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quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Medicina no divã

Gazeta do Povo


Nos últimos 15 anos, seis especialidades médicas e 45 novas áreas de atuação foram regulamentadas pela Comissão Mista de Especialidades, formada pela Associação Médica Brasileira, Conselho Federal de Medicina e Comissão Nacional de Residência Médica. Isso quer dizer que os profissionais recém-formados em Medicina podem escolher entre 53 especialidades e 54 diferentes microáreas – como a endoscopia para os gastroenterologistas ou a cardiologia pediátrica para os pediatras.

Segundo José Fernando Ma­­cedo, presidente da Associação Médica do Paraná, a regulamentação de novas áreas está relacionada com o desenvolvimento de tecnologias. "A especialização aconteceu juntamente com a modernização da Medicina. Vejo como um desenvolvimento natural. Exis­­tem patologias que só conseguem ser tratadas por um médico especialista", afirma.

Por outro lado, com tantas possibilidades de atuação profissional, está cada vez mais difícil encontrar médicos generalistas. "As especialidades têm mais profissionais e, ao mesmo tempo, são mais procuradas pelos pacientes. As pessoas preferem aqueles que sabem muito de alguma coisa do que os que têm uma visão mais abrangente sobre tudo", diz Ân­gelo Luiz Tesser, médico diretor de Ensino Pesquisa e Extensão do Hospital das Clínicas da Uni­versidade Federal do Paraná (HC/UFPR).

O hábito de o paciente buscar um especialista como primeiro médico não é o ideal, segundo César Alfredo Pusch Kubiak, presidente da Sociedade Paranaense de Clínica Médica. "Com a prática, o especialista acaba perdendo a visão do paciente como um todo. É o clínico geral que deve fazer o diagnóstico e, se necessário, encaminhar para as especialidades", afirma.

Para o médico, um clínico geral com boa formação é capaz de solucionar a maioria dos casos. "Existe a ideia de que os médicos generalistas são menos preparados. Isso não é verdade. Eles também tem formação específica". Desde 1989, quando foi criada a Sociedade Brasileira de Clínica Médica, foram entregues quatro mil títulos de especialista na área. "Clínico geral era sinônimo de médico que não continuava estudando. Hoje, por definição, esse profissional tem de ter pós-graduação ou residência."

Romaria em consultórios até o diagnóstico preciso

Um sintoma leva a um especialista, que pede um exame e que, caso não encontre a causa do problema, encaminha a outro especialista. Muitas vezes são necessários três ou quatro médicos e a mesma quantidade de exames para se chegar ao diagnóstico correto. Essa romaria por consultórios, muito comum, é o que os americanos chamam de doctor shopping. "A pessoa gasta mais dinheiro e se expõe a exames que podem ser agressivos. Isso acontece porque muita gente está fazendo o diagnóstico por conta própria", diz o médico Kubiak.

Quando nenhum dos exames descobre a causa do problema, os clínicos gerais são consultados. "É uma inversão do processo. O clínico geral, que deveria ser a primeira opção, acaba sendo o último recurso e cuidando de doenças de difícil diagnóstico. Se ele fosse procurado no início, todo esse desgaste seria evitado", explica Ângelo Tesser, médico do HC.

Em larga escala, a economia de um diagnóstico correto é essencial para o sistema público de saúde. "Valorizar o clínico geral sai muito mais barato e acaba sendo mais resolutivo", afirma Antônio Carlos Lopes, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e presidente da Sociedade Brasileira de Clínica Médica.

Desde o começo

Vários são os fatores que contribuem para que mais especialistas saiam das cadeiras das universidades. A busca por uma formação focada começa já nos primeiros anos de graduação. "Há uma especialização precoce. Logo nos primeiros semestres o estudante decide qual área quer seguir e direciona seus estudos", diz Tesser. De acordo com Kubiak há pouco espaço para a formação generalista. "Tem-se a ideia de que o paciente é fatiado. Uma parte cabe à neurologia, outra a cardiologia", explica.

Depois de formado, a busca por outros cursos é imediata e a escolha de uma área é, muitas vezes, determinada pelo mercado de trabalho. "Os procedimentos de especialidades são melhor remunerados do que a atividade clínica propriamente dita", diz Tesser. A diferença de remuneração acontece porque as especialidades são relacionadas com tecnologias e alguns exames considerados padrão.

Como na clínica geral não há tecnologias associadas, o médico ganha apenas o valor da consulta. "Mesmo aqueles que escolhem ser clínicos, depois de dois ou três anos acabam indo para uma especialidade. O resultado é uma saturação em algumas áreas e a falta de generalistas. Isso já vem acontecendo e precisa ser revertido com uma valorização econômica", afirma Kubiak.Outro fator que leva os médicos a procurarem as especialidades é o respaldo legal dado pelo vínculo com uma sociedade médica. "Ao ser especialista o médico corre menos risco porque sua atividade é contemplada do ponto de vista ético e respaldada por uma área de atuação."

