Páginas

terça-feira, 6 de dezembro de 2016

PEC 55/241: proposta tóxica e mortal para as crianças

É em momentos de crise que devemos rever nossas prioridades como sociedade

por Pedro Hartung* e Adriano Massuda**

O Senado Federal fará em breve a votação final da séria reforma constitucional proposta pelo governo atual que determina o congelamento das despesas primárias acima da inflação por 20 anos, tendo como base os já baixos valores das despesas pagas no exercício do ano 2016, buscando tratar uma antiga e necessária demanda por reforma fiscal. Contudo, o modelo de “Novo Regime Fiscal” adotado pela PEC 55 (PEC 241 na Câmara) – com o congelamento de investimentos em serviços públicos essenciais e estruturais de saúde, educação e assistência social –, traz consequências gravíssimas para todos, mas primeiramente para as crianças, as mais sensíveis às mudanças abruptas nas políticas públicas vigentes.

Segundo a PEC, nos próximos 20 anos haveria um teto para o gasto público real em despesas primárias, o que dificultaria novos investimentos reais nos setores de saúde, educação e assistência social e, na prática, implicaria na diminuição progressiva do gasto per capita e da proporção em relação ao PIB, especialmente com o fim da obrigatoriedade constitucional do financiamento público em saúde e educação. Assim, ocorreria a consequente deterioração desses serviços para que o teto global proposto pela PEC e a despesa com outros gastos, como a previdência, sejam mantidos, considerando que a demanda continuará aumentando em função das mudanças epidemiológicas e demográficas em curso no Brasil.

No campo da saúde, ainda que o Estado brasileiro já seja um dos países que possui menos gasto público proporcional no setor[1], com a aprovação da PEC haveria o declínio do piso[2] e a redução do gasto público per capita de R$ 822 para R$ 441 em 2036. Em uma simulação do impacto da PEC 55 sobre o gasto federal do SUS caso a norma tivesse vigorado desde 2003, a perda de recursos teria sido de 42,1% neste período de 13 anos, um montante de R$ 257 bilhões. Projeções de cenários futuros apontam a perda de R$ 654 bilhões a R$ 1 trilhão no período de 20 anos.[3] Assim, com aprovação da PEC, certamente programas de prevenção e atenção básica, dos quais as crianças mais se beneficiam, seriam afetados diretamente.

Com relação à educação, a PEC dificulta o cumprimento do já aprovado Plano Nacional de Educação e tenderia a reduzir os recursos aplicados pela União à manutenção e ao desenvolvimento do ensino[4]. Já nas políticas de assistência social, a PEC resultaria em uma perda em 2036 de 54% da receita para os programas já existentes, com projeções da ordem de R$ 868 bilhões, impactando seriamente a continuidade das políticas de enfrentamento dos níveis de desigualdade social, tão importantes para milhões de crianças e suas famílias.[5]

Ainda, não somente o sistema de saúde, educação e assistência social seriam afetados. Toda a rede de proteção à criança e seus direitos, uma vez que fazem parte do gasto público universal, seriam diretamente impactadas pelo novo teto, como, por exemplo, o fortalecimento da Política nacional de convivência familiar e comunitária, do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase) e outras fundamentais políticas destinadas a crianças em situação de vulnerabilidade social.

O resultado disso seria realmente catastrófico, conforme nos mostram a experiência recente de países que adotaram regimes de austeridade considerados até menos severos que o do Brasil, especialmente com relação ao tempo de vigência e à base do cálculo do teto. Na Grécia, os cortes no gasto público em saúde provocaram, revertendo uma longa queda histórica, o aumento da mortalidade infantil em 43%.[6]

Ainda nesse sentido, o relatório da UNICEF sobre o impacto nas crianças de crises econômicas em 41 países apontou que a diminuição e os cortes nos serviços em saúde, educação e nutrição geram ainda maior pressão sobre as famílias vivenciando perda de renda e desemprego, o que, dentre outras coisas, aumenta os índices de ansiedade e estresse nas crianças e diminuem os índices globais de saúde mental, especialmente e mais fortemente nas mais pobres.[7]

E esse estresse é literalmente tóxico para o desenvolvimento infantil. Pesquisas recentes apontam que a excessiva e persistente ativação de sistemas responsivos de estresse liberam substâncias no cérebro infantil que enfraquecem a arquitetura cerebral e interrompem o sadio desenvolvimento de outros sistemas de órgãos[8]. E o impacto disso não é somente nos indivíduos, mas em toda a sociedade que arcará com aumento dos custos sociais futuros e dos problemas estruturais de adultos que não receberam o devido cuidado e apoio social nos períodos críticos e fundamentais do desenvolvimento quando crianças.

Assim, a equivocada escolha de reforma fiscal pelo congelamento por 20 anos de investimentos em serviços públicos de saúde, educação e assistência social proposta pela PEC 55 possui consequências para gerações inteiras de crianças e, assim, para o bem-estar e para a própria capacidade produtiva de toda a sociedade.

É em momentos de crise que devemos rever nossas prioridades como sociedade para orientar como e para que finalidade o gasto público será realizado. James Heckman, prêmio Nobel de Economia, comprovou em seus estudos que é mais inteligente e rentável para a redução dos déficits e para o crescimento da economia o investimento, o mais cedo possível, na infância, com o retorno de 7 dólares para cada 1 dólar investido.[9]

A garantia real e efetiva dos direitos da criança com prioridade absoluta, obrigação do Estado, da sociedade e da família pela própria Constituição Federal no art. 227, somente pode ser realizada com a destinação orçamentária privilegiada para as crianças e para os serviços públicos essenciais que elas utilizam e necessitam. Nesse sentido, a PEC 241 e seu modelo de austeridade é uma flagrante e inconstitucional ameaça aos direitos fundamentais das crianças conquistados após um intenso processo de mobilização social durante a última Constituinte e, por isso, deve ser repensada, em uma resistência ao retrocesso nos padrões civilizatórios de dignidade que, arduamente, conquistamos como sociedade brasileira.

—————————————

*Pedro Hartung - Advogado do Instituto Alana, doutorando em Direito do Estado pela USP e pesquisador visitante na Harvard Law School - Programa Advocacy da Criança (CAP)

**Adriano Massuda - Médico, professor da UFPR, doutor em Saúde Coletiva pela Unicamp e pesquisador visitante na Harvard T.H. Chan School of Public Health



Nenhum comentário:

Postar um comentário