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domingo, 15 de outubro de 2017

POR MAIS GENTE CAPAZ DE LIMPAR BUNDAS [ SOBRE A LIMINAR QUE RESTRINGE A ATUAÇÃO DE ENFERMEIRAS E ENFERMEIROS]


Você já deve ter lido nas mídias sobre uma decisão liminar vinda de Brasília que restringe a atuação dos profissionais da enfermagem, não? Pois se ainda não sabe disso, é importante que saiba, pois isso mexe decisivamente com a sua assistência à saúde também. O que aconteceu foi o seguinte: o Conselho Federal de Medicina moveu uma ação solicitando que consultas, exames e revalidação de receitas, que já eram realizadas por enfermeiras e enfermeiros na Atenção Básica, deixassem de ser realizados por esses profissionais e fossem realizados APENAS por médicos. E um juiz de Brasília acatou essa solicitação em forma de decisão liminar: profissionais da enfermagem estão proibidos de realizar consultas, exames e revalidar receitas.

Em um primeiro momento, pode ser que você tenha pensado:

“Mas isso não é um absurdo, isso é coerente, porque, afinal, é só médico mesmo quem tem autorização pra realizar esses procedimentos, isso não é papel da enfermagem”.

Se esse foi seu caso, com certeza você desconhece uma série de coisas e não sabe como funciona o sistema de saúde do seu próprio país – o que já é um problema. Então vamos começar do começo.


ATENÇÃO BÁSICA

Talvez você não saiba o que é atenção básica, mas é bem simples de entender. Pense assim: imagine como é grande o número de brasileiras e brasileiros que sentem problemas relacionados à saúde, ou adoecem de fato, ou se acidentam ou, enfim, precisam de diferentes tipos de atendimento e acolhimento no sistema de saúde. É muita gente – e num país desse tamanho e com os problemas estruturais que já temos (e que estão piorando a passos largos).

Como é que o sistema de saúde vai garantir a organização da chegada desse povo todo, distribuindo adequadamente e dizendo: “Esse vai pra cá, aquele pra lá, esse a gente consegue atender de maneira mais simples, esse aqui parece ser mais grave, precisa de atendimento mais complexo”, etc? Isso é feito justamente pela ATENÇÃO BÁSICA, uma espécie de porta de entrada do sistema de saúde. É quando doenças podem ser prevenidas pela identificação de contextos sociais e hábitos de vida, é quando se direciona cada caso para um tipo de investigação, quando se filtra e se organiza o fluxo dentro do sistema de saúde. A Estratégia Saúde da Família, por exemplo, é um dos nossos programas voltados para a Atenção Básica – sou uma apaixonada por essa estratégia, que eu mesma utilizo via posto de saúde do bairro onde moro (estou neste momento procedendo a uma investigação de sintomas que já duram 60 dias e tenho recebido atendimento digno e qualificado via SUS; aqui onde moro o SUS mostra ao restante do país que, sim, funciona e que, sim, o SUS dá certo quando há gestão e profissionais comprometidos).

Na Atenção Básica há um profissional que é fundamental, peça chave para o bom funcionamento, bom acolhimento, bom cuidado: O PROFISSIONAL DA ENFERMAGEM.

O profissional da enfermagem, além de tantas outras coisas, cuida – juntamente com outros profissionais - da chegada do nosso povo ao sistema de saúde justamente via Atenção Básica. Vejam a palavra que eu usei: CUIDA. Porque essa é uma grande diferença entre o profissional da enfermagem e o profissional da medicina. Mas falo disso mais à frente.

É na Atenção Básica que muitos problemas podem ser resolvidos, sem sobrecarregar ainda mais um sistema já sobrecarregado e cujos investimentos vêm diminuindo sobremaneira (e por pelo menos 20 anos será assim...).


MAS E ESSSE NEGÓCIO DE PROFISSIONAL DE ENFERMAGEM CONSULTAR, PEDIR EXAME, VALIDAR RECEITUÁRIO? TÁ CERTO ISSO NÃO.

Tá certo isso sim, você é que talvez não saiba.

