Cuidado ou cadeia?
Carta Capital
http://www.cartacapital.com.br/app/materia.jsp?a=2&a2=6&i=2941
Ninguém gosta, ninguém planeja. Ainda assim, todos os anos, cerca de 240 mil brasileiras são internadas nos hospitais do SUS em decorrência de abortos inseguros. Elas chegam com hemorragia, infecções e não raro são destratadas por médicos e enfermeiras. O aborto é crime no Brasil e, se isso não diminui as ocorrências, como mostram pesquisas no mundo todo, enche de medo, vergonha e fragilidade as mulheres que o praticam.
Enquanto o Ministério da Saúde trabalha para que o assunto seja tratado como questão de saúde pública, a Câmara dos Deputados caminha para o lado oposto. Na terça-feira 9 de dezembro, aprovou a criação da CPI do Aborto para “investigar profundamente as denúncias e fazer valer a aplicação da lei, atinja a quem atingir”, conforme o pedido de abertura.
Entre os atingidos estaria gente como a baiana Olívia (nome fictício), chefe de família, negra, de 39 anos e um filho de 5. Doméstica, estudou até o segundo grau. “Fiz o aborto quando tinha 29 anos. Decidi porque não tinha condições de assumir. Foi desesperador, eu tinha terminado um namoro de oito anos antes de saber da gravidez. Tomei inúmeros chás, achava que ia sangrar imediatamente, de raízes, de malmequer, gengibre, boldo, espinho-cheiroso. Passou uma semana, resolvi procurar o ex-namorado e ele providenciou os comprimidos, né? O Cytotec. Tive hemorragia, muita cólica e a dor não passava, minha patroa desconfiou, me colocou contra a parede e confessei. Ela me levou ao hospital e ajudou a me internar. Foi horrível, porque era véspera do Dia das Mães.”
O depoimento está no dossiê inédito A Realidade do Aborto Inseguro na Bahia, organizado pelo Instituto Mulheres pela Atenção Integral à Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos (Imais), em parceira com as principais organizações que atuam pela legalização do aborto no País. O trabalho tem 60 páginas e revela as conseqüências do aborto clandestino em Salvador e Feira de Santana.
Na capital baiana calcula-se que 72 mulheres percam a vida a cada 100 mil nascidos vivos, embora os números oficiais apontem 51 óbitos. Essa taxa de mortalidade materna é 7 vezes maior do que o mínimo aceitável pela Organização Mundial da Saúde (de 10 mortes a cada 100 mil nascidos vivos). O aborto é a principal causa isolada dos óbitos. Além disso, em Salvador, a cada 100 internações por parto, ocorrem 25 em decorrência do aborto. A proporção nacional é de 15.
Além de histórias de quem sobreviveu ao aborto e de relatos de familiares de mulheres que morreram após o procedimento, o dossiê reúne dados do Ministério da Saúde e da Secretaria de Saúde do Estado da Bahia, bem como pesquisas acadêmicas sobre mortalidade materna. Também realizou a visita a quatro maternidades com os índices mais altos de morbidade, e entrevistou profissionais de saúde e especialistas.
O dossiê confirma algo que os movimentos de mulheres e o Ministério da Saúde lutam para tornar mais conhecido: o aborto é praticado por mulheres de todas as classes sociais, níveis de escolaridade, etnias e religiões. A diferença está nas conseqüências. Em Salvador, morrem em decorrência de aborto essencialmente as mulheres jovens, pardas e negras, com formação primária. As menos assistidas.
No Brasil, o risco de morte por aborto é quase 3 vezes maior nas mulheres negras que nas mulheres brancas e o risco de morte por aborto é 4,5 vezes maior nas mulheres com menos de 4 anos de estudo quando comparados com aquelas com mais de 8 anos de estudo.
Além de expor a realidade em números, o trabalho avalia o tratamento que mulheres em abortamento costumam receber. Outro trecho do depoimento de Olívia é igualmente representativo. “Eu estava na ante-sala pra fazer a curetagem. Botavam ali como se fosse um castigo. Fiquei o dia inteiro. Veio o médico, fez o toque, não falou nada. E vinham os estagiários, levantavam a roupa e enfiavam o dedo, sem dizer nada, vinha um, vinha outro, eu me sentia uma coisa... No domingo me transferiram pra sala de curetagem, junto com outra paciente. Eu me sentia totalmente insegura, me sentia no açougue. (...) Fiquei com muita cólica ainda, três dias, a menstruação parecia um rio jorrando e tive muito medo de morrer sozinha.”
