no blog do Luis Nassif
INTERNAÇÕES PSIQUIÁTRICAS
Pinel ou Simão Bacamarte?
Entrevista com Emmanuel Souza
Psicorama: Gostaríamos que você falasse da lei 10.216 sobre internações psiquiátricas.
Emmanuel: Talvez tenha sido a conseqüência mais tardia do processo de redemocratização na área da saúde. A criação do SUS, em 1988, não estabeleceu normas específicas para a área da saúde mental. A questão da cidadania dos doentes mentais, por ser tema polêmico e controverso, teve de aguardar ainda mais 15 anos até ser sancionada em 2001. Havia, sem dúvida, a necessidade de uma nova legislação; a que se encontrava em vigor fora sancionada em 1934 e trazia o vezo autoritário que marcou os anos 30 no mundo inteiro. Entre outras arbitrariedades havia a permissão do seqüestro manicomial de indivíduos com diagnóstico de doença mental. Lembram-se do caso da Tutu Quadros?
A questão das internações é apenas um aspecto da lei. De uma forma geral ela regulamenta os direitos da pessoa portadora de transtornos mentais, tornando possível, por exemplo, no caso de internação compulsória, o paciente acionar a defensoria pública que pode constituir uma junta médica para melhor avaliar se aquela internação era mesmo indispensável. Em termos assistenciais a nova lei propõe uma mudança no funcionamento geral do atendimento. O modelo que vigorava era centrado nos hospitais psiquiátricos, a nova lei privilegia a oferta de tratamento em serviços de base comunitária, propondo a progressiva substituição do atual modelo por uma rede de serviços extra-hospitalares cujo centro seriam os CAPS (Centros de Atenção Psicossocial).
A idéia é interessante e contém elementos importantes que podem trazer grande progresso ao tratamento dos doentes. Nos CAPS a idéia é de estabelecer uma linha continua de apoio ao doente mental, mantendo a mesma equipe acompanhando os pacientes em todos os momentos críticos de sua doença. Por exemplo, se um paciente entra em crise e precisa de internação, esta é feita no próprio CAPS, evitando que um profissional sem vínculo cuide do paciente, passada a crise os mesmos profissionais prosseguirão o acompanhamento. A equipe pode explorar os recursos presentes na comunidade e propor iniciativas no sentido de inserir o paciente em algum esquema possível de participação comunitária.
A nova lei, entretanto, não estabeleceu como se daria a redução dos leitos psiquiátricos. Até a década de 80 os recursos da área da saúde mental eram usados para custear internações psiquiátricas, sobrando muito pouco para o investimento em uma rede extra-hospitalar. Para criar uma rede alternativa era necessário redirecionar os recursos das internações para os serviços comunitários. A solução que se tinha era a internação, muitas vezes necessária, noutras nem tanto. Como modificar a estrutura em andamento sem causar redução nas internações? É necessário avaliar como está se dando o ritmo de fechamento dos leitos, reconhecer e corrigir as insuficiências do novo modelo que está sendo implantado.
Psicorama: Há dados comparativos sobre internações psiquiátricas entre o período anterior à lei e atualmente? A lei abriu as portas dos asilos ou fechou internações necessárias?
Emmanuel: Um pouco das duas coisas. Muito antes de a lei ser aprovada já era forte a presença do movimento antimanicomial. Em 1989 havia cerca de 120.000 leitos psiquiátricos no Brasil e surgiam as primeiras tentativas de modificar o modelo. Desde a gestão de Franco Montoro em São Paulo e depois, no início dos 90 em Santos e Campinas, realizaram-se experiências importantes de fechamento concreto de hospitais e criação de serviços alternativos.
A questão é que enquanto se estabeleciam, de forma ainda isolada, as primeiras experiências com o novo modelo houve uma acentuada redução no número de leitos para internação. Até 2001, data em que a nova lei foi sancionada, haviam sido fechados cerca de 68.000, sem a contrapartida da necessária criação de uma rede substitutiva adequada. Nos anos seguintes à lei, houve uma aceleração na criação dos CAPS em nível nacional e um maior equilíbrio na relação de fechamento de leitos e criação dos novos serviços.
