Páginas

quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

Os retrocessos nas políticas da área de álcool e drogas na cidade de Curitiba

Curitiba Merece uma Política de Drogas Humana, Inclusiva e Voltada a Vulneráveis

Nas últimas semanas identificamos mudança de diretrizes das políticas sobre drogas em diferentes níveis. No âmbito do governo de Temer, o Ministro Alexandre Moraes anunciou o resgate da já desgastada guerra contra as drogas, com o discurso anacrônico de erradicar o uso de cannabis no país, processo oposto a todas evidências internacionais que apontam para a necessidade de regulamentação do uso, diferenciando padrões e contextos de consumo, tal qual acontece no consumo de álcool. Por outro lado, o Ministro Osmar Terra anuncia a necessidade da presença de psiquiatras na gestão da saúde mental, álcool e drogas, que, segundo o ministro, são aqueles que entendem de fato, com base científica, estas questões, sujeitando fenômenos extremamente complexos ao diagnóstico e a procedimentos médicos. Finalmente, o Ministério da Saúde aponta para a possibilidade de comunidades terapêuticas passarem a ser consideradas serviços de saúde, declarando um ataque a políticas de cuidado em sociedade de usuários de drogas e promovendo processos de tratamento longos, pautados em isolamento, segregação social e moralização religiosa do fenômeno.

A mesma fórmula que vem sendo reproduzida ao longo dos últimos 60 anos, que simplifica problemas extremamente complexos e que agrava um dos mais preocupantes problemas a serem enfrentados pela civilização contemporânea: a criminalidade e a crise do sistema penitenciário. Mais do mesmo. Parece que não aprendemos! Reproduzimos a ideia bastante questionável de que problemas relacionados ao uso de drogas são assunto de polícia e devem ser resolvidos com repressão. Depois disseminamos uma cultura do medo e do terror, que espalha pânico, oprime os cidadãos, mas não informa, não orienta, não ajuda.

Se estas diretrizes são hegemônicas no Governo Federal, o início do ano aponta em Curitiba um alinhamento ao que ocorre em Brasília. O campo de construção de políticas voltadas a populações vulneráveis usuárias de drogas promete ser desmantelado até o final do governo Greca. Ao longo do quadriênio 2013-16, as sucessivas gestões de políticas de drogas procuraram incorporar na composição das políticas um amplo diálogo com movimentos sociais, fortalecendo as conferências municipais, se aproximando de movimentos LGBT, de Populações em situação de rua, Central Única das Favelas, Associações de Catadores, grêmios estudantis e outros coletivos que representavam populações historicamente excluídas e junto as quais o uso de drogas é especialmente prejudicial. A política desenvolvida em Curitiba neste período partiu da perspectiva da heterogeneidade do fenômeno de uso de drogas e da necessidade de estratégias singulares de cuidado, para cada uma destas formas. Ao contrário de muitas outras capitais, o projeto desenvolvido se alinhou a uma política de direitos humanos, o Curitiba Mais Humana, que facilitou a interlocução intersetorial dentro do governo e articulou a política sobre drogas a outros processos em andamento, como de tipificação do sistema de acolhimento institucional, com o desenvolvimento dos Portais do Futuro e com a ampliação do número de leitos nos centros de atenção psicossocial (CAPS).

Os resultados destas ações foram identificados já ao longo deste governo que se findou. Realizamos anualmente mais de 3 mil novos acolhimentos noturnos anuais nos CAPS, média de 50 abordagens noturnas a populações vulneráveis em locais de uso diariamente com resultados surpreendentes, como inserção em serviços usuários de drogas há mais de 20 anos em situação de rua. Várias outras ações do Departamento de Política Sobre Drogas encontram-se em andamento nos Portais do Futuro, em praças públicas, escolas municipais, além da contratação de mais de 100 leitos de acolhimento para usuários em tratamento. Todos estes projetos têm sustentabilidade financeira e possibilidade de refinanciamento federal, algo raro no cenário de financiamento público atual. Entretanto, a mudança de diretriz da política sobre drogas coloca em ameaça direta todas estas ações.

A primeira semana de gestão Greca já apontou o tom. Dificuldade de interlocução dos movimentos sociais com o governo, deslocamento do departamento de política sobre drogas para a gestão de delegados federais na defesa social, desmonte de toda a equipe que administrava, acompanhava, auditava e supervisionava tecnicamente todos os projetos e convênios junto ao governo federal. Aponta também para o entendimento na secretaria de saúde que os programas voltados para usuários em situação de rua tratam-se de privilégios, não de promoção de equidade, princípio fundamental do Sistema Único de Saúde. Da mesma forma, a nova gestão aponta para o fato de que, entre usuários dos projetos, estão criminosos que devem ser identificados e tratados como tal. Assim, não só a defesa social quanto a saúde, passaram a ser pautados por uma ideologia de ação do Estado voltada para a repressão ao uso e guerra ao usuário de drogas.

Num cenário de crise do sistema penitenciário. Num cenário no qual não há qualquer fiscalização, regulamentação ou regulação de comunidades terapêuticas; num cenário em que há um aumento em todo o país de populações em situação de rua; num cenário de crise de financiamento da saúde e agora de impossibilidade de expansão da rede de cuidado de usuários de álcool e drogas, acabar com estratégias inovadoras, financiadas e reconhecidas nacionalmente impõe um custo social alto para uma manobra política. Não é necessário desconstruir experiências bem sucedidas para emplacar marcas. Basta fazer uma boa gestão e pensar, antes de qualquer coisa, no ser humano.


Marcelo Kimati – psiquiatra, ex diretor de política de drogas de Curitiba

Diogo Busse- advogado, ex diretor de política de drogas de Curitiba

Nenhum comentário:

Postar um comentário