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sábado, 3 de outubro de 2009

Leminskis

“O sentido, acho, é a entidade mais misteriosa do universo. Relação, não coisa, entre a consciência, a vivência e as coisas e os eventos. O sentido dos gestos. O sentido dos produtos. O sentido do ato de existir. Me recuso a viver num mundo sem sentido.” Paulo Leminski (1944-1989).

Vinte anos depois de sua morte, escritor curitibano ainda suscita polêmica

Marcio Renato dos Santos na Gazeta do Povo

No romance Fantasma, de José Castello, o protagonista caminha pelo Jardim Botânico, em Curi­tiba, e é surpreendido com uma abordagem. “Leminski não morreu”, diz uma mulher desconhecida. A partir dessa frase, o personagem sai, pela capital para­­naense, em busca do fantasma de Leminski.

Da ficção para a realidade, 20 anos depois da morte de Paulo Le­­minski, o argumento de Cas­­tello em sua narrativa de invenção é pertinente. De certa maneira, Leminski não morreu. Uma exposição, que entrou em cartaz quarta-feira passada em São Paulo, coloca ainda mais o nome do artista paranaense – e a sua obra – em evidência.

“Eu sou trezentos, sou trezentos e cinquenta.” A frase foi dita pelo modernista Mário de Andrade, mas bem que poderia ter sido enunciada por Leminski. A exemplo do escritor paulistano, o curitibano também atuou em diversas áreas. Traduziu longas narrativas, de Samuel Beckett (Malone Morre) a John Lennon (Um Atrapalho no Trabalho), entre outros.

Estreou, em 1975, com o ro­­mance Catatau, que mistura fi­­losofia, oralidade, texto poético e prosa experimental, in­­cluindo um idioma próprio. Escreveu muita poesia, com destaque para as que foram vei­­culadas nos li­­vros Polonaises e Distraídos Venceremos.

Assinou letras de canções, gravadas por Caetano Veloso, Morais Moreira, Guilherme Arantes, Ney Matogrosso e pela banda curi­­tibana Blindagem. Do judô à publicidade, do jornalismo cultural às salas de cursos pré-vestibulares, onde lecionou História e Redação, Leminski foi múltiplo.

E como a obra do poeta, as suas muitas ações, realizadas em apenas 44 anos, dialogam hoje com artistas, leitores e críticos? O maestro e diretor de teatro Octá­­vio Camargo, que vive em Curi­­tiba, acredita que o maior legado de Leminski foi o exemplo do criador multimídia que transitou por várias áreas. “Um artista, depois de Leminski, não pode mais ser apenas poeta, contista ou músico. É preciso ser muitos. O nosso tempo é assim, e exige isso dos artistas”, afirma Camar­go. Ele mesmo atua em frentes variadas. Músico, migrou para a dramaturgia, flertou com as artes plásticas e, recentemente, passou a compor canções com jovens poetas curitibanos, todos fãs de Leminski.

O poeta Régis Bonvicino, com quem Leminski trocou cartas durante a década de 1970, critica essa faceta multimídia de seu amigo. “Acho que ele (Leminski) foi dispersivo. O melhor de sua produção está naquilo em que se concentrou, se debruçou: os seus livros em prosa”, diz Bonvicino, referindo-se a Metaformose, um ensaio que Leminski fez sobre o imaginário grego. O poeta paulistano também faz restrições à legião de jovens que, ao invés de buscar voz própria, simplesmente copiam a dicção leminskiana. Isso ocorre em todo o Brasil, principalmente em Curitiba. “Le­­minski deixou centenas de diluidores, que o imitam diretamente”, critica.

A poesia de Leminski, fato consumado, seduz muitos leitores. Os poemas breves, feitos a partir de jogos de palavras, como “primeiro frio do ano/ fui feliz/ se não me engano” ou “enfim,/ nu,/ como vim”, são, ainda hoje, declamados por adolescentes e jovens em mesas de bar, cantinas e porões. Na opinião de Bonvicino, esses poemas soam “às vezes dísticos de algum Diretório Central dos Estudantes (DCE)”.

“A poesia de Leminski me pa­­rece bastante irregular e é uma infelicidade que os momentos menos fortes sejam justamente os mais imitados: a busca obsessiva do efeito, a fixação no trocadilho, na paronomásia, na sacada”, diz o professor de Lite­­ratura da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Paulo Franchetti. O estudioso, também poeta, observa que, para o bem e para o mal, há alguma coisa de juvenil na poesia de Leminski.

“E por conta do apelo pop dessa juvenilidade, o lado que me parece mais interessante da sua poesia, e que tem inclusive um acento trágico (os poemas mais longos), tem ficado ofuscado”, analisa.

Leminski, duas décadas fora de cena, segue a gerar discussão. Mesmo com os seus livros (lamen­­tavelmente) esgotados, o autor, por caminhos inacreditáveis, não deixa de se fazer presente. No dia 20 de fevereiro do ano que vem, a Companhia Brasileira de Teatro, que tem sede em Curitiba, estará em cartaz em um teatro de Paris, na França, com um espetáculo sobre a obra leminskiana. Há um ano, Marcio Abreu, Nadja Naira, Giovana Soar e toda trupe, pesquisam a produção do autor. Depois da temporada francesa, deve estrear, na capital paranaense, o espetáculo Vida.

A obra de Leminski, esfinge que é, segue indecifrável, entre caprichos e relaxos, a instigar e a devorar todos os que dela se aproximam.

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