O resultado é que a redução foi muito rápida e sem um ritmo adequado. Afinal, como se sabe, o pior momento dos povos é quando o velho regime caiu e o novo ainda não conseguiu se estabelecer. É o que se vive atualmente em relação ao atendimento público em Saúde Mental. Em São Paulo, por exemplo, cerca de 30% das solicitações de internação psiquiátrica são recusadas. O problema é especialmente sentido nas grandes capitais, sendo que os casos agudos, na falta de recursos adequados, acabam indo parar nos pronto-socorros e tendo atendimento muito precário, onde é muito utilizado o recurso da contenção no leito, traumatizando pacientes, familiares e equipe médica.
Para mensurar o problema do cuidado que se deve ter com a redução progressiva de leitos, deve-se levar em conta que há muitos pacientes crônicos ocupando leitos, que não tem condições de alta ou laços familiares que permitam a desinternação, e quando se solicita uma internação estes leitos já se encontram ocupados. Estes pacientes crônicos deveriam estar em residências terapêuticas, porém somente 516 foram criadas até o momento.
Outra solução proposta foi a criação de leitos psiquiátricos em hospitais gerais. No período, foram criados 2,4 mil leitos em hospitais gerais, número insuficiente face ao ritmo de fechamento de leitos psiquiátricos promovido pelo Ministério da Saúde. O fato é que alguns hospitais psiquiátricos que funcionavam de forma muito precária foram corretamente fechados, mas existe um grande descompasso entre as necessidades atuais de internação e a disponibilidade de leitos.
A criação dos serviços extra-hospitalares foi insuficiente, além de que um grande número de CAPS funciona de forma muito precária, cobrindo um contingente populacional impossível de atender, com repressão de demanda, troca constante de profissionais e lacunas em relação aos quadros necessários. Alguns CAPS oferecem internação psiquiátrica dentro de suas próprias dependências. Os CAPS III geralmente dispõem de seis leitos para internação, porém, foram criados apenas 40 destes serviços no Brasil, número muito reduzido face à demanda e as equipes são frágeis para lidar com situações que envolvem pacientes agressivos ou que não aceitam o internamento.
Psicorama: Qual o impacto desta lei nas diferentes camadas sociais?
Emmanuel: As doenças mentais são mais comuns nas camadas mais empobrecidas da população e sem dúvida estas são mais atingidas pelo impacto da impossibilidade de internação. As camadas mais favorecidas, afora o fato de apresentarem menor proporção de casos de doença mental entre seus pares em relação às menos favorecidas, podem contratar serviços e resolver de alguma forma a premência imediata, as mais empobrecidas dependem exclusivamente do Estado.
Psicorama: O movimento antimanicomial foi de extrema importância para a desmistificação da “loucura”. No entanto, este movimento não pode ter dado margem a uma espécie de negação da doença mental?
Emmanuel: Houve uma inegável redução na estigmatização dos doentes mentais, ao menos no plano do imaginário social, o que sem dúvida é um progresso. Contribui também neste sentido o próprio ambiente cultural contemporâneo, marcado pela heterodoxia e questionamento dos limites conceituais, afora o progresso das instituições dentro de um ambiente democrático. Acontece que morrem certas mistificações e surgem outras, veja o caso do próprio movimento antimanicomial que vê as instituições sociais destinadas ao tratamento dos doentes mentais como estruturas de violência destinadas a preservar o poder das classes dominantes. Creio que uma leitura classista do adoecimento psíquico ajuda muito pouco as pessoas concretas que apresentam problemas psiquiátricos e, de certa forma, pode incorrer na negação da doença psiquiátrica através de leituras muito sociologizantes.
Psicorama: Qual o impacto das novas medicações sobre a freqüência e necessidade de internações psiquiátricas?
Emmanuel: O surgimento das medicações psiquiátricas, por volta da década de 50, foi o fator mais impactante na redução do tempo e da necessidade de internação psiquiátrica. As novas medicações desenvolvidas demonstram a mesma eficácia que as clássicas, mas com um perfil melhor de efeitos colaterais, o que trouxe maior dignidade às condições de tratamento e aumentou a adesão dos pacientes. Apesar dos progressos na tolerabilidade ao tratamento, não tenho informação se, no aspecto específico de reduzir internações, elas tenham tido papel destacado. O que vejo em minha própria experiência é que uma maior adesão reduz a necessidade de internações, mas não tenho dados a respeito.
Psicorama: A questão do alcoolismo e das adicções: as famílias que não podem pagar clínica particular fazem o quê? Como funciona o SUS em relação à saúde mental?
