Páginas

quarta-feira, 20 de abril de 2016

[Tentando contribuir com a erradicação da ignorância entre coxinhas]: Como é o sistema de inserção social na França. Por Mônica Cossalter, de Paris


A autora deste artigo, Mônica Cossalter, foi bolsista do PRO-UNI do Mackenzie,instituição assustada com as altas performances dos PROUNISTAS. 
Formou-se em Letras com a nota máxima e fez mestrado na mesma instituição. Hoje é professora-doutoura em uma universidade francesa, tradutora e escritora.

O Brasil é um país de quase 200.000.000 de cidadãos, palavra que, segundo qualquer bom dicionário significa, “indivíduo no gozo dos direitos civis e políticos de um estado livre”. Entre os direitos civis, estão contidos os direitos sociais.
Isso que dizer que o pobrezinho desdentado que não possui sapatos e que se venderia por um pão com mortadela é, sim, um cidadão brasileiro, mesmo que ele não esteja no gozo de seus direitos civis, sociais e humanos e que a enxurrada de agressões verbais estampadas nas redes sociais queira “coisificá-lo” aos olhos de todo um país e se possível do mundo. “Estes desdentados que se vendem por bolsa-família” (os seres humanos são compráveis, sabemos; mas enquanto alguns até podem se vender para ter o que comer, outros se vendem muito mais caro por motivos muito menos nobres). Deixo de digredir agora para entrar diretamente no assunto que me levou a fazer esta reportagem.

