Esta semana, foi presa uma conhecida e respeitada médica do hospital para crianças “Astrid Lindgren”, aqui em Estocolmo. Alegação da polícia: a médica é acusada de assassinato de um bebê que estava sendo atendido na unidade de terapia intensiva do hospital.
As primeiras notícias davam conta de altas doses de morfina e outros medicamentos, que teriam sido utilizados para “matar” o bebê. É claro que o caso provoca reações de todos os lados. O advogado da médica protesta, porém, alegando que a acusada nada tem a ver com o caso. O que se está fazendo é destruir sua vida, apenas.
Passados alguns dias, as coisas começam a esclarecer-se. O que foi, a princípio, visto como um caso de polícia, parece-me na verdade um caso de drama ético e moral, como tantos outros que enfrentamos todos os dias, sem total consciência das nossas escolhas.
O bebê havia nascido prematuro, com apenas 6 meses de gestação. Sua vida estava sendo mantida por aparelhos. Aparentemente, uma equipe médica decidiu, após mais de três meses de internação, que as condições do cérebro da criança não lhe permitiriam ter uma vida normal. Os danos observados não seriam compatíveis com a vida. Por esse motivo, decidiu-se desligar os aparelhos que mantinham o bebê respirando. A rotina do hospital recomendaria, nesses casos, o uso de medicamentos para acabar com o sofrimento da pessoa. Os aparelhos foram retirados, os medicamentos ministrados, e o bebê faleceu no dia seguinte.
Mas os pais da criança denunciaram os médicos à polícia, o que levou à prisão da renomada pediatra.
Lidar com a vida e a morte... É difícil que decisões desse tipo, como interromper o tratamento de um paciente considerado um caso sem esperanças, sejam objeto de consenso. Vimos o drama da jovem italiana vítima de acidente automobilístico e em coma por mais de 17 anos. E vemos agora, em Pernambuco, a tragédia da menina vítima de aborto, cuja gravidez de gêmeos foi interrompida por recomendação médica.
A posição da Igreja Católica é conhecida, e não creio que venha ao caso analisá-la aqui. Mas, quaisquer que sejam nossas convicções religiosas, não podemos fingir que, como sociedade, não tomamos esse tipo de decisão no dia-a-dia, ou que não temos uma opinião sobre elas.
O argumento dos médicos suecos é forte: se não for possível retirar aparelhos ou interromper seu uso, em casos de pacientes sem esperança de cura, as unidades de terapia intensiva poderiam ficar bloqueadas e impossibilitadas de dar atenção a novos casos. Se entendi bem, trata-se de uma escolha entre duas alternativas: continuar tratando um caso sem solução e deixar de tentar salvar outros bebês, ou interromper um tratamento, deixar morrer uma pessoa desenganada, para que outras possam ter uma chance.
Podemos não gostar do resultado da decisão médica. Podemos discutir a decisão de interromper o tratamento do bebê sem esperanças de uma vida normal. Podemos, também, rejeitar totalmente a qualificação de “vida normal” que os médicos estejam usando.
A distinção, proposta por um médico em um artigo de opinião, no jornal Dagens Nyheter, entre vida biológica e vida humana (esta última caracterizada por uma alma, uma consciência) é, para mim, no mínimo perigosa. É aquela velha história: quando é que um bebê adquire consciência? A partir de que momento, em nossa “vida biológica”, pode-se dizer que temos uma alma? A alma da gente mora no cérebro ou no coração? Quando é que ela deixa nosso corpo a caminho da morte?
Mas, não seremos melhores seres humanos, nem melhores “filhos de Deus”, se nos negarmos a discutir esses temas e fizermos de conta que não temos de adotar uma opinião. O que quer que façamos nesses casos implica adotar um lado. Mesmo ficando em cima do muro, adotamos uma posição.
E, nesse sentido, é melhor que seja clara, aberta, franca e passível de discussão, reflexão, modificação.
Os médicos suecos querem um marco, a partir do qual possam tomar decisões sem serem ameaçados com o cárcere. A alternativa é cada vez menos profissionais interessados em trabalhar na terapia intensiva. Porque é nos hospitais, e principalmente nas UTIs, que nossas escolhas morais tornam-se mais evidentes.
Com certeza, a vida seria muito mais fácil sem esses dilemas. Mas, qual a graça dessa jornada, sem a liberdade de escolher?
E, se você quer saber, mesmo entendendo os pais do bebê morto, torço para que soltem logo a médica! Com ela na cadeia, pode ser muito mais vidas a se perderem...
PS: A médica foi solta, por enquanto, mas a investigação continua...
Sandra Paulsen, casada, mãe de dois filhos, é baiana de Itabuna. Fez mestrado em Economia na UnB. Morou em Santiago do Chile nos anos 90. Vive há quase uma década em Estocolmo, onde concluiu doutorado em Economia Ambiental. Escreve no Blog do Noblat sempre às segundas e sextas.
