Sua morte lenta e gradual tem sido promovida através da violência física e também simbólica, quando se negam seus direitos sociais
Iara Tatiana Bonin no Brasil de Fato
Vivemos hoje em uma “sociedade do espetáculo”, imersos numa rede de imagens e de significados visuais na qual “uma imagem vale mais que mil palavras”. Mas as imagens que a mídia despeja em nosso cotidiano são cada vez mais elaboradas de modo a construir uma realidade “passada a limpo”, purificada pela tecnologia e esvaziada de tudo o que possa causar desconforto e perturbação. Assim, nos acostumamos a ver paisagens exuberantes, cidades sem pobreza, corpos sem marcas da humana condição do envelhecimento e da mudança. Tamanho é o efeito dessa cultura, educando o nosso olhar, que já não suportamos assistir, por exemplo, a telejornais que trazem algumas doses da insegurança e da violência que afeta os que estão “do lado de lá” dos horizontes de nossa atenção. Escapamos, sempre que possível, dos perturbadores problemas dos outros – e muitas vezes olhamos para o sofrimento estampado nas notícias de jornal como algo que não nos diz respeito.
Assumindo momentaneamente a tendência de narrar a vida como uma cena de cinema, proponho também uma imagem, para com ela estabelecer um breve diálogo: na cena imaginada, se pode ver um lugar familiar, um recanto de nossa infância, com sons, cheiros, cores, formas que imediatamente reconhecemos. Neste local nos sentimos acolhidos e seguros porque nele estamos em casa! Saudade, vontade de voltar e desfrutar da paz que ele suscita são sentimentos que talvez nos tomem de assalto, de forma devastadora, se estivermos vivendo agora em condições precárias e insustentáveis. Mas, e se esse lugar, que é nosso refúgio, estivesse indevidamente ocupado ou incorporado ao território de um país vizinho? Tornaríamos-nos estrangeiros e intrusos na terra em que nascemos? E se decidíssemos voltar, seríamos, então, invasores?
Pode até nos causar estranheza, mas é de uma perspectiva semelhante que os Guarani-Kaiowá vislumbram hoje as terras tradicionalmente ocupadas no Estado do Mato Grosso do Sul, mas que, por razões históricas que só se explicam por relações de poder, foram loteadas, vendidas e indevidamente tituladas. Nessas terras, refúgios dos povos indígenas, lugares de bem viver, locais de morada de seus antepassados e dos espíritos que os protegem, os guarani são considerados intrusos, invasores, estrangeiros. Sua presença, espalhada em mais de 20 acampamentos à beira das rodovias e estradas, serve para lembrar que alguém se apoderou das terras que são deles e “legalmente” estabeleceu sobre elas cercas e divisas, mas tal expropriação não apaga a memória, nem elimina o direito dos guarani de lutarem para reavê-las.
São fragmentos das terras tradicionais que os Guarani-Kaiowá reivindicam, numa luta que não começou agora, e sim há décadas,
quando eles iniciaram a longa e penosa caminhada em busca de um direito que lhes foi negado através de políticas oficiais de todos os governos, incluindo o atual. Neste tempo de incertezas maquiadas com recursos midiáticos, o governo Lula trata dos graves problemas fundiários como questões menores e propõe medidas paliativas e assistenciais para amenizar as marcas do sofrimento indígena. Tratam-se, assim, os sintomas para não ter que enfrentar as causas dessa injustiça social.
Se seguirmos com a construção daquela imagem que remete a lugar “bom para viver”, no qual nos sentimos acolhidos e seguros, vamos entender as razões da retomada realizada há dois anos pelas famílias Guarani-Kaiowá, da aldeia Laranjeira Ñanderu. Podemos sentir, com eles, o desejo de assegurar a vida e o futuro das mais de 60 crianças que compõem essa comunidade. No entanto, no dia 9 de setembro essas famílias foram surpreendidas com uma liminar de reintegração de posse, e com a ordem de imediato despejo. Sem alternativas, eles voltaram a viver às margens da BR-163, nas proximidades do município de Rio Brilhante. As famílias transportaram parte de seus pertences em bicicletas, num percurso de quatro quilômetros, e não puderam regressar para retirar o que ficou para trás, pois o fazendeiro fechou os acessos e deu ordens para impedir o trânsito dos índios.