Eu vivo na França, onde imperam coisas chiques que nossa elite tanto estima. O brasileiro sente frissons ao ouvir o nome desse país que nos inspira. É como se aqui não houvesse pobre e todo mundo fosse absolutamente honesto e rico (o que é quase um oxímoro) e morasse ao lado da Torre Eiffel. Sim, a França é um país sofisticado! E o Brasil não sabe fazer nada direito, pois elegemos pessoas feias como Lula e Dilma! Não merecemos isso, afinal, somos um Brasil de Kardashians, não é verdade?
A direita brasileira tem se batido contra nossas importantes mas ainda modestas ajudas sociais, mostrando mais uma vez sua enorme ignorância. Por que será que não vemos nas ruas das cidades francesas uma enxurrada de cidadãos pedindo o que comer, o que vestir, ou uma moeda? Porque simplesmente, na falta da Providência Divina, o Governo provê. A França possui uma estrutura de proteção, acolhimento e inserção social que faz com que não vejamos ou vejamos poucas pessoas dormindo pelas ruas ou esmolando – como acontece no Brasil, para incômodo da consciência dos que a possuem e mero incômodo da minoria restante.
Qualquer cidadão francês (ou estrangeiro em situação regular) pode contar com uma ajuda financeira mensal, que se chama “RSA” (Revenu de Solidarité Active, ou Renda de Solidariedade Ativa), que é direcionada às pessoas em situação de necessidade temporária ou durável. Em março de 2016 as estatísticas mostraram que mais de 2,53 milhões de lares franceses contavam com esta ajuda em dinheiro. Ou, em pessoas, 4.000.000 de “vagabundos” que vivem de uma ajuda mínima de 514 € para uma pessoa sozinha, 925 € se esta pessoa tiver até dois filhos e 1.079 € para um casal com até dois filhos. Mas não é apenas isso. Cada cidade francesa possui estruturas de moradia de urgência direcionadas aos seguintes grupos sociais: famílias, idosos, jovens mães, homens sozinhos, mulheres agredidas, portadores de distúrbios psiquiátricos, adictos ou alcoolicos, pequenos delitos etc. Cada grande cidade gere um departamento e todos os serviços são integrados: a começar pela polícia civil, que presta orientação imediata ao receber uma pessoa por agressão domiciliar, por exemplo. O agredido é orientado a sair do local, e não tendo para onde ir, é imediatamente encaminhado ao Serviço de Alojamento de Urgência. Mas não é preciso passar pela polícia – qualquer pessoa pode se dirigir diretamente ao centro de sua região e pedir ajuda.
Na cidade de Nancy, por exemplo, existe o ARS (Acolhimento e Reinserção Social) com cujos responsáveis eu conversei e em cujas estruturas estive imersa.
Neste centro de acolhimento, o Camille Mathis, cada pessoa é recebida por um assistente social que acompanha seu percurso de reinserção. Lá, receberá toda a alimentação de que precisa, desde o café da manhã até o jantar. Comida de qualidade comum, em refeitório coletivo. Roupa e sapato “de ocasião”, ou seja, de segunda mão. Cada morador é também inserido na agenda dos serviços participativos: limpeza, coleta de lixo ou a guarda de crianças para mães que precisem sair.
Neste centro, cada pessoa acolhida – sozinha, em casal ou em família – possui reuniões com seu assistente social para ser encaminhada a cada um dos seguintes serviços: médico, dentista, hospital, clínicas, psicólogo, polícia, advogado, centros de emprego e formação profissional. O tempo médio que cada pessoa permanece no centro pode variar segundo suas necessidades, normalmente entre 6 meses e um ano. Mas, se for preciso, ela ficará mais.
Certas pessoas podem passar por uma moradia de transição, sempre acompanhada por um assistente social. Se tudo correr bem, ela será encaminhada ao organismo de moradias populares, os chamados “HLM”. E lá, ela terá uma casa ou apartamento simples mas correto, pelo qual pagará um aluguel baixo. Há ainda outras ajudas sociais para moradia, que podem variar segundo as necessidades: o FSL, ligado ao “Conseil Général”, mantém ajudas para acesso à moradia, como adiantamento do valor da caução, cobertura de uma porcentagem do valor mensal de aluguel e eletricidade, bilhete mensal de transporte público, entre outros benefícios. Também cuida de superendividamentos. Em alguns casos, a dívida chega a ser eliminada por questões humanas. Existe ainda a CMU, que é um sistema de saúde gratuito que atende aos cidadãos desmunidos.
Emmanuelle Garry, educadora especializada, desde 1999 ligada ao CHRS (Centro de Moradia e Reinserção Social) Camille Mathis muito gentilmente me respondeu algumas questões, que transcrevo abaixo.
“1 – Desde quando a França começou a colocar em pratica as ajudas sociais de ARS?
Não tenho a data exata, mas tudo começou com o período pós-guerra. As pessoas tinham necessidades de serem acolhidas e não tinham onde morar nem o que comer ou vestir.
2 – Quais os objetivos da associação ARS?
A associação, que é financiada pelo Estado, tem por objetivo desenvolver e gerenciar toda ação inscrita nos campos das políticas sociais ou médico-sociais, permitindo contribuir para melhorar as condições de existência das pessoas confrontadas com dificuldades temporárias ou duráveis, no respeito da sua dignidade e com a vontade de valorizar as potencialidades de cada uma delas, para assim lhes permitir o acesso às condições de vida promocionais e de serem atores de seu futuro.
3 – Por que a França mantém esta estrutura de acolhimento e inserção social?
Está no texto da Lei. A base está lá e, mesmo que algumas mudanças possam ocorrer, não podemos voltar à idade da pedra. É por isso que a França a mantém.
4 – Quais são as etapas pelas quais uma pessoa passa até sua inserção completa? Quando termina o trabalho do ARS?
