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terça-feira, 7 de junho de 2016

Gestão interina é "desastrosa" e quer "morte do SUS", diz ex-ministro da Saúde

Em entrevista exclusiva à Rede Governo, Arthur Chioro comenta os impactos do financiamento privado de campanhas na área da saúde e critica a "leviandade" do Conselho Federal de Medicina, que tem difundido dados descontextualizados para depreciar conquistas recentes do SUS

O ex-ministro da Saúde Arthur Chioro classificou como "desastrosa" a gestão atual do ministro interino, Ricardo Barros (PP-PR), que sugere "repactuar as obrigações de Estado" no sentido da "redução" do Sistema Único de Saúde (SUS). Em 2014, a campanha de Barros recebeu R$ 100 mil de um dos sócios do Grupo Aliança, administradora de planos e seguros privados de saúde.

Em entrevista exclusiva à Rede Governo, Chioro, que comandou a pasta de 2014 a 2015, comenta os impactos do financiamento privado de campanhas na área da saúde e critica a "leviandade" do Conselho Federal de Medicina (CFM), que tem difundido dados descontextualizados para transformar em fracasso algumas das conquistas recentes do SUS. Segundo Chioro, o CFM precisa se "despir do papel de ativista político e protagonista do golpe para voltar a ser uma importante instituição de fiscalização do exercício ético-profissional da medicina".

Como recebeste as declarações do ministro interino no sentido de “repactuar” a Constituição para reduzir o “tamanho” do SUS?

Com espanto e enorme preocupação. É uma “chegada” desastrosa. O direito à saúde é uma obrigação constitucional. A saúde é um direito social, de cidadania, uma conquista do povo brasileiro, um avanço na produção de uma sociedade mais justa, saudável e solidária. Reduzir o tamanho do SUS é uma forma dissimulada de dizer que o SUS será totalmente inviabilizado enquanto política pública, universal, integral e que busca a promoção da equidade. É a morte do SUS. Cabe ao governo e ao Congresso Nacional construir medidas que garantam a sustentabilidade do SUS e não reduzi-lo para resolver o crônico e vergonhoso problema de subfinanciamento. Há diversas propostas em discussão, inclusive aprovadas pelo Conselho Nacional de Saúde. Não podemos cair no discurso falacioso que imputa os problemas na saúde à qualidade do gasto e à corrupção. É um imperativo ético aperfeiçoar o uso dos recursos, a gestão e os mecanismos de controle, mas é preciso, com a mesma determinação, enfrentar o vergonhoso subfinanciamento.

O ministro interino deste governo ilegítimo não conseguiu perceber que a lógica é exatamente a contrária ao que esta propugnando. Conjunturas econômicas como a que vivemos exigem mais SUS e não reduzi-lo. Quando há crise econômica o SUS funciona como anteparo para os brasileiros que ficam desempregados e que perdem a cobertura dos planos de saúde. O mesmo ocorre com os que se aposentam e não suportam as mensalidades pagas às operadoras. É o SUS que dá sustentação aos idosos e àqueles que, por conta do envelhecimento e da presença de doenças crônicas, mais precisam de atenção à saúde. Quem produz políticas de prevenção e promoção à saúde? Onde são cuidados os que precisam de procedimentos de ato custo ou alta complexidade, como transplantes, hemodiálise e tratamento oncológico? No setor privado? Talvez se tivéssemos que opinar sobre temas dos quais não temos nenhum domínio cometeríamos as mesmas gafes. É lamentável, porque quando um ministro fala interfere com questões muito delicadas. Ainda mais quando não tem sua legitimidade reconhecida pelo setor e pela sociedade.

Que retrocessos a atual composição do ministério pode trazer ao trabalho que vinha sendo realizado pela pasta nos últimos anos?