Emmanuel: A principal porta de entrada, ao menos para os casos graves, se dá via atendimento de emergência psiquiátrica em pronto-socorros públicos. Reduzidos os sintomas mais exuberantes, o paciente é encaminhado para os serviços regionais que são os CAPS. Os pacientes com dependência química são atendidos nestes serviços de emergência, onde recebem os primeiros cuidados, são tratados os sintomas de abstinência ou intoxicação aguda e depois encaminhados para a rede pública em unidades chamadas CAPSad (álcool e drogas), que são serviços de hospital-dia, com alguns leitos de internação.
Existem, também, vagas nos hospitais públicos para portadores destas doenças, quando a situação é muito severa envolvendo risco de suicídio ou grave comprometimento orgânico. Estas vagas, evidentemente, passam pelo mesmo contingenciamento exposto na primeira questão.
Psicorama: As queixas do poeta procedem? Ferreira Gullar escreveu à Folha de São Paulo do dia 26 de abril de 2009:
"(...) Tampouco acredito que a internação por si só resolva os problemas, mas é inegável que, em casos de surto psicótico agudo, essa providência é imprescindível. Ninguém, em sã consciência, acredita que, nesse estado, o paciente possa ser atendido no hospital-dia. Não é difícil prever o que ocorre, em tais circunstâncias, quando a família do paciente não consegue interná-lo. Manter em casa uma pessoa em estado delirante é praticamente impossível. Por isso, as famílias que têm recursos recorrem às caríssimas clínicas particulares. E as que não têm? Não obstante, a nova psiquiatria intitula-se "psiquiatria democrática."
Emmanuel: Acho que se deve valorizar o que ele diz. É por meio da constatação de insuficiências e questionamentos que o novo modelo pode ser aprimorado. Pelo que foi relatado, seus dois filhos têm crises muito graves e ele tem tido dificuldade de prover a estrutura necessária para acudi-los nestas situações. Ele não tem encontrado a resposta adequada nos CAPS frente a dramaticidade e gravidade que expõe das situações dos filhos. É uma queixa, uma opinião de um familiar que não parece desinteressado ou querendo simplesmente livrar-se dos filhos.
Achei levianas algumas reações aos seus reclamos que tentavam desqualificar as críticas como se fossem fruto de um pai interessado em manter-se confortavelmente afastado dos problemas dos filhos (um deles falecido). Defato, o modelo estava centrado nas internações, a redução dos leitos foi desequilibrada e causou desassistência nas situações de crise aguda. Um fato positivo que resultou das queixas do poeta é que trouxe novamente à discussão o tema da saúde mental e o Ministério Público moveu ação contra o município obrigando-o a criar serviços extra-hospitalares em quantidade adequada. O município recorreu da sentença. Vamos ver no que é que dá!
Psicorama: Como viabilizar um espaço de internação que não incorra nos vícios “doutrinadores e torturadores” desses lugares, que têm por característica, um uso abusivo da autoridade? Seja ela religiosa, científica ou simplesmente carcerária?
Emmanuel: Difícil responder. Para alguns não existe ponto de vista que não seja tributário de alguma ideologia. Não tenho esta visão, creio que as ideologias são na verdade uma visão deformada da realidade. Ainda acredito ser possível a elaboração de ações humanas partindo de uma percepção mais objetiva e simples das coisas. O problema das ideologias é que elas raramente lidam com pessoas concretas e sim com idéias que costumam funcionar muito bem quando estão no papel.
Psicorama: Há propostas em pauta para resolver essas graves questões?
Emmanuel: Creio que sim. O próprio modelo atual, proposto pelo Ministério da Saúde, tem virtudes inegáveis, mas necessita ser revisto em alguns aspectos. Deve-se abandonar a idéia onipotente de que os CAPS têm a solução para qualquer tipo de problema mental; deve-se criar ambulatórios de saúde mental, cujo custo é mais barato do que os CAPS, para atender a imensa maioria de pacientes que não apresentam quadros graves, e aceitar a necessidade de estruturas mais fortes, no caso hospitais psiquiátricos devidamente qualificados, para uma resposta mais adequada às crises agudas de pacientes com sintomas graves.
Emmanuel Souza, psiquiatra e psicanalista, é colaborador na seção Escritos.
