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quinta-feira, 3 de novembro de 2016

Eu, a mãe de um autista


Aviso: Super textão, dividido em duas partes pra facilitar o entendimento.

Parte I

Eu sou mãe. Uma mãe que não sonhava em ser mãe, que até alguns anos atrás estava muito feliz e satisfeita criando bichos, colecionando tretas e trabalhando MUITO. Chegava a trabalhar 16 horas por dia, se somadas as horas dedicadas ao trabalho voluntário que realizo há muitos anos em causas sociais.

A gravidez aconteceu na minha vida após um curto relacionamento com meu atual companheiro e, mesmo inesperada, foi motivo de muita alegria.

Eu sou mãe. De um menino de quatro anos e dois meses lindo, criativo, alegre, curioso, tagarela e carinhoso. Entre suas características está uma que causa um tantinho de medo nas pessoas quando falo a respeito: O autismo.

Ele foi pré-diagnosticado há exatamente um ano, após mais de dois anos de pesquisa para entender seu atraso de fala e algumas de suas dificuldades que começaram a surgir após ele fazer dois anos.

(Falo pré-diagnosticado porque diagnóstico de autismo só pode ser devidamente confirmado a partir da idade das operações concretas, como dizia Piaget, ou seja, dos sete anos de idade).

Nessa caminhada fui obrigada a estudar muito, graças a falta de conhecimento até de profissionais que me atenderam e me deixaram ainda mais perdida.

O que é autismo? Existem muitas teorias, mas poucas respostas efetivas. Entre elas, a teoria que mais respondeu minhas dúvidas é a da neurodiversidade. Autistas são pessoas com um “sistema operacional” cerebral diferente das não autistas. E mesmo entre os autistas esse sistema é bem diversificado, alinhando-se em algumas características comuns com variações de intensidade: dificuldade na comunicação e interação social e interesses e comportamentos restritos e repetitivos.

Podemos pensar que autistas possuem um sistema operacional Linux e não autistas, Windows. O Linux deles conversam de uma forma bem diferente entre os aplicativos – as chamadas sinapses neuronais – e essa conversa acaba meio truncada porque alguns papos que deveriam ter sido esquecidos permaneceram no lugar (a fagocitação de células mortas é ineficiente), fazendo com que o sistema tenha informação em excesso, muito mais informação do que nos sistemas Windows.

Mas o sistema é inteligente e sabe como se autorregular, então crianças autistas costumam pensar “por imagens” ao invés de palavras como os Windows; buscam ou evitam incessantemente atividades sensoriais que equilibrem os sentidos que estão atrapalhados (pulando, andando nas pontas dos pés, evitando ou provocando barulhos, etc). Não é a toa que o querido psicanalista Manuel Vazquez Gil diz que autistas são os que fazem a si mesmos: eles sabem quais são suas dificuldades e também sabem exatamente o que fazer para enfrentá-las.

Mas os dotados do sistema operacional Windows são arrogantes demais para entenderem isso. E, portanto, insistem em tentar moldar os Linux aos seus métodos e forma de agir. Isso acaba gerando problemas nos autistas que, incapazes de se autorregularem, acabam tendo explosões de raiva que são vistas, pelas pessoas leigas, como “birras”.

Agora que expliquei que autismo não é doença, autismo não é um problema, autismo é parte da neurodiversade humana e suas maiores dificuldades residem em terem que se comunicar com cérebros Windows que se acham melhores do que eles, vamos para a parte II deste texto.

Oh Happy Day Fotografia

Parte II

Coloquei a palavra “birra” em aspas de propósito. O adulto criou essa palavra para toda demonstração excessiva de sentimentos de uma criança que ele não consegue entender. “É mimo demais, dizem”. Em um país onde 18.000 crianças sofrem violência POR DIA, fico impressionada como, na visão de muitos, existem crianças “excessivamente mimadas”. Mas, voltando às birras: lembram que falei das sinapses lá atrás? Crianças pequenas têm muito mais sinapses que adultos, pois suas redes neurais estão em formação. Principalmente por volta dos dois anos, aquele ser humano em miniatura tem uma falação incessante no seu cérebro e ainda não tem a maturidade cerebral necessária para entender certas situações ou mesmo conter suas emoções, que estão, literalmente, à flor da pele (tá, tem adultos assim, mas isso já é outra história).

Existem crianças mal educadas? Claro que sim, assim como adultos e idosos. Existem pais permissivos? Sim, como existem milhares de pais autoritários demais e ambos os casos podem levar a futuros adultos com baixa autoestima, dificuldade de lidar com frustrações, etc. Mas vamos parar de chamar de birra que parece uma palavra inventada para todo comportamento que não sabemos lidar? Quem sabe assim conseguiremos olhar de forma mais profunda a causa desses comportamentos, que pode sim ser a falta de limites mas também uma forma de comunicar algo que a criança não está conseguindo expressar da maneira como gostaríamos que ela se expressasse?