Na tentativa de amenizar o problema, em 2005 o Ministério da Saúde baixou uma norma técnica a determinar a humanização do atendimento nesses casos. “Se algo é tratado como crime, fica muito mais difícil enfrentar, embora qualquer pessoa devesse ser tratada humanamente em qualquer situação”, diz Lena Peres, do Departamento de Ações Programáticas e Estratégicas do ministério. “Trabalhamos pela descriminalização do aborto. Até para podermos fiscalizar, pois não há como fiscalizar o que não existe.” A estimativa mais recente coloca entre 700 mil e 1 milhão o número de abortos realizados anualmente no País. À margem da lei e do sistema de saúde.
A missão de lidar com algo condenado à marginalidade ganhou contornos surreais no episódio de Campo Grande (MS). Insuflados por uma reportagem veiculada pela afiliada da Rede Globo, a revelar a existência de uma clínica que praticava abortos na cidade, o promotor Paulo Cezar dos Passos, a delegada Regina Márcia Mota e o juiz Aluízio Pereira dos Santos travaram uma batalha sem precedentes contra quase 10 mil mulheres, todas acusadas de praticar aborto.
Após a veiculação da reportagem, em abril de 2007, o Ministério Público denunciou as 9.896 mulheres, cujos prontuários médicos foram apreendidos na clínica. Em novembro, o juiz determinou o arquivamento de 7.698 fichas nas quais não havia “fortes indícios” de aborto ou o registro era mais antigo do que a prescrição do crime, que é de 8 anos. Após essa triagem, cerca de 1,5 mil mulheres estão sendo indiciadas por crime de aborto. Cento e cinqüenta já foram investigadas e, até o momento, perto de 50 foram convocadas e aceitaram um acordo que propõe a suspensão do processo em troca do cumprimento de condições, sendo o trabalho comunitário em creches e instituições carentes uma das opções.
“Meu objetivo não é perseguir mulheres, mas não posso prevaricar”, argumenta Santos, de 45 anos, 11 como juiz. Ele se declara um católico que vai à igreja em batizados e casamentos. “Não sou tão ativo como disseram.” Santos considera-se injustiçado pelo teor das reportagens veiculadas sobre o caso, “um monte de absurdos”, e discorda das críticas que recebeu, de defensores dos direitos das mulheres, de que enviar acusadas de aborto para trabalhar em creches é uma forma de tortura psicológica. “Na minha visão, é uma oportunidade para a mulher que cometeu aborto ver como outras conseguem criar os filhos, apesar das dificuldades, e refletir. Jamais imporia uma situação humilhante”, sustenta. Ele credita todas as atitudes tomadas à letra fria da lei, e não esconde o cansaço com o tema. “No dia que o aborto deixar de ser crime, ótimo, menos perturbação na minha vida.”
Se às mulheres foi dada a opção de prestar serviços comunitários, a proprietária da clínica, Neide Mota Machado, não escapará do julgamento pelo crime de provocar aborto com o consentimento da gestante. “No caso dela não há benefício por causa da reiteração do crime”, explica o juiz, que determinou a ida da acusada a júri popular. A defesa recorreu, e o processo ainda não terminou.
O episódio ganhou contornos absurdos, como no caso da mulher que apresentou o filho à Justiça para provar que desistira do aborto, e espalhou na cidade um clima de caça às bruxas. Assim como o magistrado, o promotor Passos alega ter apenas cumprido a obrigação, embora reconheça alguns excessos. “Nós, o MP, a polícia, o Judiciário e a imprensa, jamais poderíamos ter exposto essas mulheres à curiosidade mórbida da população”, admite, embora discorde de outra crítica ao processo, a de que os prontuários médicos são invioláveis e não poderiam ser expostos. “O eventual sigilo médico não pode acobertar crimes.”
Passos tem 40 anos, 17 de Ministério Público, diz ter restrições à descriminalização do aborto e considera emocional qualquer discussão a respeito. “O aborto é um problema social que ultrapassa em muito o campo do direito penal. A maioria das mulheres não faz porque quer, mas não posso me afastar do fato de que é um crime, está no Código Penal.” Apesar do rebuliço, é improvável que alguma das indiciadas termine na cadeia (nas prisões brasileiras não há presas por aborto). Mas a repercussão nacional reacendeu ânimos tanto dos que defendem a legalidade como dos que condenam o procedimento.
