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quinta-feira, 19 de maio de 2016

Michel Löwy: Chamemos a um gato de gato. O que acaba de acontecer no Brasil, é um golpe de Estado


Chamemos a um gato de gato. O que acaba de acontecer no Brasil, com a destituição da presidenta eleita, Dilma Rousseff, é um golpe de Estado. Golpe de Estado pseudo-legal, “constitucional”, “institucional”, parlamentar, tudo que quisermos, mas de toda forma um golpe de Estado. Os parlamentares – deputados e senadores – fortemente comprometidos pela corrupção (citemos o número de 60%), instituíram um processo de destituição contra a presidenta, sob o pretexto de irregularidades contábeis, de “pedaladas fiscais” para cobrir o déficit nas contas públicas – uma prática rotineira de todos os governos brasileiros anteriores! É fato que diversos quadros do Partido dos Trabalhadores estão implicados no escândalo de corrupção da Petrobras, a companhia nacional de Petróleo, mas não Dilma... Na verdade, os deputados de direita que levaram a cabo a campanha contra a presidenta estão entre os mais implicados nesse escândalo, a começar pelo presidente do Parlamento, Eduardo Cunha (recentemente afastado), acusado de corrupção, lavagem de dinheiro, evasão fiscal ao Panamá, etc.

A prática do golpe de Estado legal parece ser a nova estratégia das oligarquias latino-americanas. Colocada à prova em Honduras e no Paraguai – países tratados frequentemente pela imprensa [francesa] como “Repúblicas de Bananas” –, ela se revelou eficaz para eliminar presidentes (muito moderadamente) de esquerda. Agora, acaba de ser aplicada em um país-continente…

Podemos fazer muitas críticas a Dilma: ela não manteve suas promessas eleitorais e fez muitas concessões aos banqueiros, aos donos de indústrias, aos latifundiários. A esquerda social não se absteve de, durante um ano, exigir uma mudança da política econômica e social. Mas a oligarquia de direito divino do Brasil – a elite capitalista financeira, industrial e agrícola – não se contenta mais com concessões: ela quer a totalidade do poder. Ela não quer mais negociar, mas governar diretamente através de seus homens de confiança e abolir as conquistas sociais dos últimos anos.

Citando Hegel, Marx escrevia, no 18 Brumário de Louis Bonaparte, que a história se repete duas vezes: a primeira como tragédia e a segunda como farsa. Isso se aplica perfeitamente ao Brasil. O golpe de Estado de abril de 1964 foi uma tragédia, que afundou o Brasil em vinte anos de ditadura militar ao preço de centenas de mortes e milhares de torturados. O golpe parlamentar de maio de 2016 é uma farsa, uma tragicomédia, onde vemos um bando de parlamentares reacionários e notoriamente corruptos derrubar uma presidenta democraticamente eleita por 54 milhões de brasileiros em nome de “irregularidades contábeis”. O principal componente desta aliança de partidos de direita é o bloco parlamentar (não-partidário) conhecido como “três Bs”: bala – deputados ligados à Polícia Militar, aos esquadrões da morte e outras milícias privadas –, boi – os latifundiários criadores de gado – e bíblia: os neopentecostais fundamentalistas, homofóbicos e misóginos.

Entre os partidários mais entusiastas da destituição de Dilma se destaca o deputado Jair Bolsonaro, que dedicou seu voto aos oficiais da ditadura militar e especificamente ao Coronel Ustra, torturador notório. Entre as vítimas de Ustra, Dilma Rousseff, à época (começo dos anos 1970) militante de um grupo de resistência armada, mas também meu amigo Luis Eduardo Merlino, jornalista e revolucionário, morto sob tortura em 1971, com 21 anos de idade.

O novo presidente Michel Temer, introduzido por seus acólitos, está ele próprio implicado em várias denúncias, mas ainda não é objeto de uma investigação. Em uma pesquisa recente, foi perguntado aos brasileiros se eles votariam em Temer para Presidente da República: 2% responderam positivamente.

Em 1964 tivemos direito a grandes manifestações “Com Deus e a Família pela Liberdade”, que prepararam o terreno para o golpe contra o presidente João Goulart; desta vez, de novo, a multidão “patriótica” – insuflada pela imprensa parcial – se mobilizou para exigir a destituição de Dilma chegando, em alguns casos, a pedir a volta dos militares. Composta essencialmente de pessoas da cor branca (a maioria dos brasileiros é negra ou mestiça), vinda das classes médias, essa multidão foi convencida pelos meios de comunicação que o motivo da mobilização era o combate à corrupção.

O que a tragédia de 1964 e a farsa de 2016 têm em comum é a raiva da democracia. Os dois episódios revelam o profundo desprezo das classes dominantes brasileiras pela democracia e a vontade popular. O golpe de Estado “legal” vai acontecer sem muitos entraves, como em Honduras ou no Paraguai? Isso não é tão certo. As classes populares, os movimentos sociais, a juventude rebelde ainda não disseram suas últimas palavras.

*Michael Löwy é um pensador marxista brasileiro radicado na França, onde trabalha como diretor de pesquisas do Centre National de la Recherche Scientifique.
Artigo publicado originalmente em Mediapart, jornal eletrônico francês

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