Luiz Flávio Gomes - no Última Instância
Logo que entrou em vigor a Lei Seca (Lei 11.705/2008), que alterou a redação do artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro (que cuida do crime de embriaguez ao volante), escrevemos que o legislador tinha cometido erro crasso ao fazer o que não devia ter feito (ele passou a indevidamente exigir 0,6 decigramas de álcool por litro de sangue para a caracterização do crime) e não fazer o que devia ter feito (só exigir a embriaguez do condutor do veículo e a direção anormal: direção em zig-zag, por exemplo). Fez o que não devia e não fez o que devia (ter feito). Produziu um péssimo texto legislativo. Não mediu as consequências nefastas que geraria, sobretudo a impunidade de incontáveis motoristas.
Levantamento feito na Justiça estadual de todo país entre junho de 2008 e maio de 2009 constatou que 80% dos motoristas que se recusaram a se submeter ao teste do bafômetro ou a fazer o exame de sangue para verificar a quantidade de álcool por litro de sangue acabaram sendo absolvidos (Folha de S.Paulo de 17/9/09, p. C7). A lei que veio para endurecer, em virtude da sua patente deficiência, está gerando impunidade. Por quê?
Porque só existem duas formas de se comprovar a quantidade de álcool no sangue: exame de sangue ou bafômetro. Aliás, o bafômetro (etilômetro), a rigor, não mede a quantidade de álcool no sangue, sim, ele mede a quantidade de álcool por litro de ar. Por força do Decreto 6.488, que regulamentou o artigo 306 do CTB, estabeleceu-se a equivalência. Seis decigramas por litro de sangue (exame de sangue) corresponde a três décimos de miligrama por litro de ar (exame pelo etilômetro ou bafômetro).
Ocorre que ambos exigem uma postura ativa do suspeito e ninguém é obrigado a fazer prova contra si mesmo (por força do princípio constitucional da não auto-incriminação), como vem sendo reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal (HC 96.219-MG, RTJ 141/512, HC 68.742-DF).
Errou o legislador. E o grave problema é que os erros legislativos nunca ficam isolados. É um erro atrás do outro. O Tribunal de Justiça de Santa Catarina (2ª Câmara, Ap. Criminal n. 3, Seara-SC), tentando corrigir o erro do legislador, passou a dispensar a prova da quantificação do álcool por litro de sangue. Ou seja: dispensou a comprovação de um requisito típico (algo inusitado em toda a história judiciária brasileira). Um erro crasso gerando outro erro crasso!
A Advocacia Geral da União (Parecer de 20 de julho de 2009), no desespero de corrigir o texto legal, emitiu opinião no sentido de que a recusa ao exame do bafômetro gera o crime de desobediência (Código Penal, artigo 330). Outro grave erro! Se a recusa ao bafômetro é um direito constitucional e internacional (por força da Convenção Americana de Direitos Humanos, art. 8º, que encontra amparo no artigo 5º, parágrafo 2º, da Constituição Federal), quem exerce um direito pratica ato lícito e quem pratica ato lícito não comete crime. Não há que se falar no delito de desobediência. Fez bem a Polícia Rodoviária Federal em ignorar esse parecer, na sua instrução normativa 03/2009 (O Estado de S. Paulo de 16/9/09, p. C5).
Com o intuito (ainda) de corrigir o texto legal (ou seja: a redação equivocada do artigo 306), a Câmara dos Deputados está, neste momento, discutindo novo texto legal, para endurecer a lei seca. Pela proposta, a recusa ao bafômetro passaria a ser indício suficiente para a prisão do suspeito. Outro grave erro! Quem exerce um direito não comete crime. E quem não comete crime não pode ser preso. Sempre que existe uma norma que autoriza uma determinada conduta, o que está autorizado por uma norma (no caso, internacional – artigo 8º da CADH) não pode estar proibido por outra (nos termos da teoria da tipicidade conglobante de Zaffaroni e nos termos ainda da nossa teoria constitucionalista do delito, que sustenta a denominada tipicidade material).
Impressionante como um erro legislativo acaba gerando tantas polêmicas e tantos outros equívocos. Mas corrigir tudo é muito simples: é só aprovar nova redação para o artigo 306 do CTB, exigindo tão-somente embriaguez ao volante e condução anormal (em zig-zag, por exemplo). É só isso e nada mais. Não há que se falar em taxa de alcoolemia (que é absurda porque cada pessoa reage de uma forma frente ao álcool). Cada um tem mais ou menos resistência ao álcool. Logo, o que importa é a embriaguez + direção anormal (que coloca em risco concreto a segurança viária). Faz-se urgente a atuação do legislador, mas no caminho correto.
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