“O caso de Mato Grosso do Sul é apenas a ponta de um iceberg. Mostra que há uma realidade que não pode ser deixada de lado. Temos de enfrentar o problema, independentemente de sermos contra ou a favor”, diz Peres, do Ministério da Saúde.
A percepção de que é melhor enfrentar uma realidade do que ignorá-la provoca arrepios em quem é fundamentalmente contrário à prática. É o caso do deputado Luiz Bassuma (PT-BA), da Frente Parlamentar Contra o Abortamento. Mesmo diante dos números de mortalidade em razão do aborto na Bahia, ele não considera o problema caso de saúde pública. “Aborto é crime. Isso (a mortalidade) acontece porque o estado é muito populoso e as mulheres pobres não recebem a orientação devida. Antes de corrigir, é preciso prevenir a gravidez”, prega. Sobre a necessidade de dar melhor assistência à mulher que aborta, ergue o tom de voz: “Aí temos uma discordância frontal, por isso nunca vamos entrar num acordo. O Estado nunca poderá permitir que se mate uma vida”.
Bassuma assinou o pedido da CPI do Aborto e pretende investigar o funcionamento de clínicas como a de Campo Grande e a venda de medicamentos abortivos, sendo o Cytotec (nome comercial do misoprostol, usado no tratamento de úlceras) o mais comum. “Sou contra a prisão da mulher que aborta, ela deve ter uma pena leve. Mas quem ganha dinheiro com essa indústria do crime deve ir para a cadeia”, diz. No entender de Bassuma, a mulher de classe social mais alta, para quem “o Estado não falhou”, nunca deveria abortar. Se o faz, comete crime ainda mais grave.
“Claro que o ideal é a prevenção. No entanto, mesmo quando todos tiverem acesso aos métodos, ainda assim vai haver gravidez indesejada. Às vezes o parceiro discorda da prevenção e impõe sua vontade. Nenhuma mulher é louca de querer abortar. Se o faz é por conta de uma situação muito concreta”, defende Dulce Xavier, da ONG Católicas pelo Direito de Decidir. Ela defende que a interrupção da gravidez nunca deve ser tratada como método anticoncepcional, e concorda com Bassuma quanto à fragilidade das políticas públicas de planejamento familiar. Mas só. “Criminalizar a mulher é uma injustiça muito grande, porque todos os outros envolvidos não são sequer mencionados, como o parceiro que a abandona, o patrão que demite ou o Estado que não supre.”
Nos últimos anos, no entender da ativista, a discussão sobre o aborto avançou o suficiente para acirrar forças tanto favoráveis como contrárias. Na Conferência Nacional de Política para as Mulheres, em 2004, a legalização do aborto foi considerada um tema de saúde reprodutiva, uma vitória para os movimentos de mulheres.
Em 2005 criou-se uma Comissão Tripartite (com integrantes do Legislativo, Executivo e sociedade civil) para propor uma nova legislação para o Brasil. O trabalho resultou na proposta de descriminalização e legalização do aborto até doze semanas por qualquer motivo, até vinte semanas em caso de gravidez resultante de estupro e a qualquer momento diante de risco de morte para a mãe ou má-formação congênita do feto. Mesmo sem incorporar a proposta, um projeto de lei (1.135/91) que retirava do Código Penal o artigo que tipifica aborto como crime foi rejeitado em duas comissões, a última vez em maio deste ano, e aguarda votação de um recurso para ser levado ao plenário da Câmara.
A pesquisa nacional recém-divulgada, encomendada pela Secretaria de Direitos Humanos, quis saber a opinião dos brasileiros sobre o fim da prisão para a mulher que aborta. Mais da metade, 54%, disseram ser contra, e quase um terço, 31%, a favor. Uma parcela significativa, 11%, mostrou indecisão, “nem um nem outro”, e 3% disseram não ter opinião a respeito. Um levantamento anterior, do Ibope/ Católicas pelo Direito de Decidir, apontou que 47% dos católicos eram contrários à prisão nesses casos.
Autor do recurso ao PL, o deputado José Genoino (PT-SP) está pessimista. “Sinto que estamos em uma luta de resistência. Nos últimos vinte anos, recrudesceu o conservadorismo e aumentou o fundamentalismo religioso na Câmara”, diz. Ao contrário dos colegas que pediram a CPI do Aborto, Genoino é favorável à descriminalização e se baseia no que dizem análises técnicas sobre mortalidade materna. “A Câmara anda para trás. Todos os estudos mostram que a clandestinidade do aborto é a principal causa de mortalidade materna. Está provado que a melhor maneira de diminuir o aborto é orientar e dar assistência à saúde da mulher.”