O estrago poderá ser enorme, com gravíssimos prejuízos ao que construímos desde 1988, “remando contra a maré”, como dizia David Capistrano. Não foi fácil, por exemplo, chegar à cobertura de Saúde da Família que atingimos, principalmente após a implantação do Mais Médicos. Constituímos redes de urgência, com o SAMU, as UPA, emergências hospitalares e ampliação de leitos de UTI que salvam vidas em todo o país. Implementamos políticas comprometidas com a dignidade humana, como a da reforma psiquiátrica e a consolidação de uma rede de atenção psicossocial. Temos um trabalho exemplar e reconhecido internacionalmente em relação às DST/Aids e Hepatites, à prevenção e controle do tabagismo. Garantimos sangue e hemoderivados de qualidade e temos o maior programa de transplantes públicos do mundo. Temo pela saúde indígena e pelo desmonte das ações de enfrentamento das situações de maior vulnerabilidade, conquistas objetivas e inquestionáveis que tivemos nos últimos anos. Estão em risco as política de imunização, de assistência farmacêutica e a de parcerias produtivas, que serão profundamente afetadas trazendo muitos prejuízos para o Complexo Industrial da Saúde e para o SUS. Só para dar alguns exemplos do que está em jogo quando se propõe a diminuição do tamanho do SUS. E tudo isso pode vir abaixo. Não haverá, também, a mínima possibilidade de produzir novas propostas que estavam sendo elaboradas e que, uma vez implementadas, enfrentariam os grandes gargalos do SUS, como o “Mais Especialidades”. No fundo, é o retorno das políticas de saúde empobrecidas e restritivas para os pobres. O sistema de saúde dos pobres, dos indigentes, dos brasileiros de “segunda categoria”, que estão excluídos do mercado e do consumo.

Mas não estou pessimista! Creio que haverá muita resistência e luta em defesa do SUS. A começar pelos movimentos sociais, o Conselho Nacional de Saúde e a atuação de milhares de conselheiros estaduais, municipais e militantes da saúde que já estão se mobilizando fortemente e denunciando à sociedade os perigos de retrocesso das primeiras intenções anunciadas, ainda que de forma titubeante, já que são negadas logo a seguir, denotando que se trata de um governo interino que não sabe o que quer, para onde vai e nem tem dimensão do tamanho da responsabilidade que é dirigir um ministério como o da Saúde. É preciso destacar que o SUS foi construído e vem se consolidando a partir de muita luta do movimento de reforma sanitária com enraizamento no movimento popular, sindical, nas universidades, entidades profissionais, de gestores municipais e estaduais, entidades de usuários, entre outras. Para diminuir o SUS o Ministério da Saúde terá que produzir pactuações com estados e municípios, até porque a descentralização na gestão é uma realidade. Terá que enfrentar o Conselho Nacional de Saúde e o movimento social. Vai ter muita luta!

A maior doação individual para a campanha do atual ministro veio de um sócio de um plano de saúde. Como o lobby e o financiamento privado de campanhas impacta nas políticas públicas para a saúde?

O financiamento privado de campanha está na raiz de todos os males que estamos vivendo. Daí a importância de uma verdadeira reforma política. Não há ajuda privada desinteressada. A fatura é cobrada pelos financiadores de campanhas. Quando não cobram, sabem que serão privilegiados pela simples expectativa dos políticos em continuarem contando com o apoio financeiro em seus projetos futuros. Há uma falsa ideia de que esses interesses só se apresentam na saúde suplementar e na vigilância sanitária, pela indicação de diretores, pela tentativa de encomendar normas que privilegiem determinados interesses, de agilizar a aprovação de um produto ou resolver problemas com fiscalizações e multas. É impressionante a sua ramificação nas atividades mais cotidianas da saúde. Se expressam na tentativa, por exemplo, de favorecer certo laboratório internacional que pretende utilizar as PDP como “barriga de aluguel”, sem nenhum beneficio para o SUS e para os laboratórios públicos brasileiros, forçando inclusive a alteração da normatização vigente. Estão presentes nos interesses escusos de uma parte significativa de emendas parlamentares. Apresentam-se para pressionar a incorporação tecnológica a qualquer custo de medicamentos, vacinas e outros produtos médicos. Têm uma especial predileção sobre sistemas de informação em saúde. Tentam operar majorando procedimentos específicos da tabela do SUS. Tentam se beneficiar utilizando-se da inclusão de artigos, parágrafos ou mesmo incisos em Medidas Provisórias, Projetos de Lei Complementar ou Projetos de Emenda à Constituição, como fez o deputado Eduardo Cunha, quando eu ainda estava no Ministério da Saúde, ao apresentar um artigo que isentava as Operadoras de planos de saúde de multas anteriores, estimadas em mais de 4 bilhões, que por minha indicação foi prontamente vetada pela presidenta Dilma. Precisamos de uma ampla reforma política, mais transparência, mais democracia e mais controle social para enfrentar essa cultura extremamente promíscua e parasitária que marca a relação público/privado no nosso país. Por isso não me estranha que o ministro interino tenha dito que regular plano de saúde não é papel do Ministério da Saúde. Denota, por um lado, o profundo desconhecimento da gestão da politica de saúde, mas expressa também aquilo que é o objeto de desejo dos empresários e motivo pelo qual operadoras de plano de saúde financiam políticos: deixar as regras do jogo serem totalmente favoráveis a eles, sem regulação governamental.

