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sexta-feira, 7 de agosto de 2009

O modelo público de saúde

André Inohara - Da Redação do Projeto Brasil

Neste Dia Nacional da Saúde, dezenas de milhões de brasileiros, a grande maioria de baixa renda, podem contar com serviços públicos de saúde. A inclusão dessa numerosa população – que esteve desamparada antes da criação do SUS (Sistema Único de Saúde) em 1990 – é o principal avanço do sistema, de acordo com o sanitarista Eugênio Vilaça Mendes. O consultor público não hesita em colocar o modelo de saúde pública brasileiro como um dos melhores do mundo em qualidade de serviço, mas ao mesmo tempo reconhece a necessidade de mudanças estruturais para ampliar o alcance do atendimento e eficiência econômico-financeira.

O SUS é referência mundial no tratamento do vírus HIV e possui um dos melhores programas de vacinação contra a gripe influenza. Doenças como varíola, sarampo e poliomielite foram erradicadas, mas o sistema ainda não consegue combater com eficiência doenças infecciosas, ao contrário dos países desenvolvidos. Para Mendes, uma solução é integrar melhor o sistema de atendimento do SUS, com cuidados ambulatoriais, hospitalares e integrais (prevenção, cura e reabilitação).

Além disso, o modelo de ressarcimento aos prestadores de serviços (hospitais) nem sempre beneficiam o paciente, pois estimula o número de procedimentos médicos ao invés da prevenção de doenças. Para Mendes, esse modelo está em crise, e defende a implantação do sistema de orçamento fixo, que privilegia a prevenção ao tratamento.

Leia a entrevista na íntegra:

Qual o cenário da saúde pública no Brasil?

O SUS tem grandes avanços e desafios. Entre os avanços o maior deles foi o de se transformar num grande sistema público que incorporou políticas de inclusão de milhões de brasileiros, que antes da Constituição (1988) eram tratados como indigentes da saúde. Essa política de inclusão social e sanitária se fez de forma extraordinária, e eu diria que a saúde pública está dividida em antes e depois do SUS. É uma enorme diferença.

Alem disso, acho que o sistema apresenta grandes e indiscutíveis resultados. A contribuição para a melhoria do indicador de saúde é reconhecida, assim como a dos níveis de mortalidade infantil, que vem caindo sustentavelmente ao longo dos anos. O programa de imunização que temos é um dos melhores do mundo, comparável a alguns poucos sistemas públicos ou privados. A vacinação de influenza é melhor que a de paises desenvolvidos, e erradicamos a varíola, a poliomielite e o sarampo.

Outro programa é o de controle do vírus HIV/Aids, o melhor do mundo no momento e referência para vários países. E em terceiro, o programa de transplantes. Em volume de procedimentos, o SUS é o que mais faz transplantes no mundo, perdendo apenas para o norte-americano, que é basicamente um sistema privado. Isso em quantidade, não qualidade.

E os desafios?

O primeiro, mais importante, é a situação de saúde da população brasileira, que ainda sofre com uma tripla carga de doença. Hoje se tem uma situação em que 15% da carga de atendimento é devido a males infecciosos, 9% por condições maternas perinatais (períodos imediatamente anterior e posterior ao parto), 10% por causas externas ligadas ao fenômeno da violência urbana, e 66% por doenças crônicas – que não se curam – como diabetes, hipertensão e câncer. Esse é o problema da tripla carga: não se acabou com as doenças infecciosas, há as causas externas e a grande maioria (do atendimento) é de doenças crônicas.

Os paises ricos acabaram com as doenças infecciosas e fizeram uma transição epidemiológica completa, para as crônicas. Nós ainda enfrentamos as doenças infecciosas.

A forma como estruturamos o modelo de atenção do SUS não dá conta da situação de tripla carga. É preciso mudar, implantando sistemas integrados de atendimento. O modelo de atenção do SUS é voltado para a condição aguda (doenças crônicas), e o sistema de atendimento é muito fragmentado. Ou seja, há pouca articulação entre postos de saúde, ambulatórios especializados e hospitais.