As primeiras notícias davam conta de altas doses de morfina e outros medicamentos, que teriam sido utilizados para “matar” o bebê. É claro que o caso provoca reações de todos os lados. O advogado da médica protesta, porém, alegando que a acusada nada tem a ver com o caso. O que se está fazendo é destruir sua vida, apenas.
Passados alguns dias, as coisas começam a esclarecer-se. O que foi, a princípio, visto como um caso de polícia, parece-me na verdade um caso de drama ético e moral, como tantos outros que enfrentamos todos os dias, sem total consciência das nossas escolhas.
O bebê havia nascido prematuro, com apenas 6 meses de gestação. Sua vida estava sendo mantida por aparelhos. Aparentemente, uma equipe médica decidiu, após mais de três meses de internação, que as condições do cérebro da criança não lhe permitiriam ter uma vida normal. Os danos observados não seriam compatíveis com a vida. Por esse motivo, decidiu-se desligar os aparelhos que mantinham o bebê respirando. A rotina do hospital recomendaria, nesses casos, o uso de medicamentos para acabar com o sofrimento da pessoa. Os aparelhos foram retirados, os medicamentos ministrados, e o bebê faleceu no dia seguinte.
Mas os pais da criança denunciaram os médicos à polícia, o que levou à prisão da renomada pediatra.
Lidar com a vida e a morte... É difícil que decisões desse tipo, como interromper o tratamento de um paciente considerado um caso sem esperanças, sejam objeto de consenso. Vimos o drama da jovem italiana vítima de acidente automobilístico e em coma por mais de 17 anos. E vemos agora, em Pernambuco, a tragédia da menina vítima de aborto, cuja gravidez de gêmeos foi interrompida por recomendação médica.
A posição da Igreja Católica é conhecida, e não creio que venha ao caso analisá-la aqui. Mas, quaisquer que sejam nossas convicções religiosas, não podemos fingir que, como sociedade, não tomamos esse tipo de decisão no dia-a-dia, ou que não temos uma opinião sobre elas.
O argumento dos médicos suecos é forte: se não for possível retirar aparelhos ou interromper seu uso, em casos de pacientes sem esperança de cura, as unidades de terapia intensiva poderiam ficar bloqueadas e impossibilitadas de dar atenção a novos casos. Se entendi bem, trata-se de uma escolha entre duas alternativas: continuar tratando um caso sem solução e deixar de tentar salvar outros bebês, ou interromper um tratamento, deixar morrer uma pessoa desenganada, para que outras possam ter uma chance.
Podemos não gostar do resultado da decisão médica. Podemos discutir a decisão de interromper o tratamento do bebê sem esperanças de uma vida normal. Podemos, também, rejeitar totalmente a qualificação de “vida normal” que os médicos estejam usando.
A distinção, proposta por um médico em um artigo de opinião, no jornal Dagens Nyheter, entre vida biológica e vida humana (esta última caracterizada por uma alma, uma consciência) é, para mim, no mínimo perigosa. É aquela velha história: quando é que um bebê adquire consciência? A partir de que momento, em nossa “vida biológica”, pode-se dizer que temos uma alma? A alma da gente mora no cérebro ou no coração? Quando é que ela deixa nosso corpo a caminho da morte?
Mas, não seremos melhores seres humanos, nem melhores “filhos de Deus”, se nos negarmos a discutir esses temas e fizermos de conta que não temos de adotar uma opinião. O que quer que façamos nesses casos implica adotar um lado. Mesmo ficando em cima do muro, adotamos uma posição.
E, nesse sentido, é melhor que seja clara, aberta, franca e passível de discussão, reflexão, modificação.
Os médicos suecos querem um marco, a partir do qual possam tomar decisões sem serem ameaçados com o cárcere. A alternativa é cada vez menos profissionais interessados em trabalhar na terapia intensiva. Porque é nos hospitais, e principalmente nas UTIs, que nossas escolhas morais tornam-se mais evidentes.
Com certeza, a vida seria muito mais fácil sem esses dilemas. Mas, qual a graça dessa jornada, sem a liberdade de escolher?
E, se você quer saber, mesmo entendendo os pais do bebê morto, torço para que soltem logo a médica! Com ela na cadeia, pode ser muito mais vidas a se perderem...
PS: A médica foi solta, por enquanto, mas a investigação continua...
Sandra Paulsen, casada, mãe de dois filhos, é baiana de Itabuna. Fez mestrado em Economia na UnB. Morou em Santiago do Chile nos anos 90. Vive há quase uma década em Estocolmo, onde concluiu doutorado em Economia Ambiental. Escreve no Blog do Noblat sempre às segundas e sextas.
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