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segunda-feira, 27 de março de 2017

Força descomunal desfaz conquistas sociais e suga Brasil de volta ao passado

Terceirização também afetará previdência e FGTS
INSS e construção civil vão resistir à falta de recursos?

CORRAM PARA AS MONTANHAS, ESTOQUEM ÁGUA: É A FÚRIA LEGISFERANTE
Os manuais de comportamento ante a ocorrência de catástrofes mandam adotar procedimentos padrões destinados a salvar o maior número de pessoas enquanto tsunamis, furacões, incêndios ou tempestades de areia devastam extensas áreas antes habitáveis. Fruto do empirismo da raça humana, ao longo dos séculos os ensinamentos consagrados nesses manuais garantiram a sobrevivência da raça humana mesmo quando se desperta a fúria bíblica de elementos da Natureza como água, ar, fogo e terra.
O Brasil de 2017 exige que se recorra a um desses compêndios de resistência a grandes catástrofes. A aprovação a toque de caixa, na última 4ª feira 22 de março, pela Câmara dos Deputados, de uma lei redigida em 1997 e que dormitava nas profundezas das gavetas legislativas desde 1998, é só mais um sinal a nos avisar: uma força descomunal atua sobre o país sugando-o de volta ao passado. Desfaz conquistas sociais antes tidas como sólidas. E os arautos desse inferno que ameaça tragar a todos saem de suas cavernas ancestrais a partir de uma espécie de portal que nos conecta diretamente com o Mundo das Trevas do subterrâneo –a Praça dos Três Poderes, em Brasília.
Em apertada síntese, o que os deputados aprovaram na Lei da Terceirização foi a legalização da possibilidade de se terceirizar atividades-fim dentro de uma empresa retirando da contratante quaisquer responsabilidades sobre eventuais desajustes das contratadas para com a Receita Federal, a Previdência Social, processos trabalhistas diversos, planos de saúde ou garantias à vida dos futuros funcionários terceirizados no exercício de suas funções.
Traduzindo, é assim: quando sancionada, a nova lei permite que um grande fabricante de bolachas, por exemplo, contrate cooperativas variadas de profissionais que lhes fornecerão os empregados encarregados de carregar farinha e sal para as caldeiras, operadores de forno, empacotadores e transportadores. A indústria, resguardada pela lei, não terá compromisso nem de recolher, nem de verificar se estão sendo recolhidas, as contribuições previdenciárias dos empregados terceirizados (afinal, no jargão padronizado, eles serão “microempresários individuais” mesmo que vistam macacão de operários e batam cartões de ponto como operários). A existência, ou não, de planos de saúde e de seguros de vida para esses terceirizados passará a ser uma condescendência da contratante das cooperativas terceirizadas, a fictícia fábrica de bolachas de nosso exemplo. Conceder, ou não, direitos antes considerados cláusulas pétreas de nosso regramento trabalhista, como férias e 13º salário, idem. Sim, será um salve-se quem puder –e sabemos que poucos podem.
O Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) divulgou estudos indicando que os salários de empregados terceirizados são, em média, 17% menores do que aqueles pagos sob as garantias da Consolidação das Leis Trabalhistas, a CLT que se está querendo matar. O Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos) revelou que em 80% dos casos de acidentes de trabalho as vítimas prestavam serviços a empresas terceirizadas, pois elas têm menor apego à observância das normas de segurança. Tudo isso antes do “liberou geral” decretado pela Câmara dos Deputados ao ressuscitar das entranhas do Poder Legislativo um projeto quase esquecido de 1998.
Mesmo em meio às catástrofes é o exercício de olhar para a frente, contabilizando os mortos e deixando para recolher os corpos depois da passagem dos infaustos, que tem assegurado a sobrevida da humanidade. Há que se adotar o procedimento aqui e perguntar:
  1. Se vivemos a mais aguda crise de desemprego dos últimos 40 anos, e se o emprego é contabilizado sobre o registro em carteira, como o atual governo fará para divulgar a evidente e esperada explosão de informalidade que virá? Se hoje registramos 14 milhões de desempregados, cerca de 60 dias depois da sanção dessa nova lei eles serão 16 milhões – em dados oficiais. Crescerão em progressão quase geométrica.
  2. Estimou-se o impacto da nova regra, que desobriga as grandes empresas de recolher a contribuição para o INSS de seus contratados? Ou sequer de verificar se as terceirizadas o recolhem? Como cairá a contribuição patronal, fez-se algum exercício aritmético para saber se o combalido caixa do INSS resiste a esse default de arrecadação?
  3. E como ficará o saldo do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço que é pedra de sustentação de um dos setores mais dinâmicos da economia, o da construção civil? Microempreendedores individuais, a forma tucanada com a qual já se designa os terceirizados, não recolhem FGTS. Se a tendência é que se tornem maioria no mercado de trabalho, como ficará o caixa do FGTS? Em 10, 12 anos, haverá saldo para financiar projetos estruturadores como o Minha Casa, Minha Vida?
  4. Como estarão, até o fim do ano, as empresas de planos de saúde se perderem o esteio de suas contabilidades: a certeza das mensalidades pagas pelas grandes empresas que têm obrigação de contratar planos para seus funcionários? Haverá enorme impacto nesse mercado, também, assim como no de seguros de vida. Será um desarranjo razoável no setor de serviços.
Discute-se no Senado um outro projeto de terceirização que pode rever aspectos da lei aprovada na Câmara. Ou seja, a vanguarda trabalhista pode estar nas mãos dos senadores. Mas o Senado não tem poder para sobrepor suas vontades àquilo que já está no Planalto para sanção. Costura-se a alternativa de se fazer um chamado “bem bolado legislativo” pinçando artigos de um projeto e de outro, antes de encaminhar vetos e sanções aos Diário Oficial. A chance de uma costura como essa dar errado é de 9 em 10 alternativas.
Andamos sobre planícies devastadas. Dos planaltos miramos o horizonte e só vislumbramos tempestades de fogo e de areia. O tsunami ainda não passou. Para seguir os manuais, cidadãos, urge dar a voz de comando: corram para as montanhas, estoquem água! A fúria legisferante da vanguarda do atraso ainda não nos revelou seu auge. Ele virá, e trará choro e ranger de dentes. É bíblico.

*Luís Costa Pinto

Luís Costa Pinto, 48, é jornalista. Graduou-se na UFPE em 1990. Começou no jornalismo em 1988 no Jornal do Commercio do Recife. Trabalhou em redações de “Veja" (1990-96), "O Globo" (1997-98), "Folha de S.Paulo" (1997-98), “Época" (1998-2001) e "Correio Braziliense" (2001-02). Atuou como repórter especial, editor, chefe de sucursal no Recife e em Brasília e editor-executivo. Em 1992 recebeu os prêmios Líbero Badaró e Esso de Jornalismo por reportagens como “Tentáculos de PC”, “Pedro Collor Conta Tudo” e a cobertura do “Caso PC”. Em 1993 recebeu, junto com o jornalista Luciano Suassuna, o prêmio Jabuti de melhor livro-reportagem por “Os Fantasmas da Casa da Dinda” (Ed. Contexto). Desde agosto de 2002 é sócio da consultoria Idéias, Fatos e Texto, empresa especializada em consultoria de comunicação, análise de cenários e marketing político. De 2013 a 2016 foi também vice-presidente do Grupo PPG (holding de agências de publicidade e live marketing)."

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