a implementação de direitos universais, que nos garantam uma velhice segura e cuidados em saúde de qualidade.

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