- Psicorama -http://www.psicorama.com.br/emfoco_detalhe.asp?ID=17
Pinel ou Simão Bacamarte?
Entrevista com Emmanuel Souza
Psicorama: Gostaríamos que você falasse da lei 10.216 sobre internações psiquiátricas.
Emmanuel: Talvez tenha sido a conseqüência mais tardia do processo de redemocratização na área da saúde. A criação do SUS, em 1988, não estabeleceu normas específicas para a área da saúde mental. A questão da cidadania dos doentes mentais, por ser tema polêmico e controverso, teve de aguardar ainda mais 15 anos até ser sancionada em 2001. Havia, sem dúvida, a necessidade de uma nova legislação; a que se encontrava em vigor fora sancionada em 1934 e trazia o vezo autoritário que marcou os anos 30 no mundo inteiro. Entre outras arbitrariedades havia a permissão do seqüestro manicomial de indivíduos com diagnóstico de doença mental. Lembram-se do caso da Tutu Quadros?
A questão das internações é apenas um aspecto da lei. De uma forma geral ela regulamenta os direitos da pessoa portadora de transtornos mentais, tornando possível, por exemplo, no caso de internação compulsória, o paciente acionar a defensoria pública que pode constituir uma junta médica para melhor avaliar se aquela internação era mesmo indispensável. Em termos assistenciais a nova lei propõe uma mudança no funcionamento geral do atendimento. O modelo que vigorava era centrado nos hospitais psiquiátricos, a nova lei privilegia a oferta de tratamento em serviços de base comunitária, propondo a progressiva substituição do atual modelo por uma rede de serviços extra-hospitalares cujo centro seriam os CAPS (Centros de Atenção Psicossocial).
A idéia é interessante e contém elementos importantes que podem trazer grande progresso ao tratamento dos doentes. Nos CAPS a idéia é de estabelecer uma linha continua de apoio ao doente mental, mantendo a mesma equipe acompanhando os pacientes em todos os momentos críticos de sua doença. Por exemplo, se um paciente entra em crise e precisa de internação, esta é feita no próprio CAPS, evitando que um profissional sem vínculo cuide do paciente, passada a crise os mesmos profissionais prosseguirão o acompanhamento. A equipe pode explorar os recursos presentes na comunidade e propor iniciativas no sentido de inserir o paciente em algum esquema possível de participação comunitária.
A nova lei, entretanto, não estabeleceu como se daria a redução dos leitos psiquiátricos. Até a década de 80 os recursos da área da saúde mental eram usados para custear internações psiquiátricas, sobrando muito pouco para o investimento em uma rede extra-hospitalar. Para criar uma rede alternativa era necessário redirecionar os recursos das internações para os serviços comunitários. A solução que se tinha era a internação, muitas vezes necessária, noutras nem tanto. Como modificar a estrutura em andamento sem causar redução nas internações? É necessário avaliar como está se dando o ritmo de fechamento dos leitos, reconhecer e corrigir as insuficiências do novo modelo que está sendo implantado.
Psicorama: Há dados comparativos sobre internações psiquiátricas entre o período anterior à lei e atualmente? A lei abriu as portas dos asilos ou fechou internações necessárias?
Emmanuel: Um pouco das duas coisas. Muito antes de a lei ser aprovada já era forte a presença do movimento antimanicomial. Em 1989 havia cerca de 120.000 leitos psiquiátricos no Brasil e surgiam as primeiras tentativas de modificar o modelo. Desde a gestão de Franco Montoro em São Paulo e depois, no início dos 90 em Santos e Campinas, realizaram-se experiências importantes de fechamento concreto de hospitais e criação de serviços alternativos.
A questão é que enquanto se estabeleciam, de forma ainda isolada, as primeiras experiências com o novo modelo houve uma acentuada redução no número de leitos para internação. Até 2001, data em que a nova lei foi sancionada, haviam sido fechados cerca de 68.000, sem a contrapartida da necessária criação de uma rede substitutiva adequada. Nos anos seguintes à lei, houve uma aceleração na criação dos CAPS em nível nacional e um maior equilíbrio na relação de fechamento de leitos e criação dos novos serviços.
