Páginas

quinta-feira, 7 de dezembro de 2017

Ex-ministro pede fim de subsídios para usuários de planos de saúde: 'Quem quiser que pague'


Foto: Tiago Dias / Bahia Notícias

A saúde sozinha não resolve os problemas observados no Brasil nessa área. Essa foi a principal lição que o ex-ministro da Saúde José Gomes Temporão levou do período em que foi responsável pela pasta. "Acho que a grande lição foi essa e que a saúde é muito ampla, porque entra pelo campo da cultura, política, social, ambiental, é gigantesca. As pessoas quando pensam em saúde pensam logo em médico e hospital. Nada mais equivocado", afirmou. 

Médico sanitarista, Temporão foi ministro durante boa parte do segundo mandato do governo Lula, de março de 2007 a janeiro de 2011. Em entrevista ao Bahia Notícias durante passagem por Salvador (veja aqui), o ex-ministro defendeu a extinção das deduções no imposto de renda dos consumidores de serviços privados de saúde. "Todo cidadão de classe média abate todo ano do imposto de renda devido despesa com médico, dentista, psicólogo, plano de saúde. Nessa continha, o governo deixa de arrecadar R$ 25 bilhões por ano que iriam para o SUS e que são subsídios diretos e indiretos para planos e serviços de saúde. Isso é um absurdo e queremos acabar com isso. Quem quiser pagar plano de saúde que pague. Não faz nenhum sentido que isso seja abatido dos impostos, ou seja, que o Estado deixe de arrecadar esses impostos para destinar ao serviço público", argumentou. 

Temporão ainda avaliou o SUS desde sua criação, com elogios a novos programas criados desde o governo Lula, e criticou posicionamentos observados no governo Temer. "O atual governo diz que vai fazer mais com menos recursos. Mentira, isso é uma farsa, isso é retórica. Priorizar a melhoria da eficiência do gasto é possível, com novas ferramentas, novos modelos de organizar o trabalho… Ninguém discorda disso e é responsabilidade de todos perceber. Mas abrir mão de enfrentar a questão do subfinanciamento nos leva a uma distorção", criticou. 

Talvez a grande mudança do segundo mandato de Lula até hoje tenha sido a incorporação do Programa Mais Médicos, que é alvo de muitas críticas. Como o senhor avalia a evolução da saúde até chegar a esse ponto?

