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terça-feira, 1 de novembro de 2016

Arthur Chioro: “Em 28 anos de SUS, nunca houve financiamento adequado para a saúde”

Ministro da saúde durante o governo de Dilma Rousseff, o médico sanitarista afirma que faltam investimentos federais em saúde no país. E que é preciso aprimorar a gestão do SUS

na revista Época

O médico sanitarista Arthur Chioro, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), foi Ministro da Saúde por um período curto e conturbado do governo Dilma Rousseff. À frente da pasta por pouco mais de um ano e meio, entre 2014 e 2015, Chioro ficou lembrado por ampliar o Mais Médicos, programa que levou médicos, pagos com verba do governo federal, a municípios pobres e remotos do país. Cidades que precisavam desses profissionais para trabalhar na atenção básica – aquele ramo dos serviços de saúde que tem a difícil missão de acompanhar a pessoa durante a saúde, para prevenir a doença –, mas não tinham recursos suficientes para pagar por sua contratação. Antes disso, ainda durante os anos 1990, trabalhara em secretarias de Saúde de municípios da Baixada Santista. Foi quando acompanhou a implantação do Sistema Único de Saúde (SUS) no país: “Em 1989, eu vim trabalhar com o David Capistrano em Santos”, diz Chioro. “A prefeitura tinha um posto de puericultura e três prontos-socorros. Só”. Criado em 1988, e implantado ao longo dos anos seguintes, o SUS mudou a organização da saúde no Brasil: preconizou um modelo de cuidados que priorizava a prevenção, aumentou a autonomia das cidades na gestão da saúde e permitiu a expansão de serviços, coisa importante para uma população que crescia e envelhecia. Segundo Chioro, não conseguiu resolver uma questão fundamental: “Em 28 anos de SUS, nunca houve financiamento adequado para a saúde”.