A grande imprensa acaba de divulgar levantamento do Conselho Federal de Medicina sobre a redução de leitos de internação no SUS, sem levar em conta o aumento da resolutividade de casos na atenção básica e políticas públicas que preveem a redução do número de internações. Em que medida a luta pela saúde pública envolve também uma luta de narrativas, de comunicação?

O CFM já há algum tempo tem se postado como “arauto do apocalipse do SUS.” De tempo em tempo apresenta um relatório que encontra eco na imprensa conservadora, que compra sem crítica essa análise desqualificada, enviesada e partidarizada, produzindo uma narrativa anti-SUS e contra o governo federal, o que é muito interessante, porque à exceção de uma rede residual de hospitais ainda administrados diretamente pelo Ministério da Saúde, em Porto Alegre e no Rio de Janeiro, e dos hospitais universitários vinculados às universidades federais, a rede hospitalar é operada, de forma majoritária, diretamente ou de forma contratada por estados e municípios, desde o surgimento do SUS.

Quando era ministro cansei de responder às mesmas leviandades. Eles jamais destacam que a grande redução ocorreu exatamente nos leitos de hospitais psiquiátricos, cumprindo o que determina a Reforma Psiquiátrica. Não contam os leitos ou dispositivos de cuidado abertos em CAPS e residências terapêuticas. Não destacam que houve importante redução de leitos em hospitais privados de pequeno porte, familiares, que não tiveram capacidade de renovar suas condições tecnológicas e atender as novas exigências da medicina. Não destacam – e não é por falta de conhecimento técnico, porque isso consta em qualquer manual de gestão hospitalar ou de sistemas de saúde – que a redução do número de leitos hospitalares é uma tendência em todo o mundo. Hoje, com menos leitos se produz mais internações do que antes. Isso explica, por exemplo, a redução de leitos de pediatria ou de cirurgia geral, forjados pelas mudanças do processo de trabalho em saúde, que permitiram a redução do tempo médio de permanência e a maior utilização dos leitos. É resultado da diminuição das internações por causas sensíveis à atenção básica. Não há como discutir, pois os dados comprovam que quanto maior a cobertura e a qualidade da Saúde da Família, menos internações por causas sensíveis à atenção básica ocorrem. Uma cirurgia de cálculo em vesícula biliar, sem complicações, há cerca de 20 anos, exigia um tempo médio de internação de 7 dias. Hoje, com a videolaparoscopia, a alta é dada em no máximo 2 dias. Veja como diminui o tempo médio de permanência de uma mulher após o parto. Lembremo-nos de nossas enfermarias pediátricas, repletas de crianças com desnutrição grave, diarreia, sarampo, difteria, etc. Hoje, as enfermarias de pediatria passam vazias praticamente o ano todo, até que chegue o inverno e aumentem as internações por problemas respiratórios. Mais além, o CFM desconsidera, em seu cálculo enviesado, a construção de estratégias modernas de cuidado, como o hospital-dia, o cuidado ambulatorial ou a internação domiciliar. Em São Bernardo do Campo, onde fui secretário municipal e contamos com 4 hospitais públicos, o programa de internação domiciliar (PID) já é o nosso “maior hospital”. Para cada leito liberado, onde antes um paciente chegava a ficar internado meses ou até anos, hoje se faz de 5 a 6 internações por mês. O CFM não conta, deliberadamente, os leitos criados e disponíveis nas UPAs, nos CAPS, os leitos de UTI e cuidados intermediários.