O SUS é uma construção da sociedade brasileira. As novas gerações não lembram, mas até 1988, antes da Constituição, havia três tipos de cidadãos no Brasil: pessoas ricas, que poderiam pagar diretamente pela atenção à saúde; as pessoas formalmente inseridas no mercado de trabalho, que tinham acesso à Previdência Social com o INAMPS [Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social]; e a maioria da população brasileira, que não tinha direito a nada e era objeto da caridade e filantropia, ou seja, morria sem nenhum tipo de assistência. O SUS foi uma revolução desse ponto de vista. Ano que vem estamos fazendo 30 anos da implantação do SUS, com o qual conseguimos uma ampliação brutal do acesso da cobertura, redução de vários indicadores de saúde. Foi um grande impacto do ponto de vista das condições objetivas e subjetivas de viver, do ponto de vista da segurança que passa para o cidadão saber que, no caso de uma doença grave, existe a quem recorrer, em uma política universal e igualitária. Eu diria que, desde o início do SUS há um vetor positivo, claro que cada governo com sua visão mais ou menos progressista. Diria que, durante o governo Lula, tivemos grandes avanços. Posso citar a criação da Secretaria de Ciência e Tecnologia - hoje o grande financiador da pesquisa e saúde no Brasil é o Ministério da Saúde -, o Farmácia Popular, Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), Brasil Sorridente, Saúde nas Escolas, a política de internalização das tecnologias no Brasil ao invés de importar de fora, incorporação de novas drogas e vacinas… São inúmeros exemplos. O Mais Médicos foi uma inflexão porque esse é um problema crônico no Brasil, só há médicos nas regiões mais desenvolvidas. Os médicos nunca quiseram trabalhar nas regiões mais pobres, são necessárias políticas que levem a isso. O Mais Médicos veio quebrar, romper o paradigma de que os médicos não vão para os 300 municípios de IDH mais baixo, onde não tem estrutura, escola para os filhos. Acho que teve uma grande polêmica com a categoria médica pela maneira que foi implementado, mas não tenho nenhuma dúvida ao afirmar que foi totalmente positivo. Milhões de brasileiros que não tinham acesso direto ao médico passaram a ter. Nesse período, eu diria que a primeira questão que perpassa todos os governos sem que tenha sido atacada desde 1988 é a questão do financiamento. O Brasil tem um sistema de saúde que pretende ser universal, o SUS. Igual para todos e financiado com o orçamento da União. Quando você vai ver a participação do gasto público no gasto total, olha que coisa curiosa, menos da metade dos gastos com a saúde no Brasil são públicos. Isso significa que quem gasta com saúde no Brasil são as famílias - pagando diretamente por medicamentos, exames, consultas, procedimentos - e as empresas. No caso, são principalmente as famílias e, proporcionalmente, as famílias mais pobres são mais impactadas. Nós temos um primeiro problema: o governo gasta pouco em saúde. Na Inglaterra, por exemplo, que seria nossa grande referência, 85% do gasto total são públicos. No Brasil, é menos de 50%. Segundo, vamos pegar o ano de 2016. No ano passado, para cobrir 50 milhões de brasileiros, os planos e seguros de saúde gastaram R$ 160 bilhões. No mesmo período, o SUS gastou menos de R$ 200 bilhões para cobrir 150 milhões de pessoas. O SUS atende todas as necessidades, da vacina ao transplante, com um valor pouco maior que o setor privado gasta para atender parcialmente um terço da população. Parcialmente porque transplante quem faz é o SUS, medicamento de alto custo quem dá é o SUS, programa de Aids quem atende é o SUS, Samu é SUS, qualidade de medicamento e atendimento é SUS. Ou o setor privado está nadando em dinheiro - que não está acontecendo porque todo mundo está reclamando - ou o SUS é brutalmente subfinanciado. Isso só se resolve quando a saúde for de fato uma prioridade do ponto de vista do desenvolvimento do país, quando cada cidadão perceber que o SUS é um patrimônio que foi construído por várias gerações e que deve ser política e socialmente defendido.



A gente ouve que a saúde pública tem um problema grave de gestão. O senhor, que foi gestor da saúde pública, concorda com essa avaliação?

Concordo no seguinte sentido: é responsabilidade de todo gestor melhorar a eficiência do sistema. Problema de gestão é uma questão permanente. O que eu discordo é o uso político que se faz disso. Por exemplo, o atual governo diz que vai fazer mais com menos recursos. Mentira, isso é uma farsa, isso é retórica. Priorizar a melhoria da eficiência do gasto é possível, com novas ferramentas, novos modelos de organizar o trabalho… Ninguém discorda disso e é responsabilidade de todos perceber. Mas abrir mão de enfrentar a questão do subfinanciamento nos leva a uma distorção. Nós temos que atacar as duas questões com a mesma prioridade. Buscar mais recursos para a saúde - podemos discutir como - e melhorar a eficiência. Dizer que tem dinheiro suficiente e a maior parte é gasta com corrupção e desvios é mentira. Não há nenhum estudo que permita sustentar isso. Existem desvios e mau uso de recursos na saúde, com certeza. Isso se resolve com mais transparência, fiscalização, participação da sociedade. Querer negar que o Brasil tem a saúde pública subfinanciada é uma grave distorção.

O senhor chegou no topo da gestão, foi ministro da Saúde, mas existe também o secretário de cidades pequenas no interior do estado. Qual o principal desafio para quem faz a gestão da saúde em todos os casos?