Uma pesquisa conduzida pela Organização Mundial da Saúde, em 2007, mostra que nos países onde o aborto é permitido por lei o número de procedimentos é menor. Em países da Europa Ocidental a incidência é de 12 abortos por mil mulheres. Na América Latina, 31 por mil mulheres (clique aqui e leia o quadro).
“O farisaísmo cultural e religioso no Brasil acaba produzindo a humilhação da mulher de baixa renda. É deprimente. Aborto não é assunto de juiz, padre ou delegado. É uma decisão da mulher”, diz Genoino.
O presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara, Pompeo de Mattos, sugere uma saída pragmática para tema tão espinhoso. Inspirado em uma sugestão do juiz de Campo Grande, o deputado apresentou um projeto de lei que reduz a pena máxima para quem aborta de três para dois anos. Isso reclassificaria o crime como de baixo potencial ofensivo e dispensaria o inquérito policial. “Em vez de ser investigada, a mulher apenas assinaria um termo circunstanciado de ocorrência. Não é a liberação do aborto, mas melhora a dignidade da mulher”, acredita Mattos. Ele diz que a idéia foi bem recebida e espera que o PL seja votado no primeiro semestre de 2009. Concomitante ao desenrolar da CPI do Aborto.
“Essa proposta é complicadíssima, pois não toca no ponto principal. Esperamos que o aborto efetivamente deixe de ser crime”, insiste Dulce Xavier. Apesar de considerar a abertura da CPI um retrocesso, “autoritário e fundamentalista”, ela a vê como uma oportunidade de disseminar dados importantes sobre a realidade do aborto, como o dossiê sobre mortalidade materna em Salvador e Feira de Santana.
Beatriz Galli, do Ipas, organização parceira na elaboração do dossiê, diz que a intenção é repetir o levantamento (já realizado no Recife e em Petrolina, com constatações semelhantes) em outros estados e, assim, subsidiar o debate no Legislativo. Ela resume as principais conclusões: “A ilegalidade não previne o aborto, os hospitais não estão preparados para tratar humanamente a mulher que aborta e, principalmente, as mortes em decorrência de aborto são totalmente evitáveis”.
(Paulo Araújo/Ag.O Dia/AE)
Enquanto o Ministério da Saúde trabalha para que o assunto seja tratado como questão de saúde pública, a Câmara dos Deputados caminha para o lado oposto. Na terça-feira 9 de dezembro, aprovou a criação da CPI do Aborto para “investigar profundamente as denúncias e fazer valer a aplicação da lei, atinja a quem atingir”, conforme o pedido de abertura.
Entre os atingidos estaria gente como a baiana Olívia (nome fictício), chefe de família, negra, de 39 anos e um filho de 5. Doméstica, estudou até o segundo grau. “Fiz o aborto quando tinha 29 anos. Decidi porque não tinha condições de assumir. Foi desesperador, eu tinha terminado um namoro de oito anos antes de saber da gravidez. Tomei inúmeros chás, achava que ia sangrar imediatamente, de raízes, de malmequer, gengibre, boldo, espinho-cheiroso. Passou uma semana, resolvi procurar o ex-namorado e ele providenciou os comprimidos, né? O Cytotec. Tive hemorragia, muita cólica e a dor não passava, minha patroa desconfiou, me colocou contra a parede e confessei. Ela me levou ao hospital e ajudou a me internar. Foi horrível, porque era véspera do Dia das Mães.”
O depoimento está no dossiê inédito A Realidade do Aborto Inseguro na Bahia, organizado pelo Instituto Mulheres pela Atenção Integral à Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos (Imais), em parceira com as principais organizações que atuam pela legalização do aborto no País. O trabalho tem 60 páginas e revela as conseqüências do aborto clandestino em Salvador e Feira de Santana.
Na capital baiana calcula-se que 72 mulheres percam a vida a cada 100 mil nascidos vivos, embora os números oficiais apontem 51 óbitos. Essa taxa de mortalidade materna é 7 vezes maior do que o mínimo aceitável pela Organização Mundial da Saúde (de 10 mortes a cada 100 mil nascidos vivos). O aborto é a principal causa isolada dos óbitos. Além disso, em Salvador, a cada 100 internações por parto, ocorrem 25 em decorrência do aborto. A proporção nacional é de 15.
