Alvaro Costa e Silva no Jornal do Brasil
RIO - “Bem, suponho que todo escritor respeitável devesse ter um biógrafo inglês”, disse Gabriel García Márquez ao ouvir numa conversa o nome de Gerald Martin, o sujeito que desde 1991 vem escarafunchando a vida dele. Parte dessa investigação apareceu em 2008, com a publicação de Gabriel García Márquez: uma vida, cuja tradução chega às livrarias do Brasil no dia 24 de março. Parte porque, segundo Martin, trata-se de uma versão “compacta”, apesar de suas quase 800 páginas, de uma biografia muito mais longa, provavelmente em cinco volumes, que o inglês pretende publicar no futuro. O autor considera sensato atrasar a tarefa gigantesca enquanto o tema da obra, “agora um homem com mais de 80 anos, ainda está vivo e em condições de lê-la”.
Nos agradecimentos de praxe, Gerald Martin quase pede desculpas: “Um dos fardos e, sobretudo, uma das responsabilidades de se pesquisar uma biografia é que se tem de pedir inúmeros favores a muitas pessoas, que respondem, em sua maioria, com generosidade e boa vontade, ainda que não tenham absolutamente nada a ganhar pelo seu esforço”. Não se trata de elegância britânica. É que ele sabia, desde o início, que a tarefa seria difícil, quase impossível.
Quando começou o trabalho, o biógrafo ouviu de todos com quem conversou: “Você jamais conseguirá vê-lo e, se conseguir, ele não vai cooperar”. A primeira barreira Martin venceu: encontrou pessoalmente o biografado. Mas não se pode dizer que ele estivesse transbordando de entusiasmo, pois falou: “Por que você quer escrever uma biografia? Biografias significam morte”. E como todo mundo e mais a torcida do Real Cartagena sabem, Gabriel García Márquez tem um medo de morrer que se péla.
Mesmo assim, o escritor – homem de imprensa acostumado a valer-se de fontes e a respeitá-las – teve paciência com o inglês. Concordou sob uma condição: “Não me faça fazer o seu trabalho”.
Martin foi em frente e, esperto, inventou um subgênero para definir o que pretendia fazer: “Sempre que me perguntavam se era uma biografia autorizada, minha resposta era a mesma: é uma biografia tolerada”.
Gabriel García Márquez nunca concedeu a Gerald Martin uma “entrevista desarmada e sincera”, com a qual o biógrafo ainda sonha. Tal entrevista seria “uma indecência”, segundo o escritor colombiano – o que soa estranho para um velho repórter.
Pelas contas de Martin, os dois estiveram juntos no total um mês – em tempos diferentes e lugares diversos, de forma privada e pública. Nesse período, Martin ouviu um conselho cascudo: “Apenas escreva o que você vê. Seja lá o que escrever, é o que serei”.
Pegar o fio da meada para fazer Gabriel García Márquez: uma biografia – o autor é o primeiro a admitir – também não foi nada fácil. Gerald Martin teve de decifrar as múltiplas versões que o escritor costuma dar aos momentos importantes de sua vida – sem falar que ele próprio, adiantando-se ao biógrafo, escreveu uma autobiografia, Viver para contar. Como Martin poderia dar melhor o clima do bogotazo – protestos e desordens no centro da capital colombiana que se seguiram ao assassinato do candidato a presidente Jorge Eliécer Gaitán em 1948 – que García Márquez, que estava lá, no meio da turba? Ou narrar a viagem de volta a Aracataca para vender a casa, a famosa casa dos avós, onde ele nasceu – um episódio cheio de significados literários ocultos?
García Márquez – assim como outro grande contador de histórias, Mark Twain – é chegado a invencionices e exageros com sua própria trajetória. No Brasil, chamamos passarinho a essa mentira que arredonda a anedota. Ao mesmo tempo, é brincalhão, antiacadêmico, a favor de mistificações, intrigas e fuxicos, como o descreve o próprio Martin. Na Colômbia, chamam a essa atitude de mamagalismo (alguma coisa entre o debochado e o cafajeste).
Sabendo disso, a pergunta de García Márquez fica ainda mais pertinente: “Por que você quer escrever uma biografia?”.