Tentativa de retomada

"Antes de pensar em ser especialista é preciso pensar em ser médico", diz Edison Tomio Azuma, coordenador do Pronto Socorro do Hospital Santa Cruz. Azuma tem 25 anos de formado e intitula-se como sobrevivente da velha guarda, quando a opção por ser clínico geral era mais comum. "Vi de perto como cresceu a procura por especialidades. Atualmente vejo a clínica médica como um nicho de mercado interessante, justamente porque não existem mais clínicos."

A prática da clínica geral por um tempo seria fundamental para a formação do profissional. "Uma ideia é repensar isso de emendar uma formação na outra. Poderia ser intercalado, forçando os profissionais a exercerem a clínica médica por um tempo", diz Ângelo Luiz Tesser, médico diretor de Ensino Pesquisa e Extensão do Hospital das Clínicas da UFPR. Algumas especializações já exigem que parte da formação seja generalista. A Sociedade Brasileira de Clínica Médica busca que seja um pré-requisito para qualquer área.

Faltam pediatras gerais

Sobram vagas na residência de pediatria pelos hospitais do Brasil. A especialidade que tem o maior número de áreas de atuação é uma das menos procuradas atualmente. "Apesar de ser especialista, o pediatra é visto como um clínico geral. Isso faz com que os alunos de gradua­ção não estejam procurando muito a área", diz Mário Vieira, médico pediatra gastroenterologista, coordenador da residência em pediatria do Hospital Pequeno Príncipe e professor da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR).

A maioria das grandes áreas da Medicina atualmente tem sua representação na pediatria, como a neurologia e a otorrinolaringologia. Ao todo são 15 áreas de atuação. Ainda que a procura direta seja menor, muitos pais já encaminham seus filhos primeiro a pediatras especialistas. "Metade dos meus pacientes é encaminhado pelo pediatra geral e a outra metade procura diretamente. Um exemplo é quando a criança tem um problema de vômito e os pais decidem consultar direto o gastroenterologista."

A pediatra geral Lenira Facin, 33 anos de profissão, é uma representante de pediatras gerais que chegam a atender várias gerações de uma mesma família. "A primeira vez que veio um ex-paciente com um filho nos braços eu levei um susto. Agora já me acostumei", diz ela, que teme pela falta de generalistas. "Daqui uns anos vai haver uma falta de pediatra geral sim. Isso será um problema. É ele que faz o acompanhamento de todo o caso, que observa o desenvolvimento da criança e orienta os pais. Não tem como tratar só uma parte da criança. É como você organizar só um cômodo da casa."

Direto ao ponto

Para que uma nova área seja criada é preciso que haja um consenso na Comissão Mista de Especialidades. Desde 1993, existem as áreas de atuação, criadas para regulamentar e fiscalizar o crescimento no número de especialidades. "Elas contemplam novas formações e não deixam que as especialidades maiores sejam enfraquecidas", afirma Lopes.

Há uma relação direta entre a formalização de uma nova área e o desenvolvimento científico. A cirurgia de mão, última especialidade regulamentada, em 2002, é um exemplo de como em muitos casos a segmentação é essencial. A ortopedista e cirurgiã de mão Giana Giostri explica que a área não era atendida por nenhuma outra residência médica. "Nem o cirurgião plástico nem o ortopedista e o neurocirurgião eram capacitados para cuidar de algumas patologias e traumas que envolvem a mão. É uma área muito complexa, que relaciona mobilidade com sensibilidade."

Apesar de regulamentada em 2002, a especialidade existe há muito mais tempo. É o que geralmente acontece com novas áreas. Primeiro vem a pós-graduação e só depois a regulamentação. A existência de uma sociedade médica não está relacionada diretamente com uma nova especialidade. "Apesar de a sociedade ser o primeiro passo para a organização dos profissionais, existe uma criação exagerada de sociedades médicas e nem todas são regulamentadas", afirma Lopes.

Para Giana, a regulamentação da cirurgia de mão só tornou oficial o que já era uma prática. "Fiz residência em 1989, depois de me formar em ortopedia. Desde 2000 coordeno uma residência na área", conta ela, que vê o lado positivo das especialidades. "A Medi­cina evoluiu muito. O médico não tem condições de se atualizar em todas as áreas. Há materiais e técnicas para cada especialidade. As especializações foram aparecendo justamente para atender uma demanda natural de estudo."

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