Além de histórias de quem sobreviveu ao aborto e de relatos de familiares de mulheres que morreram após o procedimento, o dossiê reúne dados do Ministério da Saúde e da Secretaria de Saúde do Estado da Bahia, bem como pesquisas acadêmicas sobre mortalidade materna. Também realizou a visita a quatro maternidades com os índices mais altos de morbidade, e entrevistou profissionais de saúde e especialistas.
O dossiê confirma algo que os movimentos de mulheres e o Ministério da Saúde lutam para tornar mais conhecido: o aborto é praticado por mulheres de todas as classes sociais, níveis de escolaridade, etnias e religiões. A diferença está nas conseqüências. Em Salvador, morrem em decorrência de aborto essencialmente as mulheres jovens, pardas e negras, com formação primária. As menos assistidas.
No Brasil, o risco de morte por aborto é quase 3 vezes maior nas mulheres negras que nas mulheres brancas e o risco de morte por aborto é 4,5 vezes maior nas mulheres com menos de 4 anos de estudo quando comparados com aquelas com mais de 8 anos de estudo.
Além de expor a realidade em números, o trabalho avalia o tratamento que mulheres em abortamento costumam receber. Outro trecho do depoimento de Olívia é igualmente representativo. “Eu estava na ante-sala pra fazer a curetagem. Botavam ali como se fosse um castigo. Fiquei o dia inteiro. Veio o médico, fez o toque, não falou nada. E vinham os estagiários, levantavam a roupa e enfiavam o dedo, sem dizer nada, vinha um, vinha outro, eu me sentia uma coisa... No domingo me transferiram pra sala de curetagem, junto com outra paciente. Eu me sentia totalmente insegura, me sentia no açougue. (...) Fiquei com muita cólica ainda, três dias, a menstruação parecia um rio jorrando e tive muito medo de morrer sozinha.”
Na tentativa de amenizar o problema, em 2005 o Ministério da Saúde baixou uma norma técnica a determinar a humanização do atendimento nesses casos. “Se algo é tratado como crime, fica muito mais difícil enfrentar, embora qualquer pessoa devesse ser tratada humanamente em qualquer situação”, diz Lena Peres, do Departamento de Ações Programáticas e Estratégicas do ministério. “Trabalhamos pela descriminalização do aborto. Até para podermos fiscalizar, pois não há como fiscalizar o que não existe.” A estimativa mais recente coloca entre 700 mil e 1 milhão o número de abortos realizados anualmente no País. À margem da lei e do sistema de saúde.
A missão de lidar com algo condenado à marginalidade ganhou contornos surreais no episódio de Campo Grande (MS). Insuflados por uma reportagem veiculada pela afiliada da Rede Globo, a revelar a existência de uma clínica que praticava abortos na cidade, o promotor Paulo Cezar dos Passos, a delegada Regina Márcia Mota e o juiz Aluízio Pereira dos Santos travaram uma batalha sem precedentes contra quase 10 mil mulheres, todas acusadas de praticar aborto.
Após a veiculação da reportagem, em abril de 2007, o Ministério Público denunciou as 9.896 mulheres, cujos prontuários médicos foram apreendidos na clínica. Em novembro, o juiz determinou o arquivamento de 7.698 fichas nas quais não havia “fortes indícios” de aborto ou o registro era mais antigo do que a prescrição do crime, que é de 8 anos. Após essa triagem, cerca de 1,5 mil mulheres estão sendo indiciadas por crime de aborto. Cento e cinqüenta já foram investigadas e, até o momento, perto de 50 foram convocadas e aceitaram um acordo que propõe a suspensão do processo em troca do cumprimento de condições, sendo o trabalho comunitário em creches e instituições carentes uma das opções.
“Meu objetivo não é perseguir mulheres, mas não posso prevaricar”, argumenta Santos, de 45 anos, 11 como juiz. Ele se declara um católico que vai à igreja em batizados e casamentos. “Não sou tão ativo como disseram.” Santos considera-se injustiçado pelo teor das reportagens veiculadas sobre o caso, “um monte de absurdos”, e discorda das críticas que recebeu, de defensores dos direitos das mulheres, de que enviar acusadas de aborto para trabalhar em creches é uma forma de tortura psicológica. “Na minha visão, é uma oportunidade para a mulher que cometeu aborto ver como outras conseguem criar os filhos, apesar das dificuldades, e refletir. Jamais imporia uma situação humilhante”, sustenta. Ele credita todas as atitudes tomadas à letra fria da lei, e não esconde o cansaço com o tema. “No dia que o aborto deixar de ser crime, ótimo, menos perturbação na minha vida.”