Os profissionais da enfermagem vêm abrindo a porta de entrada ao sistema de saúde via Atenção Básica há mais de 20 anos! E eles e elas vêm fazendo isso justamente via consultas e requisição de exames. Não existe apenas um tipo de consulta. A consulta feita pelo profissional de enfermagem é a consulta de enfermagem e isso é totalmente legal: está regido por legislação (7.498/86) e regulamentada por decreto (94.406/87). E pedir exames? Também, tudo dentro dos conformes (Resolução Cofen no. 195/97). Ah, mas e a prescrição de medicamentos, isso não, né? Isso também, dentro dos programas de saúde pública e vinculado à Atenção Básica e a determinados protocolos. Tudo isso é ação do enfermeiro há muito tempo. É assim que funciona. É assim que precisa funcionar.

MAS SE É ASSIM QUE FUNCIONA, SE ISSO É NECESSÁRIO, POR QUE ENTÃO O CFM SOLICITOU A PROIBIÇÃO?

Bem, já é bastante sabido que o Conselho Federal de Medicina, que deveria defender prioritariamente o bom atendimento à saúde das pessoas, defende prioritariamente os interesses corporativos e o que eles acreditam ser exclusividade de determinadas “competências”. Basta ler a nota que este conselho emitiu à sociedade justificando o que solicita. Ela se baseia, integralmente, na defesa da exclusividade das ações de consulta e prescrição, ignorando toda a importância do profissional da enfermagem no contexto social e de saúde brasileiros. Trata-se, apenas, de um jogo de poder. De biopoder. De querer ditar quem tem competência e quem não tem, de maneira bastante enviesada e seguindo interesses corporativos e mercadológicos. Excluindo evidências. Excluindo o contexto social brasileiro.

Infelizmente, não é novidade a atuação do CFM no sentido de querer impor um suposto poder às custas da retirada de profissionais de determinadas cenas. Situação bastante similar ainda vivem as enfermeiras obstétricas e as parteiras com relação ao que o CFM pensa sobre assistência obstétrica. E é justamente esse jogo de poder que contribui para a perpetuação de práticas violentas dentro de toda a assistência à saúde, para a redução da qualidade do atendimento e da ineficiência do cuidado.

Quem perde com isso? Todos nós. Na linha de frente do tratamento da sífilis, da tuberculose e na prevenção do câncer de colo de útero, só pra citar alguns poucos exemplos, entre tantas outras condições, estão enfermeiras e enfermeiros. Não os médicos. E é claro que eu entendo que você não saiba disso, afinal, que tipo de educação para a saúde nós, brasileiras e brasileiros, temos? Uma educação parca, pobre, medicalizante, reducionista, voltada para esse cuidado cartesiano oferecido pela medicina flexneriana ocidental (dá um Google aí em Relatório Flexner e se prepare pra se chocar), que vê o corpo como máquina e a saúde como ausência de doença... Não sabemos nada. Nem nós, o povo, nem eles, os médicos. Porque, afinal de contas, esse conceito de Atenção Básica, acolhimento e cuidado eles deveriam dominar antes de qualquer coisa. E não dominam.


“VAI LIMPAR BOSTA DE BUNDA SUJA, SIM”

A imagem que abre esse texto foi apenas uma das manifestações de profissionais da medicina frente à decisão que restringe a atuação de enfermeiras e enfermeiros na Atenção Básica. Apenas uma, porque muitas apareceram nesse sentido... Isso mostra que a relação predominante é: PODER.

Associa-se a prática da medicina a um suposto poder. E, claro, permeado por uma questão de gênero – pois é “enfermeira” que está ali escrito, não “enfermeiro”. Para este rapaz, e tantos outros que se manifestaram neste sentido – ou que não se manifestaram mas pensam assim -, a prática da medicina está associada a um exercício de poder, poder sobre corpos, poder de prescrever, poder de diagnosticar. Poder. Qualquer outro exercício de atenção à saúde é visto por esse tipo de gente como “frustração”. Veja: estudou 12 anos, em tempo integral, para SEQUER saber a importância do profissional da enfermagem em toda a estrutura do sistema de saúde do próprio país, para sequer saber a importância de uma enfermeira, de um enfermeiro. Para manifestar todo seu preconceito e ignorância em forma de “vai limpar bosta de bunda suja, sim”.

O ódio e o preconceito manifestado por este médico, supostamente educado e treinado para praticar a medicina, não é irreal nem é incoerente. Ele faz sentido. Mas apenas quando trazemos à análise uma série de fatores que poucas vezes são considerados.

