Proibida de cantar na Argentina, Mercedes Sosa integrou sua terra ao resto do mundo através da música
"Abre, ou faz de conta que abre a boca. A voz sai sem nenhum esforço, e todo o espaço é ocupado por uma canção. Todo o ambiente se torna silêncio e a canção paira no ar, sobre as cabeças. É possível vê-la.
A música ocupa tudo, não há espaço vazio. Ocupa o coração que delira sonhos. Fecho os olhos e viajo no espaço imenso do universo. Flutuo como quem não tem vida. Flutuo, como que a vida fosse plena e fosse somente o flutuar, somente a música.
A voz é suave. Simples. As cordas vocais não precisam do acompanhamento das cordas dos violões para a música fazer, para a música cantar. Para a música penetrar nas almas de quem ouve. No silêncio ouço a acomodação da minha alma.
Bachelet, Chávez, Nicanor, Cristina, Lula, Evo e Tabaré, são todos sonhos. Quantos sonhos representam? O que significa Mercedes Sosa para cada um desses presidentes reunidos aqui? O que significa sua voz, sua música, sua cultura?
Mercedes Sosa canta, como quem sonha, na Casa de Governo da Província de Tucumán. A simpatia simpática e suave de seu ser.
O que já sonhou Mercedes? Sonhou o fim das ditaduras. Sonhou a igualdade e a solidariedade entre os povos. Sonhou cantar para os presidentes?
No final da curta apresentação, precisou de ajuda para se levantar da cadeira onde estava sentada. Lembrei-me de Clementina de Jesus. Idosa, precisava do mesmo tipo de ajuda.
Porém, de pé, dava, ainda, seus curtos passos de sambista. Vi Clementina uma única vez. É a primeira vez que vejo Mercedes Sosa.
Com o auxílio, Mercedes levanta e diz: "Estoy nerviosa". E caminha rumo aos presidentes. É cumprimentada e abraçada por todos. Depois disso, sai da sala.
Para mim ficou uma pergunta: por que não a convidaram para jantar conosco?"
Escrevi o texto acima no cardápio que estava sobre a mesa em 30 de junho de 2008, na cidade argentina de São Miguel de Tucumán. Escrevi e guardei como uma espécie de emoção registrada. Uma espécie de oração que fazia na sala tomada pela música. Era eu, Mercedes Sosa (1935-2009) e a música.
O Mercosul surgiu para a integração econômica e comercial dos quatro países, mas o comércio integra comerciantes enquanto obtêm ganho, lucro, enquanto a conta bancária aumenta o saldo. Para tanto, é necessária a exploração. Além disso, é crise e desconfiança.
A verdadeira integração entre os povos é feita pela solidariedade, pela alma, pelo espírito, e não há algo que mais integra que a cultura e, em especial, a música. A música cria identidade. A identidade da razão, do coração, da emoção.
Em 1979, Mercedes Sosa cantava na cidade de La Plata quando a ditadura militar a prendeu e a obrigou a se exilar. Proibida de cantar em seu país, através de sua música integrou sua terra ao resto do mundo.
Mercedes Sosa, além de ser uma respeitada voz da América do Sul, foi também uma militante política de esquerda. Foi uma das líderes do movimento musical "Nueva Canción", na década de 1960, com raízes africanas e latino-americanas, e contra o imperialismo norte-americano.
Aos 74 anos, La Negra (assim chamada pela cor da pele) nos deixou. Graças a ela, nossos sonhos de integração são sempre revigorados. Graças a ela, nossas vidas são menos amargas.
Ela e Violeta Parra poderão, juntas, cantar: "Gracias a la vida que me ha dado tanto / Me ha dado la risa y me ha dado el llanto / Así yo distingo dicha de quebranto / Los dos materiales que forman mi canto / Y el canto de ustedes que es el mismo canto / Y el canto de todos que es mi propio canto / Gracias a la vida, gracias a la vida."
Não é necessário conhecer o poema ou verso, tampouco a língua em que é cantado. A poesia e a música me e te faz outro, humano e solidário. A voz de Haydeé Mercedes Sosa me e te faz um hermano sulamericano. Adiós, hermana.
Dr. Rosinha, médico pediatra, é deputado federal (PT-PR) e membro do Parlamento do Mercosul.
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