E foi então que, no dia 14 de setembro, os guarani assistiram, aterrorizados, à queima das casas que haviam construído, dos bens e dos animais que foram arbitrariamente impossibilitados de resgatar. Como forma de ameaça, empregados de fazendas da região circulam, com seus carros em alta velocidade, próximo às barracas onde estão acampadas as famílias indígenas, gerando apreensão e medo. Não bastasse tudo isso, eles se vêem hoje impedidos de buscar água em um rio situado fora dos limites da fazenda. Infelizmente, acontecimentos como estes são rotineiros no estado de Mato Grosso do Sul e não há nenhuma reação decisiva por parte do Ministério da Justiça, no sentido de coibir as violências e agressões praticadas. Na madrugada do dia 18 de setembro, a comunidade Guarani-Kaiowá do Apika’y também viveu momentos de horror, quando cerca de 10 homens armados, a mando de fazendeiros, incendiaram suas casas enquanto eles dormiam. Um guarani foi ferido na perna, atingido por uma bala e várias mulheres que saíam em desespero foram agredidas com socos e pontapés.
Não é possível admitir, em um estado democrático que deveria agir em defesa da vida, a prática de violências como estas. Como os
poderes públicos podem permitir que os Guarani-Kaiowá sejam colocados novamente à beira de estradas, e contra eles seja estabelecida uma política de terror? Não é demais lembrar que a Constituição Federal define como responsabilidade do Estado a vida e a proteção dos povos indígenas e de todos os seus bens (Art. 231).
Nos casos aqui relatados, os estudos técnicos para verificar a tradicionalidade das terras tiveram início em 2008, mas foram
suspensos por uma liminar do desembargador Luiz Stefanini, do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, no dia 04 de agosto de 2009. A decisão liminar, que beneficiou os setores econômicos e políticos regionais que buscam inviabilizar os estudos técnicos de reconhecimento e comprovação das terras guarani em Mato Grosso do Sul, foi mais tarde reformada pela 1ª Turma do TRF-3, que determinou a retomada dos trabalhos dos grupos técnicos.
Lamentavelmente, alguns meios de comunicação pouco comprometidos com idoneidade e imparcialidade ainda fazem ressoar o ultrapassado jargão de que “é muita terra para pouco índio”, proferido por quem tem interesses econômicos sobre as áreas destes povos. Mas, especificamente em Mato Grosso do Sul, onde vive a segunda maior população indígena do Brasil, “muita terra” é uma expressão que se aplica bem aos fazendeiros e latifundiários que detêm a posse das melhores áreas. Os povos indígenas, e em especial os Guarani-Kaiowá, estão confinados em pequenas porções de terra, a exemplo da reserva de Dourados, onde vivem 13 mil pessoas em 3,6 mil hectares. Nestas circunstâncias, pode-se falar em uma política deliberada de extermínio, haja vista que a população indígena vive ali submetida ao descaso, à omissão, à violência e a condições desumanas que transformam seu cotidiano em um campo de acirradas disputas e em cenário de violências contínuas.