Se às mulheres foi dada a opção de prestar serviços comunitários, a proprietária da clínica, Neide Mota Machado, não escapará do julgamento pelo crime de provocar aborto com o consentimento da gestante. “No caso dela não há benefício por causa da reiteração do crime”, explica o juiz, que determinou a ida da acusada a júri popular. A defesa recorreu, e o processo ainda não terminou.
O episódio ganhou contornos absurdos, como no caso da mulher que apresentou o filho à Justiça para provar que desistira do aborto, e espalhou na cidade um clima de caça às bruxas. Assim como o magistrado, o promotor Passos alega ter apenas cumprido a obrigação, embora reconheça alguns excessos. “Nós, o MP, a polícia, o Judiciário e a imprensa, jamais poderíamos ter exposto essas mulheres à curiosidade mórbida da população”, admite, embora discorde de outra crítica ao processo, a de que os prontuários médicos são invioláveis e não poderiam ser expostos. “O eventual sigilo médico não pode acobertar crimes.”
Passos tem 40 anos, 17 de Ministério Público, diz ter restrições à descriminalização do aborto e considera emocional qualquer discussão a respeito. “O aborto é um problema social que ultrapassa em muito o campo do direito penal. A maioria das mulheres não faz porque quer, mas não posso me afastar do fato de que é um crime, está no Código Penal.” Apesar do rebuliço, é improvável que alguma das indiciadas termine na cadeia (nas prisões brasileiras não há presas por aborto). Mas a repercussão nacional reacendeu ânimos tanto dos que defendem a legalidade como dos que condenam o procedimento.
“O caso de Mato Grosso do Sul é apenas a ponta de um iceberg. Mostra que há uma realidade que não pode ser deixada de lado. Temos de enfrentar o problema, independentemente de sermos contra ou a favor”, diz Peres, do Ministério da Saúde.
A percepção de que é melhor enfrentar uma realidade do que ignorá-la provoca arrepios em quem é fundamentalmente contrário à prática. É o caso do deputado Luiz Bassuma (PT-BA), da Frente Parlamentar Contra o Abortamento. Mesmo diante dos números de mortalidade em razão do aborto na Bahia, ele não considera o problema caso de saúde pública. “Aborto é crime. Isso (a mortalidade) acontece porque o estado é muito populoso e as mulheres pobres não recebem a orientação devida. Antes de corrigir, é preciso prevenir a gravidez”, prega. Sobre a necessidade de dar melhor assistência à mulher que aborta, ergue o tom de voz: “Aí temos uma discordância frontal, por isso nunca vamos entrar num acordo. O Estado nunca poderá permitir que se mate uma vida”.
Bassuma assinou o pedido da CPI do Aborto e pretende investigar o funcionamento de clínicas como a de Campo Grande e a venda de medicamentos abortivos, sendo o Cytotec (nome comercial do misoprostol, usado no tratamento de úlceras) o mais comum. “Sou contra a prisão da mulher que aborta, ela deve ter uma pena leve. Mas quem ganha dinheiro com essa indústria do crime deve ir para a cadeia”, diz. No entender de Bassuma, a mulher de classe social mais alta, para quem “o Estado não falhou”, nunca deveria abortar. Se o faz, comete crime ainda mais grave.
“Claro que o ideal é a prevenção. No entanto, mesmo quando todos tiverem acesso aos métodos, ainda assim vai haver gravidez indesejada. Às vezes o parceiro discorda da prevenção e impõe sua vontade. Nenhuma mulher é louca de querer abortar. Se o faz é por conta de uma situação muito concreta”, defende Dulce Xavier, da ONG Católicas pelo Direito de Decidir. Ela defende que a interrupção da gravidez nunca deve ser tratada como método anticoncepcional, e concorda com Bassuma quanto à fragilidade das políticas públicas de planejamento familiar. Mas só. “Criminalizar a mulher é uma injustiça muito grande, porque todos os outros envolvidos não são sequer mencionados, como o parceiro que a abandona, o patrão que demite ou o Estado que não supre.”