Porque o inglês é fãzoca, macaca de auditório – de tudo que diga respeito ao criador deMacondo. Martin demonstra uma adoração digna de santo em relação a García Márquez, que é posto nos cornos da lua:
1. Autor mais conhecido que emergiu do Terceiro Mundo;
2. Expoente de uma escola literária, o realismo mágico, que teve milhares de seguidores (entre eles, é citado Salman Rushdie);
3. Romancista latino-americano mais admirado e representativo de todos os tempos;
4. Único grande nome das letras na segunda metade do século 20 a ter conseguido unanimidade (na primeira, são citados Joyce, Proust, Kafka, Faulkner, Virginia Woolf.).
5. Sua obra-prima Cem anos de solidão é um vértice da transição entre a ficção modernista e a pós-modernista;
6. Cem anos de solidão é também o único livro publicado entre 1950 e 2000 que encontrou grande número de leitores em todos os países e em todas as culturas do mundo. É portanto o primeiro romance globalizado;
7. Escritor sério mas ao mesmo tempo popular, que vende milhões de livros (na mesma condição, são citados Dickens, Victor Hugo e Hemingway);
8. Sua celebridade só se assemelha à de atletas, músicos e estrelas de cinema (Pelé é citado);
9. Mais popular ganhador do Prêmio Nobel de Literatura, em 1982;
10. Amigo de François Miterrand, Felipe González, Bill Clinton e Fidel Castro.
Martin, bem à inglesa, acha admirável que tudo isso tenha acontecido a um homem que nasceu “onde o vento faz a curva”, uma cidade com menos de 10 mil habitantes, analfabetos na maioria, com ruas não pavimentadas e sem esgoto. E com um nome – Aracataca – que faz as pessoas rirem quando o escutam pela primeira vez. “Embora” – completa o biógrafo – “sua semelhança com Abracadabra devesse torná-las mais cautelosas”.
Exotismos e deslumbramentos à parte, Martin recupera passagens e depoimentos sobre a infância do escritor que estão intimamente ligados a sua obra. O que a mãe achava do filho? “Gabito sempre foi velho. Quando criança, ele sabia tanto que parecia um homem velho pequenino. Era assim que nós o chamávamos: o velho pequenino”.
Sentava-se ao lado do avô Nicolás Márquez – aquele que matara um homem e dormia com um revólver debaixo do travesseiro – para ouvir as histórias sobre a Guerra dos Mil Dias, a presença da United Fruit Company nas plantações de banana e os horrores da greve de 1928 que terminou em massacre – episódios da história da Colômbia recriados em Cem anos de solidão. Assim como a lembrança de quando o mesmo avô o levou para ver o peixe congelado. Na fala de García Márquez: “Eu o toquei e senti como se ele tivesse me queimando”. E nas palavras da famosa abertura: “Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo”.
Reza a lenda que em 1965, dirigindo um pequeno Opel branco pelas estradas de curvas perigosas de Acapulco, García Márquez começou a ter a cabeça martelada pela primeira frase de um romance. Aquela: “Muitos anos depois....”. Por trás dela, invisível, estava o romance inteiro, como se ele fosse um cavalo e a obra tivesse baixado nele. Muitas são as versões e os detalhes a respeito dessa história, e Gerald Martin não esclarece nenhum deles. Ao contrário, alimenta o mito, ao dizer que “seja lá qual for a verdade, algo misterioso, para não dizer mágico, com certeza aconteceu”.
O livro apresenta uma detalhada descrição do tempo em que García Márquez passou escrevendo Cem anos..., trancado num quarto de sua casa – apelidado de A Cova da Máfia – de junho de 1965 a julho ou agosto de 1966. Desmentindo a lenda do cavalo das letras, o escritor reconheceu que sua maior dificuldade foi começar: “Terminei a primeira sentença e me perguntei, aterrorizado, que inferno viria depois. Até que o galeão fosse descoberto no meio da selva, não achava que o livro chegaria a lugar nenhum. Mas, daquele ponto em diante, a coisa toda se tornou uma espécie de frenesi”.