O resultado é que a redução foi muito rápida e sem um ritmo adequado. Afinal, como se sabe, o pior momento dos povos é quando o velho regime caiu e o novo ainda não conseguiu se estabelecer. É o que se vive atualmente em relação ao atendimento público em Saúde Mental. Em São Paulo, por exemplo, cerca de 30% das solicitações de internação psiquiátrica são recusadas. O problema é especialmente sentido nas grandes capitais, sendo que os casos agudos, na falta de recursos adequados, acabam indo parar nos pronto-socorros e tendo atendimento muito precário, onde é muito utilizado o recurso da contenção no leito, traumatizando pacientes, familiares e equipe médica.
Para mensurar o problema do cuidado que se deve ter com a redução progressiva de leitos, deve-se levar em conta que há muitos pacientes crônicos ocupando leitos, que não tem condições de alta ou laços familiares que permitam a desinternação, e quando se solicita uma internação estes leitos já se encontram ocupados. Estes pacientes crônicos deveriam estar em residências terapêuticas, porém somente 516 foram criadas até o momento.
Outra solução proposta foi a criação de leitos psiquiátricos em hospitais gerais. No período, foram criados 2,4 mil leitos em hospitais gerais, número insuficiente face ao ritmo de fechamento de leitos psiquiátricos promovido pelo Ministério da Saúde. O fato é que alguns hospitais psiquiátricos que funcionavam de forma muito precária foram corretamente fechados, mas existe um grande descompasso entre as necessidades atuais de internação e a disponibilidade de leitos.
A criação dos serviços extra-hospitalares foi insuficiente, além de que um grande número de CAPS funciona de forma muito precária, cobrindo um contingente populacional impossível de atender, com repressão de demanda, troca constante de profissionais e lacunas em relação aos quadros necessários. Alguns CAPS oferecem internação psiquiátrica dentro de suas próprias dependências. Os CAPS III geralmente dispõem de seis leitos para internação, porém, foram criados apenas 40 destes serviços no Brasil, número muito reduzido face à demanda e as equipes são frágeis para lidar com situações que envolvem pacientes agressivos ou que não aceitam o internamento.
Psicorama: Qual o impacto desta lei nas diferentes camadas sociais?
Emmanuel: As doenças mentais são mais comuns nas camadas mais empobrecidas da população e sem dúvida estas são mais atingidas pelo impacto da impossibilidade de internação. As camadas mais favorecidas, afora o fato de apresentarem menor proporção de casos de doença mental entre seus pares em relação às menos favorecidas, podem contratar serviços e resolver de alguma forma a premência imediata, as mais empobrecidas dependem exclusivamente do Estado.
Psicorama: O movimento antimanicomial foi de extrema importância para a desmistificação da “loucura”. No entanto, este movimento não pode ter dado margem a uma espécie de negação da doença mental?
Emmanuel: Houve uma inegável redução na estigmatização dos doentes mentais, ao menos no plano do imaginário social, o que sem dúvida é um progresso. Contribui também neste sentido o próprio ambiente cultural contemporâneo, marcado pela heterodoxia e questionamento dos limites conceituais, afora o progresso das instituições dentro de um ambiente democrático. Acontece que morrem certas mistificações e surgem outras, veja o caso do próprio movimento antimanicomial que vê as instituições sociais destinadas ao tratamento dos doentes mentais como estruturas de violência destinadas a preservar o poder das classes dominantes. Creio que uma leitura classista do adoecimento psíquico ajuda muito pouco as pessoas concretas que apresentam problemas psiquiátricos e, de certa forma, pode incorrer na negação da doença psiquiátrica através de leituras muito sociologizantes.
Psicorama: Qual o impacto das novas medicações sobre a freqüência e necessidade de internações psiquiátricas?
Emmanuel: O surgimento das medicações psiquiátricas, por volta da década de 50, foi o fator mais impactante na redução do tempo e da necessidade de internação psiquiátrica. As novas medicações desenvolvidas demonstram a mesma eficácia que as clássicas, mas com um perfil melhor de efeitos colaterais, o que trouxe maior dignidade às condições de tratamento e aumentou a adesão dos pacientes. Apesar dos progressos na tolerabilidade ao tratamento, não tenho informação se, no aspecto específico de reduzir internações, elas tenham tido papel destacado. O que vejo em minha própria experiência é que uma maior adesão reduz a necessidade de internações, mas não tenho dados a respeito.
Psicorama: A questão do alcoolismo e das adicções: as famílias que não podem pagar clínica particular fazem o quê? Como funciona o SUS em relação à saúde mental?