O CFM poderia dar um grande contribuição ao SUS e ao país se discutisse e apresentasse propostas para enfrentar a epidemia de cesarianas, o impacto das violências por acidentes de moto e tentativas de homicídio sobre o sistema de saúde, ou como controlar a participação de médicos nas máfias de próteses e na indústria da judicialização da saúde.

Mas para isso teria que se despir do papel de ativista político e protagonista do golpe para voltar a ser uma importante instituição de fiscalização do exercício ético-profissional da medicina.

Mas precisamos reconhecer que não temos sido competentes em produzir uma narrativa que consiga disputar sentidos e ampliar a legitimidade social do SUS. Esse é um grande desafio que temos pela frente.

Recentemente, planos particulares começaram a adotar programas de medicina da família baseados no SUS, reconhecendo se tratar de estratégia eficiente. Dados da Rede-Observatório do Programa Mais Médicos apontam que a reconfiguração do trabalho pela presença dos profissionais cubanos trouxe um aumento da eficiência das equipes. O que o discurso privatizante, que prega a eficiência e a economia de recursos, tem a aprender com essas experiências?

As operadoras de planos de saúde, pela via que lhe faz sentido, que é a da racionalização de gastos e maximização dos lucros, já perceberam o que muitos ainda não perceberam. Vivemos uma transição epidemiológica, demográfica e nutricional. Mais de 73% dos óbitos são causados por enfermidades crônico-degenerativas. As pessoas estão vivendo muito mais e necessitam, pela presença de problemas de saúde como hipertensão, diabetes, doenças demenciais, neoplasias, doenças auto-imunes, transtornos psiquiátricos etc., cuidados prolongados e acompanhamento por toda a vida. Ora, o modelo centrado no hospital, no médico em seu consultório, em procedimentos, cada vez em maior quantidade, é pouco resolutivo, produz enorme insatisfação e é extremamente caro.

Daí por que as operadoras centram seus movimentos mais recentes em três direções. A verticalização das redes assistências, produzindo uma rede de clinicas, laboratórios e hospitais gerenciadas diretamente pela operadora. A segunda é a forte introdução de tecnologia de informação para gerenciamento e controle do cuidado (e dos gastos). A terceira, para a qual enfrenta maiores resistências, é a mudança do modelo assistencial. Algumas operadoras de autogestão e Unimeds foram pioneiras neste sentido. Na sequência, medicinas de grupo passaram também a adotar estratégias similares à da Saúde da Família. Agora, até as seguradoras começam a trilhar esse caminho. E onde vão beber de experiências exitosas nesse sentido? No SUS, é claro, que para além da tecnologia de cuidado, já começa a ser um grande provedor de gestores, médicos e enfermeiros para as operadoras. Lamentavelmente, já há programas de Residência Médica em Medicina Geral e de Família, financiados com recursos do SUS, que são fornecedores cativos de profissionais para o mercado privado.

Não me espantaria se em breve as operadoras passassem a pressionar o poder público para que promova ações intersetoriais que impactem sobre a violência, por exemplo, já que convivemos, ainda que majoritariamente entre os setores mais pobres da sociedade, com mais de 50 mil homicídios a cada ano ou mais de 12 mil óbitos por acidentes de motos, que resultam em forte pressão de demanda (e gastos) nos sistemas público e privado de saúde. É muito mais eficaz e inteligente atuar sobre a raiz dos problemas e não nas suas consequências. Isso vale também para outras questões, como o álcool e outras drogas, a obesidade, o sedentarismo, a epidemia de cesarianas, o tabagismo etc. Vamos ver quanto demora para que o setor abra os olhos para isso também.

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