Um paciente de transplante precisa de atenção continua, boa atenção ambulatorial, hospitalar e integral (prevenção, cura e reabilitação). O sistema que temos não faz isso. Uma doença crônica que saiu do controle se manifesta, por exemplo, em crise hipertensiva ou descompensação diabética.
No modelo atual de atendimento, ele volta para casa e a doença continua a se desenvolver. Em 20 anos, o portador de diabetes acaba sendo atingido por uma retinopatia - fica cego - ou pode ter as extremidades do corpo amputadas porque não teve atenção primaria, responsável pelo controle continuo da doença. Nesse caso, a condição se agrava ao longo do tempo.

E qual o outro desafio?

O outro problema é a forma de financiamento. A questão não se limita apenas à necessidade de mais dinheiro para o SUS, mas também o quanto se faz de saúde com cada real. Ou seja, não basta aumentar o volume de dinheiro, é preciso modificar radicalmente a forma com ele vem sendo gasto.

O pouco dinheiro que vai para o SUS é mal gasto, porque financia o modelo de atenção deficiente a que já me referi – voltado para eventos agudos. E segundo, porque é fundamentalmente movido pelo sistema perverso de incentivo ao pagamento de procedimentos. Ele remunera mais o serviço de maior densidade tecnológica, e menos o de densidade inferior.

Os EUA são o exemplo mais claro do fracasso dessa visão de financiamento baseado em volume de dinheiro. O país gasta 6,5 mil dólares por cabeça e tem o maior sistema de saúde em crise. Quando se paga mais por procedimentos, se diz ao prestador para que faça mais serviços caros ao invés de prevenção, que reduz a remuneração. É isso que está implícito na política de remuneração por densidade de procedimentos. Essa é a raiz da crise da saúde norte-americana.

O SUS paga por procedimento. Por isso, aumentar os recursos do sistema sem mudar o procedimento e o modelo não vai agregar valor. É preciso aumentar os recursos para o SUS, mas eles devem vir junto com pagamentos por cabeça ou orçamento global. Nesse modelo, o prestador recebe um orçamento fixo para atender determinado número de pessoas, e aí não teria interesse em fazer muitos procedimentos de maior densidade tecnológica, somente aqueles necessários. Ele terá muito mais interesse em promover e prevenção, pois quanto mais fizer isso, mais vai ganhar. Tem que inverter o sinal.

Qual o melhor modelo de saúde pública para o Brasil?

A realidade é que vai nos impor isso. Há orçamentos globais em hospitais universitários, mas são iniciativas tímidas. A sociedade que utiliza o SUS não se organiza, pois é muito custoso para os pobres se organizarem.

Na prática, o SUS não é universal, mas segmentado. Cerca de 20% das pessoas melhor posicionadas socialmente se retiram do sistema público e só voltam quando os tratamentos privados ficam mais caros.

Não é assim no mundo inteiro. No Canadá e Reino Unido, o atendimento que o setor público oferece, o privado não pode fazer. São sistemas efetivamente suplementares e universais. Por exemplo, o sistema público do Canadá não oferece medicamentos ambulatoriais nem odontologia. Esses serviços estão no sistema privado.

O sistema segmentado está em crise. Nos EUA, que oferecem atendimento público apenas para pobres e idosos, o gasto com saúde é de 6,5 mil dólares per capita e não tem níveis melhores de saúde que o Canadá, que desembolsa 2,5 mil dólares per capita. Para se ter sistema segmentado, é preciso manter uma grande iniqüidade, que no Brasil é muito maior que nos EUA. Por isso, vai depender se o Brasil caminha para uma sociedade social-democrata, ou se fortalece como uma sociedade liberal. Gostaria que fosse a opção social-democrata.

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