O principal desafio se chama trabalhadores da saúde. A saúde tem uma singularidade. Quando você olha para qualquer campo da economia ou do setor de serviços, quanto mais tecnologia você incorpora, mais desemprego se cria. Na saúde, é exatamente o contrário. Quanto mais tecnologia se incorpora, mais gente qualificada é necessária para operar essa nova tecnologia. E tem uma dimensão na saúde muito importante que a tecnologia não dá conta, que é exatamente o fato de que o primeiro medicamento que você prescreve para o paciente quando ele vai ao serviço de saúde é o próprio médico. Estou dizendo que você tem que escutar, examinar, acolher, cuidar. Essa dimensão humana do trabalho em saúde é fundamental. Eu diria que o primeiro e mais importante desafio do trabalho em saúde é ter profissionais muito capacitados, de grande qualidade, muito bem remunerados e felizes com o que fazem. Aí nós temos um problema. A atual estrutura do trabalho em saúde é tão heterogênea e tão fragmentada, com tantas modalidades de vínculos profissionais que isso acaba ficando difícil. Você tem terceirização, precarização, contrato por tempo determinado, organização social, administração direta, uma miríade de modelos, quando, na verdade, o ideal seria que tivéssemos um modelo no qual as pessoas pudessem ter dedicação integral e trabalhar principalmente o tempo todo nesse local. Para o médico, por exemplo, isso é fundamental, mas a maioria dos médicos hoje tem quatro ou cinco empregos. Isso cria uma fragmentação, não é possível seguir o paciente adequadamente. Eu diria que muita gente pode pensar que o grande desafio é implantação de novas tecnologias, informatizar todo o sistema, mas a questão central são as pessoas que trabalham, os cuidadores. Eles também precisam ser cuidados, precisam ter condições de trabalho adequadas para exercer plenamente a sua nobre profissão, que é a mais nobre que existe: cuidar da saúde das pessoas.


Qual a grande lição que o senhor tirou do período em que esteve como ministro da Saúde e qual foi a pior coisa?

A principal lição foi que a saúde sozinha não resolve a questão da saúde. Se você não tem apoio da área econômica, porque a solução do financiamento tem que sair da área econômica; se não tem apoio do Congresso brasileiro, porque a saúde depende de leis que lhe permitam atuar melhor; se não tem uma capacidade de comunicação com a sociedade, a sociedade não vai saber o que está acontecendo. Acho que a grande lição foi essa e que a saúde é muito ampla, porque entra pelo campo da cultura, política, social, ambiental, é gigantesca. As pessoas quando pensam em saúde pensam logo em médico e hospital. Nada mais equivocado. Hoje, por exemplo, nós temos um problema sério de contaminação por pesticidas no que os brasileiros estão comendo. Quem vive nos grandes conglomerados urbanos está sujeito aos efeitos da poluição ambiental, que causa doenças. Os nossos mananciais de água estão sendo contaminados por pesticidas e lixo. Um dos principais problemas de saúde pública no Brasil atualmente são 60 mil homicídios por ano. Não tem nenhuma guerra que mate tanta gente. Se somar a 40 mil mortes por acidentes no trânsito, são 100 mil pessoas no Brasil que perdem a vida por ano. A saúde não está confinada no hospital, está presente no nosso cotidiano, no salário, nas condições de moradia, no saneamento básico, no acesso à cultura, ao lazer, no padrão de alimentação, na possibilidade de atividades físicas regulares. Essa é a grande lição, agora dissabor nenhum. Sempre há o dissabor de não conseguir fazer tudo que gostaria, mas eu me envolvi em grandes polêmicas, importantes debates, defendi a questão do direito da mulher ao aborto, bati boca com Zeca Pagodinho porque ele faz propaganda de cerveja e isso induz o jovem a beber de maneira irresponsável, quebramos uma patente de medicamento pela primeira vez no Brasil, acho que fizemos muitas coisas interessantes e importantes. O SUS não começou hoje e nem vai acabar, apesar da crise que estamos vivendo, e com certeza vai ser no futuro o sistema que atende a todos os brasileiros. É totalmente equivocado confundir, e isso é muito comum, que o SUS é para os pobres. Um sistema de saúde pensado para os pobres seria um sistema de saúde pobre, e o SUS é para todos. Quem quiser pagar por uma estrutura hospitalar mais confortável, que pague do seu bolso, sem subsídios. Eu queria complementar que, quando a gente fala de subfinanciamento, todo cidadão de classe média abate todo ano do imposto de renda devido despesa com médico, dentista, psicólogo, plano de saúde. Nessa continha, o governo deixa de arrecadar R$ 25 bilhões por ano que iriam para o SUS e que são subsídios diretos e indiretos para planos e serviços de saúde. Isso é um absurdo e queremos acabar com isso. Quem quiser pagar plano de saúde que pague. Não faz nenhum sentido que isso seja abatido dos impostos, ou seja, que o Estado deixe de arrecadar esses impostos para destinar ao serviço público.

Nenhum comentário:

Postar um comentário