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segunda-feira, 7 de março de 2016

Em busca de uma saúde exclusivamente pública


A coexistência de serviços privados de saúde com serviços públicos cria cidadãos de primeira classe (aqueles que têm acesso aos serviços privados de excelência) e cidadãos de segunda categoria (relegados ao SUS subfinanciado). A saúde não é mercadoria, é um direito humano

Crise é palavra na ordem do dia. Há sinais de crise no Brasil e no mundo. O arrefecimento do crescimento da China, as taxas recordes de desemprego na Europa, as recorrentes guerras como a saída natural encontrada pelas grandes potências para resolver seus desajustes econômicos.

Como toda crise de graves proporções dentro do sistema capitalista, a peste marrom do fascismo começa a ganhar voz, na Europa com a ascensão dos partidos de extrema-direita, nos EUA com Donald Trump e, até mesmo no Brasil, algumas vozes começam a expressar desejos autoritários antes impensáveis desde o fim da ditadura.

Se antes do desmantelamento da União Soviética o capitalismo enfrentava uma ameaça (ainda que com todas suas limitações) da experiência do socialismo real, após o colapso a alternativa capitalista se viu sem adversários no campo imaterial.

A construção das experiências da social-democracia no mundo desenvolvido com seus Estados de Bem-Estar Social somente foi possível no momento histórico em que havia uma clara opção no imaginário das pessoas à barbárie capitalista. O fim do socialismo real colocou no polo em que ficava o sonho comunista a social-democracia. O que antes era um meio termo virou um extremo, e a solução intermediária foi o social liberalismo.

O Brasil pós-redemocratização adotou modelos entre o social liberalismo e o neoliberalismo aberto. Apesar de ferrenhamente combatido pela direita, o país jamais experimentou uma alternativa social-democrata para a construção de um real Estado de Bem-Estar Social, quiçá algo com tinturas de socialismo como delira a direita mais radical no Brasil. Se ele entrou no papel dentro do texto constitucional, nunca deixou de sofrer sistemáticos ataques desde então.

O máximo que a coalizão política liderada pelo PT fez desde que assumiu o governo em 2003 foi implementar fortes políticas de transferência de renda e valorização do salário-mínimo. A crise econômica de 2008 e a adoção de políticas contracíclicas pelo governo empurrou gradativamente o Brasil na direção do pleno emprego, mas pela via do consumo sem políticas estruturantes.

Notadamente, a estratégia aproximou o país da desejável situação do pleno emprego. Só que esta situação, como Kalecki didaticamente demonstrou em seu Aspectos políticos do pleno emprego, não interessa ao capital, pois permite aos trabalhadores almejar cada mais direitos, uma vez que não haveria mais a ameaça do desemprego.

O capitalismo evoluiria no pleno emprego para novas instituições políticas e sociais que refletiriam o crescente poder da classe trabalhadora. Caso o capitalismo se ajustasse ao pleno emprego, ele teria incorporado uma reforma fundamental. Kalecki ainda acrescenta que, se isso não ocorresse, o capitalismo mostrar-se-ia ultrapassado.

As reações de ordem política que constrangeram o governo do PT a uma radical inflexão na condução da economia demonstram claramente uma submissão aos interesses do capital e a uma agenda social liberal com maior ênfase no seu aspecto liberal.

Investimentos públicos que apontariam na construção de um verdadeiro sistema de segurança social, com educação e saúde públicas, gratuitas e universais, são insistentemente bombardeados pela ideologia de que tudo que vem do Estado é um mal em si.

O cenário brasileiro, em realidade, não é muito díspar daquele encontrado em outros países onde a agenda da construção de um Estado de Bem-Estar Social é frequentemente bombardeada.

Neste sentido, é alvissareiro que justamente no berço mais acabado do capitalismo liberal, onde um sistema público universal de saúde nunca passou de um sonho, surja uma candidatura presidencial viável capaz de propor ousadas reformas justamente para tentar trazer a social-democracia de volta ao debate.

Bernie Sanders apresenta pautas que vão de fundamentais reformas no sistema financeiro ao fim das doações das grandes corporações às campanhas eleitorais. Mas o que chama atenção na campanha senador pelo Estado de Vermont é sua defesa de uma educação superior gratuita e acessível a todos e de um sistema universal de saúde.

As propostas de Bernie nos permitem trazer de volta estas reflexões para o Brasil. No momento em que andam tão em voga críticas pela direita ao modelo petista de se gerir o país, dizendo que políticas como o Bolsa Família contradizem o princípio da meritocracia, é fundamental o exemplo que vem dos EUA.

A literatura econômica demonstra satisfatoriamente que sem igualdade na alocação inicial da riqueza não há que se falar em meritocracia. Ademais, é importante nivelar as oportunidades não apenas na riqueza material, mas também nas oportunidades sociais. Para tanto, torna-se mister que todos usufruam dos mesmos sistemas de saúde e educação, públicos, gratuitos e universais.

É neste sentido que queremos resgatar as discussões sobre a natureza do nosso sistema nacional de saúde, o SUS. Essa foi uma discussão presente na 8ª Conferência Nacional de Saúde, se deveria ser estatizado ou não, de forma imediata ou progressiva.

No fim, houve consenso sobre a necessidade de fortalecimento e expansão do setor público e ficou claro que a participação do setor privado deveria se dar sob o caráter de serviço público “concedido” e o contrato regido sob as normas do Direito Público.

Não acreditamos que seja possível a coexistência de serviços privados de saúde com serviços públicos. A existência de serviços privados cria cidadãos de primeira classe (aqueles que têm acesso aos serviços privados de excelência) e cidadãos de segunda categoria (relegados ao SUS subfinanciado).

Não podemos esquecer que a maior parte do acesso a estes serviços de saúde privada se dá mediante renúncia fiscal de mais de R$ 50 bilhões por ano segundo dados da Receita Federal. Ou seja, dinheiro que poderia minorar o já decantado e crônico subfinanciamento do nosso sistema de saúde.

Sem mencionar, claro, os efeitos de que todos, das elites econômicas e financeiras ao trabalhador na base da pirâmide, usariam o mesmo sistema.

Isto faria com que os tomadores de decisão política, ainda que apenas por autointeresse, adotassem políticas efetivas para a melhoria do sistema. Urge, portanto, que tenhamos uma bandeira radical na saúde, um resgate da ideia do Estado de Bem-Estar Social, um sistema de saúde exclusivamente público e universal.

A saúde não é mercadoria, é um direito consagrado na Declaração Universal dos Direitos Humanos e deve ser tratada como tal. Se o capitalismo não for capaz de fazer isso, o capitalismo deve ser imediatamente descartado.

*Gustavo Noronha É economista do Incra

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