Meu filho, como eu disse no início, é um doce. E pula. E fala alto. E canta bem alto. Ele ri descontroladamente e se joga de forma perigosa sobre coisas e pessoas. Quando está com seu sistema sensorial sobrecarregado, é um Deus nos acuda. Se eu piscar os olhos, ele está em cima da mesa tentando voar. Ele também tem muita dificuldade de dormir, então, quando está cansado demais, fica se movimentando quase que desesperadamente, pois não entende o que está acontecendo com seu corpo, por mais que eu tente explicar. E pula. E ri. E se coloca em situações de risco.

Alguns pais, temerosos dessas horas, acabam por utilizar medicações. Não os julgo, até porque o autismo do meu filho é considerado “leve”. Mas euzinha, que até hoje mal tomo uma dipirona para as minhas enxaquecas monstruosas, evito medicamentos tradicionais de todo o tipo, para mim e para ele.

Então que quando saímos de casa ele é quem é, ou seja, ele pula, ele corre, ele ri e gargalha, as vezes toca nas pessoas e pega nas mãos de desconhecidos. Eu fico grudada nele quase que o tempo todo, tentando garantir a sua segurança e a dos demais. Coloco limites, sem no entanto atrapalhar sua autorregulação, o que seria um desastre para mim e para ele.

É nessas horas que eu sinto os olhares julgadores de quem não me conhece nem ao meu filho. Esses olhares transmitem as frases que li dezenas de vezes na internet nos últimos dias, por conta de adultos que resolveram demonstrar todo o seu preconceito com o universo infantil. “Não aguento crianças birrentas”, “as crianças de hoje acham que podem tudo”, “os pais de hoje não sabem controlar seus filhos”…

Talvez eles não saibam que até pouco tempo atrás, um filho como o meu era escondidos em casa ou internado em instituições. Era o melhor lugar para ele, diziam. Não sabia conviver em sociedade e seria marginalizados pelos demais, afirmavam.

Talvez eles não saibam que existem muitas escolas (principalmente as particulares) que não querem o meu filho lá. Ele precisa de um atendimento especializado, dizem. Nós não sabemos como tratar seu filho, afirmam, como se ele fosse um ser de outro planeta. As outras crianças irão debochar dele, ameaçam. Foi preciso uma lei para que as portas se abrissem – ou não fechassem e, mesmo assim, ainda dão um jeitinho para nos tirar de lá.

Daqui 10 anos ele não será mais alvo desses comentários absurdos que li e me fizeram chorar por horas. Poderá frequentar certos restaurantes e hotéis que não aceitam crianças. Mas veja bem, ele continuará autista. Por ser um autista leve, talvez não desperte tanto a atenção, mas será visto como “aquele menino esquisito” quando ele de repente levantar e der uns pulos fora de hora, ou soltar uma gargalhada imprópria, ou simplesmente começar a andar rapidamente de um lado para o outro. Sua maneira estranha será parcialmente perdoada, afinal, ele não é mais aquele abominável ser chamado criança e suas habilidades extraordinárias possivelmente já serão reconhecidas.

Muitas crianças iguais a ele não terão a mesma sorte. Porque não encontrarão uma escola que os acolha, porque seus pais, cansados de tantos julgamentos alheios, talvez evitem levá-los aos restaurantes e “locais de adulto” onde eles poderiam exercitar a capacidade de estarem nesses ambientes e de se relacionarem com os windows que lá estiverem.

Mas, quem sabe, o mundo evolua um pouquinho mais nos próximos anos. Quem sabe se essas pessoas que tanto vomitaram ódio contra um dos grupos mais oprimidos pela sociedade patriarcal possam pensar 1, 10, 20 vezes antes de julgarem e externarem seus preconceitos? Talvez, antes de olharem impiedosamente para aquela criança que pula, prontos para julgarem seu comportamento, lembrem deste texto e pensem melhor.

Eu, a mãe de um autista, agradeço.

* Adriana Torres é uma mineira generosa que trabalha com marketing no terceiro setor e curte trabalho voluntário, é mãe do Leon, gosta de cachorros e gatos, casa cheia de amigos mas também de sossego e de redes sociais. Você pode lê-la em seu blog ou acompanhá-la no Twitter @Adriana_Torres.

Um comentário:

  1. Gostei muito da forma clara e precisa que a autora expressa seus sentimentos em relação ao autismo de seu filho, mas principalmente da lucidez com que reconhece os limites existente nos "windows", que ainda enxergam e classificam as pessoas apenas pela aparência, física, emocional ou de sua expressão diante do mundo adulto. Espero, sinceramente, que não tenhamos que esperar por 10 ou 20 anos para ver a evolução humana se concretizar e podermos curtir e admitir que justamente essa diversidade é a parte mais fantástica deste Universo!

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