De acordo com Chioro, à medida que crescia a complexidade e a oferta de serviços de saúde, o governo federal se ausentava do financiamento do sistema. Em 1993, a União respondia por 73% dos gastos públicos em saúde no Brasil. Em 2014, essa participação caíra para 43%. O vácuo deixado pela esfera federal precisou ser preenchido pelos municípios: em 1991, eles respondiam por 12% do investimento público em saúde. Em 2014, o investimento municipal representava 31% do total. Hoje, as cidades brasileiras investem, em média, 23% das receitas próprias em saúde. Muito acima do piso de 15% cobrado por lei: “Gastos a partir de 25% comprometem a administração pública”, diz o professor.
Nesta conversa com ÉPOCA, o ex-ministro defende a ampliação do investimento público em saúde e critica a PEC 241, que muda as regras para o financiamento federal do setor. Também diz que, a despeito dos recursos escassos, é preciso aperfeiçoar a gestão do SUS e pensar com cuidado no perfil dos secretários municipais que assumirão seus postos a partir de 2017:  “A indicação de um secretário é do prefeito”, diz Chioro.”Mas ele precisa ter a consciência de que não pode escolher qualquer pessoa famosa da medicina. Precisa de alguém com formação e capacidade.”
ÉPOCA -  A principal queixa dos gestores municipais diz respeito ao financiamento do SUS: há municípios que investem mais de 30% da receita própria em saúde. As cidades estão sobrecarregadas?
Arthur Chioro -  Essa não é uma queixa filosófica. Em 2000, quando foi promulgada a Emenda Constitucional 29 – que definiu o percentual mínimo da receita própria que estados e municípios deveriam aplicar em saúde –, os municípios brasileiros já gastavam, em média, 9,8% dos seus recursos próprios com saúde. A Emenda Constitucional foi aprovada como forma de induzir maior gasto dos municípios e dos estados, e regulamentar o que a União deveria gastar. Os municípios deveriam, em cinco anos, passar a gastar 15% no mínimo. Eles evoluíram muito antes disso. E praticamente não há município no Brasil, hoje, que gaste menos do que 15%. Muitos gastam mais do que 30%. Quando o prefeito começa a gastar mais de 30% em saúde, começa a faltar para a governança da cidade. E cultura, transporte, moradia, são formas mais amplas de investir na saúde. Gastos a partir de 25% comprometem a administração pública.
ÉPOCA -  Por que o gasto municipal chegou a esse patamar?
Chioro - 
 A implantação do SUS transferiu grandes responsabilidades para os municípios. Isso começou nos anos 1990. Antes, havia um sistema de saúde totalmente centralizado no governo federal, o Inamps. Os municípios mal tinham redes básicas de saúde. Ao longo destes 28 anos do SUS, foram criados novos serviços públicos de saúde coordenados pelas prefeituras. UBS, equipes de saúde da família, UPA, ambulatórios de especialidades, hospitais. Em 1989, eu vim trabalhar com o David Capistrano em Santos. A prefeitura tinha nove postinhos de puericultura e três prontos-socorros. Hoje, a prefeitura de Santos tem 36 unidades básicas de saúde, 12 hospitais. Isso aconteceu no país todo. Só que não houve, ao mesmo tempo, um grau de descentralização dos recursos, por parte da União e por parte dos estados, que pudesse suportar, de maneira adequada, esse nível de responsabilidades assumido pelos municípios.
ÉPOCA - Faltam repasses dessas outras esferas?
Chioro - 
Os municípios passaram a gastar mais. Mas os estados e a União não elevaram suficientemente seus gastos com saúde, nem aumentaram o bastante os repasses para os municípios. Os municípios estão sobrecarregados ainda por um segundo motivo: é baixo o gasto público em saúde no Brasil. Somando as três esferas de governo, gastamos, hoje, R$ 3 por habitante por dia. Segundo os dados do Banco Mundial, o gasto público com saúde no Brasil em 2013 foi de US$ 525 por habitante no ano. Isso é muito pouco quando você compara com países que têm sistemas universais de saúde. Em 2013, o Reino Unido, que é um país que tem sistema universal de saúde, teve um gasto público de US$ 3 mil. Se você quer garantir da vacina ao transplante, não há como gastar tão pouco. E os municípios não têm como puxar o freio de mão. Para eles, é mais difícil conter os gastos porque a demanda está na porta.
ÉPOCA - Por que não há mais repasses federais?
Chioro -
 É uma lógica fiscal. É uma concepção que vem desde o governo Fernando Collor e foi muito forte no governo Fernando Henrique. Todo mundo achava que com Lula e com Dilma aliviaria, mas nunca aliviou para valer. O SUS ficou sem regulamentação do financiamento até o ano 2000. Foi quando passou a valer a Emenda Constitucional 29. Ela determinou que, no caso da União, a verba federal para a saúde deveria ser igual ao recurso aplicado em 1999, acrescido da inflação e do crescimento nominal do PIB. Isso valeu até o ano passado, quando entrou em vigor a Emenda Constitucional 86, que destina 13,2% da receita corrente líquida da União à saúde. Esse percentual deve crescer ao longo de cinco anos até chegar a 15% da receita corrente líquida em 2020. Um valor ainda muito distante dos 10% da receita corrente bruta, que é o que o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e as entidades de especialistas recomendam. Agora, no governo Temer, há a possibilidade de piorar, se o gasto for congelado por 20 anos.
ÉPOCA - Como fica o financiamento da saúde com a PEC 241?
Chioro - 
O recurso hoje já não é suficiente. Se você congelar por 20 anos, só corrigir pela inflação, vai haver um desastre.O quadro hoje é dramático, e ele aponta para o fim do SUS. O governo, ameaçando congelar por 20 anos os gastos federais em saúde, numa situação já dramática de subfinanciamento, inviabilizará o SUS por completo.
ÉPOCA - O argumento do governo é que a PEC estabelece um piso para a saúde – ao contrário do que faz para as outras áreas, com exceção da educação. Se necessário, será possível destinar mais recursos.
Chioro -
 Isso é conversa para boi dormir. Por que então precisa de um teto geral? Se a ideia é aplicar de acordo com a necessidade, por que não trabalha o orçamento ano a ano no Congresso? Ou elabora um plano plurianual, como já tivemos? Já existem instrumentos de planejamento formal, na legislação brasileira, para a criação de planos plurianuais. O governo só poderia gastar até o limite definido por esse plano.