Médicos não nascem médicos. Eles se formam em medicina. E se tornam verdadeiramente médicos (ou pelo menos deveria ser assim) com o decorrer do tempo, em função da sua prática. Como todas as demais profissões. Todo aquele que acha que “tirou o diploma de medicina, é médico”, não sabe nada sobre formação humana, atualização, dedicação e contínuo aprimoramento, entre outras coisas. Isso tudo não se aprende na universidade, é uma questão, também, de motivação pessoal e do que se busca na vida, do que se valoriza em seu desempenho como pessoa. Por serem formados em medicina, esses profissionais, como todos os outros, aprendem com outras pessoas. E não aprendem apenas bioquímica celular, patologia, fisiologia 1, 2 e 3 e todas as demais disciplinas e teorias. A eles também são passados conceitos implícitos (ou explícitos) sobre postura, comportamento e sobre seu papel no mundo, de forma que se inserem em um determinado paradigma que, por uma questão de lógica, é o paradigma dominante do momento em que foi ensinado, um paradigma médico hegemônico. E nós sabemos: grande parte das instituições de ensino médico, grande parte dos docentes de instituições de ensino médico, realmente pensa tal e qual o rapaz do infeliz comentário.

Como é possível, então, exigir de uma geração de médicos uma prática embasada em conceitos de cuidado, respeito e empatia, quando cuidado, respeito e empatia são coisas que já faltaram em sua própria educação, por já faltarem na formação de seus formadores?

Obviamente que, por uma questão ética, não há aqui qualquer tipo de generalização; existem grandes docentes e profissionais humanistas que vêm se dedicando a modificar o paradigma da cura como excludente ao cuidado. Mas também sabemos que ainda são muito poucos, exceções em seu meio, e são frequentemente combatidos, perseguidos e difamados por seus pares tradicionalistas. E recomendo aqui a nota emitida pelos Médicos Pela Democracia, que se posicionaram contra a liminar por saberem que ela contribui para o desmonte do SUS – única forma de cuidado com a saúde disponível para a maior parte de nós, brasileiras e brasileiros.

Continuemos nossa análise.

Por quais outros motivos o comentário desse rapaz, Cassius, faz sentido?

Pela concepção que a sociedade - consumidora de medicina - tem do que é ser tratado. Para muitos, ser tratado é: receber nomes complexos para aquilo que (acha que) tem e sair com guia de exames ou prescrição farmacológica. Quantas pessoas nós conhecemos que, em algum momento, nos disseram (se não nós mesmos):

"Não gostei desse [médico]. Nem deu atenção, nem ligou. Eu dizendo que estava com problema de sono, que não conseguia dormir, e ele querendo saber se eu estava com alguma angústia, com alguma dessas coisas emocionais. Não me passou nem um remédio nem um exame. Não serve, não presta. Vou no Ciclano, que me pede uma bateria de exames, ele é que é bom". 

Então, não só, mas também por isso, o profissional se habitua a - e recebe incentivo para - prescrever freneticamente, solicitar exames (que aumentam números) ou propor intervenções absolutamente desnecessárias. Também por pressão social. Não se esquive não: todos temos uma pequena porção de terra nesse latifúndio devastado e empobrecido. Especialmente quando abrimos mão do cuidado em prol da técnica...

O comentário dele também faz sentido quando levamos em consideração o distanciamento do OUTRO.

Quando levamos em consideração o fato de que a sociedade em que vivemos (nós!) desvaloriza o outro, o desconhecido, o "sem laços" e o trata como um oponente. Aos nossos amigos: todo respeito e cuidado. Ao "OUTRO", esse cara safado, a técnica - e agradeça por ela! Se for pobre então, aí cuidado nem pensar. Limpar bunda? Jamais! Eu?! Esse cara branco que pode se dar ao luxo de estudar por 12 anos em tempo integral porque todo o subsídio me era fornecido por outra pessoa? Quiéisso, tá de sacanagem?