Tudo depende da situação da pessoa. Por exemplo, se ela estiver endividada ou tiver problemas de saúde, será preciso antes resolver este problema para que ela possa vislumbrar seu futuro. Consideramos que nosso trabalho termina quando conseguimos que a pessoa esteja em seu próprio alojamento. Mas ela poderá sempre contar com nossa estrutura.
5 – Quais são os maiores benefícios dos resultados positivos desta estrutura para a sociedade francesa?
Nenhuma pessoa jamais está acabada. Se contar com uma ajuda adequada, ela poderá voltar a viver uma vida normal. Sem esta ajuda, no entanto, ela poderá estar acabada, sim. Depois, há toda uma fragilidade psicológica que faz com que ela, sozinha, entre em desespero. Sem ajuda, cairá na depressão, no alcoolismo e até no crime. É imperativo que ela beneficie destas ajudas o mais cedo e rapidamente possível. Quanto mais tempo se perder, maior será o prejuízo social e individual.
6 – Há uma lei que obriga ao cumprimento, ou o direito a estas ajudas sociais está garantido na Constituição Francesa, por exemplo?
Sim, tudo está previsto na Constituição. É Lei. Além disso, nós mantemos nossos valores. Se não tivermos mais os valores que nos orientam, vamos acabar na sombra do individualismo onde cada um só pensa em si. Isto não é viver em sociedade.
7 – No Brasil, sempre que um partido de orientação oposta ao seu antecessor assume um mandato, a tendência é acabar ou interromper os projetos implantados até então. A França também passou por mudanças de governantes de esquerda e de direita. Como se explica o fato de que a estrutura sobreviveu e não foi simplesmente fechada ou interrompida, como acontece no Brasil? Esta estrutura poderia vir a ser abolida por causa de opiniões políticas contrárias às despesas estatais?
Impossível. Nossas estruturas são de utilidade pública, então elas não podem ser fechadas. Eu acredito que nosso papel é fundamental e que ele permite o acesso às pessoas aos seus direitos também fundamentais, porque muitas vezes as pessoas não estão a par deles, ou não sabem como aceder a eles.
8 – A senhora teria uma mensagem de cunho social que gostaria de transmitir ao Brasil e aos brasileiros em geral?
Eu creio que todo ser humano possui o direito de ser respeitado como ser humano. Não é porque uma pessoa está em situação difícil que ela poderá ser criticada, rebaixada nem humilhada. Cada um de nós poderá se encontrar um dia nesta situação, devido à perda de alguém, ao desemprego etc. Daí a importância de não se fechar os olhos para o que se passa e de estender a mão àqueles que estão na necessidade. Em nossa formação, aprendemos a ética: ‘Toda pessoa sempre tem alguma coisa de bom’. Trabalhamos muito com o potencial de cada um, mesmo que a própria pessoa o desconheça. Assim se reconstroem os seres humanos”.
No Brasil, as ajudas sociais que foram implantadas a partir do primeiro governo de esquerda legitimamente eleito suscitaram e suscitam a cada dia mais a ira da “direita injustiçada” que tem que “sustentar vagabundo”. O Bolsa Família foi um dos responsáveis pela redução do índice de miséria no Brasil, que caiu 27,7% entre 2002 e 2006.
O valor de 77 reais que é versado mensalmente aos “vagabundos que vivem às custas do bolsa família” provoca uma ira irracional. Irracional é exatamente o termo, pois designa aquele que é incapaz de raciocinar: qual vagabundo conseguiria viver com 77 reais ao mês? (gostaria de aproveitar e transmitir aos 4.000.000 de franceses que contam com as ajudas socias do governo que a direita/elite brasileira os considera “vagabundos”. Afinal, não se trata de uma questão de nacionalidade, vagabundo é vagabundo em qualquer língua! E os vagabundos daqui, como os do Brasil, podem ser encontrados onde a elite brasileira vai e nem imagina que está sendo atendida por um).
A crueldade da direita elitista não tem limites! Cabe a nós, portanto, limitá-la. Proponho a criação de um dispositivo legal que (amplie e) obrigue a manutenção de uma estrutura social de acolhimento, proteção e inserção no Brasil, e que impeça sua suspensão, seja qual for a orientação política do governo, visto que até o momento, o Brasil é, sim, uma democracia (mesmo contra a vontade de uma minoria muito pouco chique) e como tal, democraticamente, não somos 2 ou 3 milhões que possuem direitos, mas duzentos milhões – na sua grande maioria feios, sem dentes ou sem dedos, sem botox, muito magros ou muito gordos, sem dinheiro pra comprar Louis Vuitton nem Moët & Chandon. Gente de verdade que tem fome, sede, frio, necessidades vitais e não vitais também. Junto com a ignorância, a ganância é a coisa menos elegante da elite brasileira.
A conclusão a que se pode chegar, após toda esta reflexão é que, apesar da rica direita brasileira julgar conhecer o que há de mais chique na França, a verdade é que ela permanece na mais obscura ignorância.
A coisa mais chique que a França possui é composta de uma estrutura de ferro, mas não é a Torre Eiffel. É sua estrutura de promoção da justiça social. Isso sim é chique. E a direita, que idolatra e adora imitar a França, mais uma vez mostra que vai na direção errada.
A prova de que boas políticas sociais prescindem da Sorbonne e de curso de sociologia para fazer valer direitos em sua sociedade.
Captura de Tela 2016-03-30 às 19.09.18Captura de Tela 2016-03-30 às 19.08.46Captura de Tela 2016-03-30 às 19.10.40 Captura de Tela 2016-03-30 às 19.10.16 Captura de Tela 2016-03-30 às 19.09.05 Captura de Tela 2016-03-30 às 19.26.48
Em ordem:
1 e 2. Vista interior dos alojamentos sociais; 3. Fundos do Camille Mathis, em Nancy; 4. Refeitório coletivo Camille Mathis; 5. Sala de jogos para crianças; 6. Emmanuelle Garry

Nenhum comentário:

Postar um comentário