Nos últimos anos, no entender da ativista, a discussão sobre o aborto avançou o suficiente para acirrar forças tanto favoráveis como contrárias. Na Conferência Nacional de Política para as Mulheres, em 2004, a legalização do aborto foi considerada um tema de saúde reprodutiva, uma vitória para os movimentos de mulheres.
Em 2005 criou-se uma Comissão Tripartite (com integrantes do Legislativo, Executivo e sociedade civil) para propor uma nova legislação para o Brasil. O trabalho resultou na proposta de descriminalização e legalização do aborto até doze semanas por qualquer motivo, até vinte semanas em caso de gravidez resultante de estupro e a qualquer momento diante de risco de morte para a mãe ou má-formação congênita do feto. Mesmo sem incorporar a proposta, um projeto de lei (1.135/91) que retirava do Código Penal o artigo que tipifica aborto como crime foi rejeitado em duas comissões, a última vez em maio deste ano, e aguarda votação de um recurso para ser levado ao plenário da Câmara.
A pesquisa nacional recém-divulgada, encomendada pela Secretaria de Direitos Humanos, quis saber a opinião dos brasileiros sobre o fim da prisão para a mulher que aborta. Mais da metade, 54%, disseram ser contra, e quase um terço, 31%, a favor. Uma parcela significativa, 11%, mostrou indecisão, “nem um nem outro”, e 3% disseram não ter opinião a respeito. Um levantamento anterior, do Ibope/ Católicas pelo Direito de Decidir, apontou que 47% dos católicos eram contrários à prisão nesses casos.
Autor do recurso ao PL, o deputado José Genoino (PT-SP) está pessimista. “Sinto que estamos em uma luta de resistência. Nos últimos vinte anos, recrudesceu o conservadorismo e aumentou o fundamentalismo religioso na Câmara”, diz. Ao contrário dos colegas que pediram a CPI do Aborto, Genoino é favorável à descriminalização e se baseia no que dizem análises técnicas sobre mortalidade materna. “A Câmara anda para trás. Todos os estudos mostram que a clandestinidade do aborto é a principal causa de mortalidade materna. Está provado que a melhor maneira de diminuir o aborto é orientar e dar assistência à saúde da mulher.”
Uma pesquisa conduzida pela Organização Mundial da Saúde, em 2007, mostra que nos países onde o aborto é permitido por lei o número de procedimentos é menor. Em países da Europa Ocidental a incidência é de 12 abortos por mil mulheres. Na América Latina, 31 por mil mulheres (clique aqui e leia o quadro).
“O farisaísmo cultural e religioso no Brasil acaba produzindo a humilhação da mulher de baixa renda. É deprimente. Aborto não é assunto de juiz, padre ou delegado. É uma decisão da mulher”, diz Genoino.
O presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara, Pompeo de Mattos, sugere uma saída pragmática para tema tão espinhoso. Inspirado em uma sugestão do juiz de Campo Grande, o deputado apresentou um projeto de lei que reduz a pena máxima para quem aborta de três para dois anos. Isso reclassificaria o crime como de baixo potencial ofensivo e dispensaria o inquérito policial. “Em vez de ser investigada, a mulher apenas assinaria um termo circunstanciado de ocorrência. Não é a liberação do aborto, mas melhora a dignidade da mulher”, acredita Mattos. Ele diz que a idéia foi bem recebida e espera que o PL seja votado no primeiro semestre de 2009. Concomitante ao desenrolar da CPI do Aborto.
“Essa proposta é complicadíssima, pois não toca no ponto principal. Esperamos que o aborto efetivamente deixe de ser crime”, insiste Dulce Xavier. Apesar de considerar a abertura da CPI um retrocesso, “autoritário e fundamentalista”, ela a vê como uma oportunidade de disseminar dados importantes sobre a realidade do aborto, como o dossiê sobre mortalidade materna em Salvador e Feira de Santana.
Beatriz Galli, do Ipas, organização parceira na elaboração do dossiê, diz que a intenção é repetir o levantamento (já realizado no Recife e em Petrolina, com constatações semelhantes) em outros estados e, assim, subsidiar o debate no Legislativo. Ela resume as principais conclusões: “A ilegalidade não previne o aborto, os hospitais não estão preparados para tratar humanamente a mulher que aborta e, principalmente, as mortes em decorrência de aborto são totalmente evitáveis”.
(Paulo Araújo/Ag.O Dia/AE)
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