Emmanuel: A principal porta de entrada, ao menos para os casos graves, se dá via atendimento de emergência psiquiátrica em pronto-socorros públicos. Reduzidos os sintomas mais exuberantes, o paciente é encaminhado para os serviços regionais que são os CAPS. Os pacientes com dependência química são atendidos nestes serviços de emergência, onde recebem os primeiros cuidados, são tratados os sintomas de abstinência ou intoxicação aguda e depois encaminhados para a rede pública em unidades chamadas CAPSad (álcool e drogas), que são serviços de hospital-dia, com alguns leitos de internação.
Existem, também, vagas nos hospitais públicos para portadores destas doenças, quando a situação é muito severa envolvendo risco de suicídio ou grave comprometimento orgânico. Estas vagas, evidentemente, passam pelo mesmo contingenciamento exposto na primeira questão.
Psicorama: As queixas do poeta procedem? Ferreira Gullar escreveu à Folha de São Paulo do dia 26 de abril de 2009:
"(...) Tampouco acredito que a internação por si só resolva os problemas, mas é inegável que, em casos de surto psicótico agudo, essa providência é imprescindível. Ninguém, em sã consciência, acredita que, nesse estado, o paciente possa ser atendido no hospital-dia. Não é difícil prever o que ocorre, em tais circunstâncias, quando a família do paciente não consegue interná-lo. Manter em casa uma pessoa em estado delirante é praticamente impossível. Por isso, as famílias que têm recursos recorrem às caríssimas clínicas particulares. E as que não têm? Não obstante, a nova psiquiatria intitula-se "psiquiatria democrática."
Emmanuel: Acho que se deve valorizar o que ele diz. É por meio da constatação de insuficiências e questionamentos que o novo modelo pode ser aprimorado. Pelo que foi relatado, seus dois filhos têm crises muito graves e ele tem tido dificuldade de prover a estrutura necessária para acudi-los nestas situações. Ele não tem encontrado a resposta adequada nos CAPS frente a dramaticidade e gravidade que expõe das situações dos filhos. É uma queixa, uma opinião de um familiar que não parece desinteressado ou querendo simplesmente livrar-se dos filhos.
Achei levianas algumas reações aos seus reclamos que tentavam desqualificar as críticas como se fossem fruto de um pai interessado em manter-se confortavelmente afastado dos problemas dos filhos (um deles falecido). Defato, o modelo estava centrado nas internações, a redução dos leitos foi desequilibrada e causou desassistência nas situações de crise aguda. Um fato positivo que resultou das queixas do poeta é que trouxe novamente à discussão o tema da saúde mental e o Ministério Público moveu ação contra o município obrigando-o a criar serviços extra-hospitalares em quantidade adequada. O município recorreu da sentença. Vamos ver no que é que dá!
Psicorama: Como viabilizar um espaço de internação que não incorra nos vícios “doutrinadores e torturadores” desses lugares, que têm por característica, um uso abusivo da autoridade? Seja ela religiosa, científica ou simplesmente carcerária?
Emmanuel: Difícil responder. Para alguns não existe ponto de vista que não seja tributário de alguma ideologia. Não tenho esta visão, creio que as ideologias são na verdade uma visão deformada da realidade. Ainda acredito ser possível a elaboração de ações humanas partindo de uma percepção mais objetiva e simples das coisas. O problema das ideologias é que elas raramente lidam com pessoas concretas e sim com idéias que costumam funcionar muito bem quando estão no papel.
Psicorama: Há propostas em pauta para resolver essas graves questões?
Emmanuel: Creio que sim. O próprio modelo atual, proposto pelo Ministério da Saúde, tem virtudes inegáveis, mas necessita ser revisto em alguns aspectos. Deve-se abandonar a idéia onipotente de que os CAPS têm a solução para qualquer tipo de problema mental; deve-se criar ambulatórios de saúde mental, cujo custo é mais barato do que os CAPS, para atender a imensa maioria de pacientes que não apresentam quadros graves, e aceitar a necessidade de estruturas mais fortes, no caso hospitais psiquiátricos devidamente qualificados, para uma resposta mais adequada às crises agudas de pacientes com sintomas graves.
Emmanuel Souza, psiquiatra e psicanalista, é colaborador na seção Escritos.
- Psicorama -http://www.psicorama.com.br/emfoco_detalhe.asp?ID=17
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