ÉPOCA - Controlar os gastos da União também não é algo importante e saudável?
Chioro -
 Sim. Mas em que áreas? Em áreas que estão extremamente subfinanciadas como a saúde? Se você tivesse uma margem de arrecadação imensa, tivesse certeza de que o dinheiro é mal gasto... De que o recurso atual é suficiente e de que pode haver economia... Mas não é o caso – gastamos R$ 3 por dia para cuidar da saúde de cada brasileiro. Não faz sentido. O governo não precisa ter uma lei que valha por dez anos, prorrogável por mais dez. Nos últimos 20 anos, a estrutura etária da população brasileira mudou muito. Nós vamos ter 30% da população com mais de 65 anos daqui a 20 anos. É mais caro cuidar de uma população de idosos.
ÉPOCA - Quando o SUS foi concebido, o que se previa em termos de financiamento para a saúde?
Chioro - 
Quando foi aprovada a Constituição, em 1988, previa-se nas disposições transitórias que 30% do orçamento da seguridade social iria para a saúde. Isso nunca aconteceu. Depois, criou-se a CPMF. Ela vigorou de 1996 a 2007. Mas ela foi substitutiva, vinha substituir outras fontes de recursos que foram cortadas. Trouxe alguma estabilidade e uma série de vantagens, mas não ampliou o padrão de gastos. Portanto, nós temos um problema muito concreto. Em 28 anos de SUS, nunca tivemos um financiamento adequado.
ÉPOCA - O governo argumenta que não pode ampliar o investimento porque faltam recursos.  Qual a solução para o subfinanciamento do SUS? Criar novos impostos?
Chioro - Aí é uma questão de qual o grau de prioridade que o governo vai dar na hora da elaboração do seu orçamento. Quanto ele vai destinar para o pagamento de encargos da dívida e quanto que ele vai aplicar em gastos sociais. Mesmo em tempos de crise – como os que vivemos hoje – há formas de elaborar de modo a dar maior ou menor atenção a políticas sociais. Do ponto de vista da criação de novas fontes, existem várias possibilidades em discussão no Congresso Nacional. O grande problema é que a visão reinante é de corte de gastos, e não de produção de receitas. Algumas dessas propostas, que são encaradas basicamente em quase todos os países de bases capitalistas, é a taxação de grandes fortunas. É, por exemplo, a taxação das heranças de maneira mais equilibrada, mais adequada aos padrões internacionais. Ou a taxação pesada de produtos considerados nocivos à saúde. Além de aumentar a receita, isso diminuiria o consumo desses produtos. O maior exemplo é o cigarro. Temos hoje uma política tributária que elevou, progressivamente, o preço dos cigarros.
ÉPOCA - O problema é somente a falta de recursos? Não há como melhorar a forma como o dinheiro disponível é aplicado?
Chioro -
 Sempre há. É preciso investir na qualificação do corpo gerencial, em planejamento, em formação dos trabalhadores, em controle do desperdício. O grande problema é que esse discurso é usado para negar o subfinanciamento. Imagine o que é garantir, para 206 milhões de pessoas, vacina, atenção básica, vigilância sanitária e epidemiológica, pronto-socorro, Unidades de Pronto Atendimento (UPA), Samu, hospital, transplante, medicamento de alto custo, com R$ 3 por dia. É quanto você paga por um café. Qual é o plano de saúde que dá tudo por R$ 90 mensais? Nós temos, na Constituição, um sistema de saúde que é perfeito. Mas o SUS real fica asfixiado. Não chega à população brasileira de maneira adequada.
ÉPOCA - Planejar e financiar os serviços públicos de saúde é responsabilidade dos municípios, estados e da União. Estados e municípios cooperam bem um com o outro?
Chioro -
 O grande problema é que, com essa questão do financiamento, quando estados e municípios sentam para negociar, uma parte importante da discussão gira em torno da falta de recursos. Um exemplo é a discussão que temos com o Samu em São Paulo. Ele deveria ser financiado 50% pela União, 25% pelo estado e 25% pela prefeitura. O governo do estado se recusa a colocar recursos. Onde tem Samu, 50% é da União e a outra metade é dos municípios. Isso também pesa. A relação entre estados e muncípios é tensa.
ÉPOCA - Quais os principais desafios que os novos gestores municipais enfrentarão a partir de 2017?
Chioro - 
Precisamos superar o nosso modelo atual de atenção à saúde. Ele é excessivamente centrado na doença e pouco investe na promoção da saúde, na prevenção. Pelo perfil nutricional e de envelhecimento da população, ou a gente investe pesadamente em alimentação saudável, práticas de atividades físicas, controle da violência urbana, dos acidentes de trânsito, do tabagismo, do alcoolismo, do uso de drogas, ou a gente vai continuar a vida inteira lidando com fenômenos que poderiam ser evitáveis e que produziriam mais saúde para a população com menos gasto. E é preciso investir na formação e na capacitação do trabalhador de saúde. Tanto para a gestão quanto para o cuidado cotidiano dos pacientes. As pessoas reclamam muito da falta de humanização. Precisamos investir nisso.
ÉPOCA - Sobre os secretários de saúde que assumirão em 2017: eles chegam preparados aos cargos?
Chioro - 
Nem todos. Há muita gente que assume gestão porque cansou de atender pacientes. Porque dá status na cidade. Porque tem projeto político eleitoral. Quando não é por outros interesses deploráveis. Não é porque a pessoa é excelente cirurgiã que vai ser excelente gestora. Hoje em dia, não se faz nenhuma exigência de formação a quem vai ser secretário de saúde. O Conselho de Secretários Municipais procura fazer capacitação e organiza congressos.  Alguns secretários são formados assim. Mas eu acho muito pouco. Em janeiro, 5.570 autoridades municipais de saúde tomarão posse junto com os prefeitos. E alguns não têm a mínima noção de legislação, de como é um orçamento público, quais as competências do município, do estado e da União. A indicação de um secretário é do prefeito. Mas ele precisa ter a consciência de que não pode escolher qualquer pessoa famosa da medicina. Precisa  de alguém com formação e capacidade. E depois essas pessoas podem buscar aprimoramento.

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