Para os guarani, quando uma situação se mostra insustentável, é necessário seguir em frente, num contínuo caminhar que vincula
materialidade e espiritualidade. E uma das formas de ir adiante parece ser o suicídio, praticado por 147 indígenas deste povo entre os anos de 2003 e 2008. O suicídio marca a impossibilidade de vislumbrar, nesta vida, as condições adequadas para viver com dignidade, e, diante disso, alguns optam por seguir para um mundo onde não haveria sofrimento. Outra atitude que demonstra o jeito de ser guarani é a mobilidade. Assim, eles passam a viver em acampamentos, que deveriam ser abrigos transitórios até a chegada no lugar do efetivo bem viver, ou seja, nas terras tradicionais que eles almejam reconquistar. Entretanto, o que deveria ser provisório prolonga-se indefinidamente, engolido pela burocracia dos órgãos governamentais responsáveis por identificar e demarcar as terras ou por magistrados que se outorgam, de modo parcial, o direito de decidir sobre a vida e o destino de pessoas e comunidades. Em Mato Grosso do Sul centenas de famílias Guarani-Kaiowá vivem em acampamentos, sem qualquer tipo de proteção, sem os recursos básicos para a sobrevivência e, ainda pior, sem o apoio do governo e da sociedade, quando tomam a iniciativa de ocupar uma parte de suas terras tradicionais.
A ineficácia do governo é justificada, muitas vezes, pela falta de recursos financeiros para a demarcação das terras indígenas. Isso é mais uma falácia e revela a falta de vontade política em resolver a situação de maneira ágil, uma vez que a destinação de recursos orçamentários é proporcional aos interesses envolvidos em cada rubrica. No governo do presidente Lula, por exemplo, sobram recursos para financiar obras do PAC, ou para socorrer bancos e empresas privadas em momentos de crise (decorrente, é bom que se registre, de uma péssima gestão, acompanhada de muita corrupção), enquanto os recursos para a demarcação das terras indígenas são pífios, bem como as destinações orçamentárias para as políticas de saúde, educação, seguridade social da maioria da população brasileira que vive em precárias condições sociais.
Nesse mundo de imagens que estamos habituados a vislumbrar através das lentes de câmeras sofisticadas e de recursos tecnológicos sempre mais sutis, não há lugar para a cruel realidade vivida pelos Guarani-Kaiowá. Numa sociedade individualizada, conforme afirma Bauman, ordenamos as coisas de nossa vida como faz um jardineiro que seleciona as plantas para o seu jardim e elimina aquelas que considera “ervas daninhas”. No estado de Mato Grosso do Sul os Guarani-Kaiowá são vistos como “ervas daninhas” – é inegável que eles estavam lá antes que se imaginassem os atuais “jardins do latifúndio” e que, para que os planos dos “jardineiros do progresso” se concretizassem, eles foram banidos ou expulsos das terras e hoje continuam a ser continuamente eliminados – física e socialmente.
A morte lenta e gradual dos Guarani-Kaiowá tem sido promovida através da violência física e também da violência simbólica, quando se negam os seus direitos sociais, relegando-os à condição de marginalidade. Eles são posicionados à margem do sistema de dominação e, desse modo, se tornam “invisíveis”, em seus barracos improvisados à beira de rodovias, como também são invisíveis outros segmentos considerados “residuais”.
Olhamos para eles, mas não os vemos porque desagradam ao olhar acostumado à pureza da imagem midiática. No contexto das
políticas sociais eles desaparecem do campo de visão, fundidos à paisagem, único local que tem agora o direito de ocupar. Tão próximos de nós e, ao mesmo tempo, tão distantes, os Guarani-Kaiowá e seu interminável martírio não fazem parte do rol de urgências do atual governo, pois este preferiu vincular-se a setores que tradicionalmente promovem a exclusão e a violência contra os povos indígenas no Brasil.
Enquanto imperar a impunidade, os guarani e tantos outros povos serão aterrorizados e desrespeitados neste país. Enquanto isso, o presidente da República gasta recursos públicos em viagens destinadas a inaugurar obras que nem mesmo foram iniciadas, como ocorreu em Sapucaia do Sul (RS). O ministro da Justiça, Tarso Genro, que deveria estar tomando as providências cabíveis para coibir as violências praticadas contra as comunidades indígenas, também ocupava o palanque. Não se sabe qual a razão para a sua presença, já que se tratava de uma solenidade de lançamento de obras numa rodovia. Para este evento, a mídia televisiva e escrita dedicou espaços generosos em seus jornais e noticiários. Já para os povos indígenas...
Iara Tatiana Bonin é doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs)
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