Levantamento, ainda inédito, é da Escola Nacional de Saúde Pública.
Empresas dizem que resultado não reflete melhorias a partir dos anos 80.
Entre recortes de jornal presos na parede estão as fotos de colegas mortos. Doracy Maggion, de 72 anos de idade, diz já ter perdido a conta. A maioria, assim como ele, foi vítima do “pulmão de pedra”. A asbestose (nome técnico da doença) é causada pela exposição prolongada ao amianto – mineral utilizado na fabricação de telhas e caixas d’água. Progressiva, ela provoca a perda da capacidade respiratória. Uma pesquisa inédita da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp) avaliou um grupo de ex-trabalhadores de indústrias do setor e descobriu que 32% sofrem de asbestose.
As empresas do setor dizem que o estudo não reflete a melhoria nas condições de trabalho adotadas a partir da década de 80.
Foram analisadas 78 pessoas, 52 expostas diretamente à fibra mineral, com período médio de 11 anos de trabalho. Além da asbestose, 79,8% dos examinados apresentaram alterações de função pulmonar e broncodilatação. “A inalação das fibras provoca uma reação inflamatória”, explica Isabele Campos Costa, farmacêutica e autora do estudo. “A inflamação é contínua, vai piorando com o tempo e depois de mais ou menos dez anos surge a asbestose.”
A pesquisa aponta também os efeitos tóxicos da substância no material genético das células. Em contato com os pulmões, a fibra gera a formação de espécies reativas de oxigênio que causam danos ao DNA. Um dos resultados é o câncer. Infográfico do G1, abaixo, explica em detalhes como o amianto age no organismo.
Esse é o temor de Maggion. Foram 19 anos trabalhando em contato direto com a fibra na antiga fábrica da Eternit em Osasco, na Região Metropolitana de São Paulo, até se aposentar em 1986. “Dentro da fábrica, o pó do amianto estava em todos os lugares”, diz o aposentado. “Do lado de fora, o chão era revestido com cascalho e retalhos da fibra, as pessoas pisavam ali e levavam a poeira para suas casas.”
Em suas mãos um laudo médico traz o resultado: asbestose com origem ocupacional. Os exames realizados no Instituto do Coração (Incor), em São Paulo, e atestados pela Fundacentro, órgão do Ministério do Trabalho, alertam: “risco de apresentar neoplasia de pleura e pulmão”. Neoplasia é o termo médico para câncer.
Eliezer João de Souza, de 68 anos, diretor da Abrea, trabalhou com Doracy na Eternit e, assim como ele também não quer o acordo. Os dois começaram numa época em que os trabalhadores não utilizavam nenhuma forma de proteção e o amianto explorado comercialmente era do tipo anfibólio, mais agressivo para a saúde. Hoje, o único tipo permitido no país é o crisotila, com menor potencial nocivo. Mesmo assim, quatro estados (RJ, SP, RS e PE) proíbem o uso e a comercialização do amianto, seja de que tipo for.
Aposentado desde 1981, Eliezer foi operado para a retirada de nódulos pulmonares. “Trabalhei na pior seção de todas, a de corte e acabamento das peças”, diz.
O uso controlado do amianto foi estabelecido pelas empresas do setor em acordo com o governo federal na década de 80. A precaução estabelece normas como o a instalação de exaustores e ventiladores nas fábricas para retirar a poeira gerada pelo corte da fibra, o uso de equipamentos de segurança e o isolamento do material do contato humano durante a maior parte do processo.
Novos controles
Para Milton do Nascimento, consultor na área de Saúde do Instituto Brasileiro do Crisotila (IBC) – entidade que tem as empresas e sindicatos de trabalhadores como associados – e gerente de saúde ocupacional do Grupo Eternit, o estudo da Ensp não leva em conta as medidas de proteção incorporadas pelo setor. “O risco existe, mas pode ser controlado”, afirma. “Desde o final dos anos 80, com o uso controlado, os trabalhadores passaram a ter direito de fiscalizar o ambiente de trabalho.”
O consultor do IBC critica a atuação da Abrea e condena a “utilização dos trabalhadores como massa de manobra.” Ele explica que a concentração máxima da substância dentro das empresas permitida pela legislação é de duas fibras de amianto por cm³ de ar, mas os acordos coletivos com os trabalhadores estabelece até 0,1 fibra por cm³. “Não podemos querer que o amianto pague hoje por uma questão que é reflexo de uma exposição do passado. Essa situação não temos mais como consertar”, afirma.
Outro lado
Procurada pela reportagem, a Eternit afirmou em nota enviada ao G1 que “não nega o passivo anterior ao uso controlado do amianto, pelo contrário foi proativa ao buscar um instrumento particular de transação (um acordo extrajudicial) com os trabalhadores, a fim de monitorar a saúde e compensar eventuais problemas”. Também afirma que todas as empresas do grupo adotam as medidas de proteção e que não há registro de doentes entre os trabalhadores admitidos “após o início da década de 80.”
Em relação à situação de seus ex-funcionários em Osasco, a empresa afirma que mantém um escritório no local para fazer o “atendimento social” e garante acompanhamento médico e compensação financeira, caso apresentem alguma doença relacionada ao amianto.
Sobre Maggion, a Eternit afirma que “ingressou com ação contra a empresa em 1996, sob a alegação de que era portador de asbestose. Em sentença judicial de 26 de junho de 2002 foi julgada improcedente. O senhor Doracy interpôs diversos recursos em instâncias judiciais superiores que lhe negaram provimento (mantiveram a sentença de primeira instância). Atualmente o processo aguarda decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) de recurso especial também por ele impetrado.
Ceticismo
Segundo Isabele, da Ensp, as entrevistas realizadas com os ex-trabalhadores mostraram que as medidas de uso seguro da fibra não funcionam tão bem na prática. Ela afirma que eles relatam situações de precariedade e falta de material adequado de proteção “Uma coisa é o que as empresas dizem, outra é o que se vê na prática”, afirma ela. “Como se trata de uma substância que pode provocar câncer, não existe um nível seguro de exposição.”
Souza, da Abrea, também mostra ceticismo. “A empresa diz que desde os anos 80 ninguém mais teve asbestose em função do uso controlado que eles introduziram nas fábricas , mas eu não acredito.”
Maggion diz lamentar não ter recebido antes informações sobre os graves riscos do amianto. “Se soubesse o que era o amianto teria procurado emprego em qualquer outro lugar. Hoje, tenho o pulmão de pedra e nada mais pode ser feito.”
Alternativas e alertas
Dependendo da aplicação, o amianto pode ser substituído por fibra de vidro, PVC, lã de vidro, alumínio, fibras de aramida ou celulose e polietileno. Os riscos do amianto já foram objeto de dezenas de investigações científicas, publicadas em revistas como a “Science” desde os anos 60. O primeiro caso descrito na literatura médica brasileira foi detalhado em 1975 em artigo da Revista de Saúde Pública ( “Asbestose no Brasil: um risco ignorado” ) da Faculdade de Saúde Pública da USP. Entre alertas de saúde pública, constam diretrizes da Agência para Substâncias Tóxicas (ATSDR ) e da Agência de Proteção Ambiental (EPA), ambas dos Estados Unidos, e da Agência Internacional para Pesquisa sobre Câncer (IARC).
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