O comentário também faz sentido quando consideramos o paradigma cartesiano de bem estar, saúde e doença no qual todos vivemos. Em que a cura só é vista como produto da técnica, não do cuidado. Onde o amparo humano e emocional é preterido pela frieza e esterilidade do saber-fazer presente nos protocolos e manuais. Quando a gente deixa de pensar assim e passa a ver a cura e o sucesso terapêutico como produto de múltiplas variáveis, onde o cuidado, o amor e a entrega têm papel tão importante quanto o fármaco ou o eletrodo, então conseguimos ver que "ser curado" também passa, fundamentalmente, por "ser cuidado". E ser cuidado é algo que não precisamos de um médico para ser.

Realmente o cuidado pode vir da vizinha, do amigo, da namorada, da avó. Cuidado é ter, também, uma bunda sendo limpa. E deve ser realmente difícil, para aquele que vê a si e à sua prática como semidivindades, saber e reconhecer que tem coisa muito mais importante do que aquilo que ele pode oferecer. Ele não percebe que poderia aproveitar o cuidado para aprimorar a sua técnica de cura. Ele vê as coisas como excludentes, estimulado pelo meio em que foi formado e onde exerce sua prática cotidiana.


POR UMA MEDICINA QUE LIMPE MAIS BUNDAS

Limpar uma bunda não é algo que uma pessoa anseie por fazer. Não sei se existe alguém que acorde num dia de sol e diga: “Ah, que dia lindo para se limpar muitas bundas por aí!”. A questão não é limpar uma bunda. Porque, acredite se quiser, junto com uma bunda vem uma pessoa... A questão então é: cuidar de uma pessoa com tal desvelo que, sim, pode ser que seja necessário limpar sua bunda. Considerando que, se para nós, pessoas saudáveis a ponto de conseguirmos limpar bundas, já é uma situação delicada, imagine para quem está nessa condição de não conseguir limpar a si mesma... Pelo que ela está passando? O que ela está sentindo? Como é isso para ela? Certamente, difícil – isso se essa pessoa está em condição de consciência que a permita analisar sua própria situação.

Sabe... Tenho muito mais de 12 anos de estudo. Tenho 2 doutorados. Um deles em Saúde Coletiva, obtido dentro de um Departamento de Saúde Pública e estudando a violência que acontece às pessoas dentro do sistema de saúde – praticada por diferente profissionais mas, em maior frequência, por médicos. E eu tinha 32 anos na primeira vez que limpei uma bunda. Era de um bebê. E limpei a bunda desse bebê por pelo menos 4 ou 5 anos (não me lembro exatamente quando ela começou a conseguir sozinha). E devo dizer que foi quando isso me aconteceu – não tendo sido preparada para cuidar de crianças, posto que não pensava em ser mãe, mas tendo sido preparada para olhar para PESSOAS - que consegui de fato compreender esse gesto de alteridade que está embutido nesse não muito simples ato de LIMPAR UMA BUNDA. Há ali um ser humano que, de alguma forma, precisa de você. Precisa que você o veja como ser detentor de cuidado e que cuide dele com respeito.

Eu, sinceramente, não anseio pelo dia em que minha bunda precise ser limpa por alguém – porque sei que se isso acontecer, não estarei bem e estarei precisando de cuidados intensos. Mas se isso um dia acontecer, quero deixar aqui minha profunda gratidão por quem se dispuser a isso. Porque técnica a gente encontra em qualquer lugar. Empatia e alteridade, não.

Um profissional, ou um grupo de profissionais, que veem num ato de limpar a bunda algo secundário, humilhante, depreciativo, não serve para cuidar de pessoas. Nem para tratá-las.

Se um dia nossa medicina (essa, a ocidental) conseguir se pautar pelos preceitos de cuidado que guiam muitos profissionais da enfermagem, talvez consigamos enxergar o outro de maneira mais empática. Enquanto isso, é bom que se evidencie a existência de gente assim, como Cassius: uma voz coletiva contra o humano que há em todos nós e a serviço da manutenção de um poder - que não existe.



Por mais enfermeiras e enfermeiros nas linhas de frente da Atenção Básica.

Por mais profissionais humanistas pra cuidar de gente.

Por uma medicina que se veja humanista para, inclusive, limpar bundas.

NÃO À LIMINAR QUE RESTRINGE A ATUAÇÃO DE ENFERMEIRAS E ENFERMEIROS PARA GRANDE PARTE DO NOSSO POVO.

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