Ele que em geral escrevia um parágrafo por dia agora estava escrevendo várias páginas. Pregava-se à escrivaninha às 8h30 e ia até 14h30, quando os filhos voltavam da escola. Mercedes, a mulher, teve de lutar para conseguir dinheiro. As reservas haviam acabado. Primeiro, venderam o Opel branco. Quase cortaram o telefone, pela economia e para evitar a interrupção do trabalho. Depois começaram a empenhar tudo: televisão, geladeira, rádio, joias, secador de cabelos, liquidificador, aquecedor. O aluguel e a conta do açougue foram conversados.
Quando enfim o livro ficou pronto, quase não tiveram dinheiro para remeter os originais pelo correio ao editor argentino Paco Porrua, que concordara em publicar o romance no escuro. Mercedes comentou: “Só falta agora o livro não ser bom”.
Um dos maiores méritos de Gerald Martin são seus comentários acerca da obra de García Márquez – o que torna o livro mais próximo de um ensaio biográfico que de uma biografia. Sobre Cem anos..., afirma que o escritor aprendeu “que, em vez de um livro sobre a infância, deveria escrever sobre as memórias da infância. Em vez de um livro sobre Aracataca e sua gente, deveria ser um romance narrado pela visão do mundo daquela gente. Em vez de tentar mais uma vez ressuscitar Aracataca, ele diria adeus, narrando-a não apenas através da visão de mundo de seu povo, mas inserindo no romance tudo o que lhe havia acontecido, tudo que sabia sobre o mundo, tudo que ele era e que personificava como um latino-americano do fim do século 20. Em outras palavras, em vez de destacar a casa e Aracataca do mundo, Gabo colocara o mundo todo dentro de Aracataca. E, acima de tudo, em termos sentimentais, em vez de tentar acordar o fantasma de Nicolás Márquez, ele próprio deveria de algum modo se tornar Nicolás Márquez”.
Da mesma forma, outros toques de Martin iluminam obras não menos importantes como O outono do patriarca, Crônica da morte anunciada, O amor nos tempos do cólera, e uma novela menos badalada, mas de estofo literário superior a Cem anos de solidão, comoNinguém escreve ao coronel.
Mas não há uma visão do García Márquez de carne e osso, sua relação com os pais, a família, a mulher, os filhos, os amigos, os colegas de profissão, o fumo, a bebida, a fama, a solidão da fama. Coisas comezinhas de qualquer vida. Por exemplo, o que ele acha de Roberto Bolaño?
Sobre a amizade com Fidel Castro – que reserva lances inacreditáveis: a vez em que o escritor serviu de guarda-costas para o ditador numa visita à Colômbia – não há explicação. Mas neste caso Gerald Martin não tem culpa se, diante do barbudo, García Márquez usa antolhos.
A briga com Mario Vargas Llosa é bom exemplo do que falta ao livro. Os dois, na época do chamado boom da literatura latino-americana, nos anos 60, tornaram-se amigos de fé, camaradas. O peruano escreveu o catatau García Márquez: historia de un deicidio, um estudo ficcional orientado em termos biográficos, que Martin considera até hoje o melhor livro já escrito sobre o colombiano e fonte fundamental de referência.
Em 12 de fevereiro de 1976, na Cidade do México, Gabriel García Márquez compareceu àpremière do filme Os sobreviventes dos Andes. Ao chegar, Mario Vargas Llosa – que escrevera o roteiro – estava de pé no foyer do cinema. García Márquez abriu os braços e exclamou: “Irmão!”. Sem sequer uma palavra, Mario, “um consumado boxeador” (esta informação espantosa é de Martin), derrubou-o com um soco.
A essa altura do fato, Martin começa a especular: com o colombiano semiconsciente no chão, o peruano gritou: “Isso é pelo que disse a Patricia”. Ou: “Isso é pelo que fez a Patrícia”. Ora, são coisas bem diferentes.
Escreve o exagerado e impreciso inglês: “Esse se tornaria o soco mais famoso na história da América Latina, ainda sujeito a ávidas especulações até hoje. Houve várias testemunhas, e existem muitas versões, não apenas sobre o que de fato aconteceu, mas sobre o motivo”.
Continua Martin: “Dizem que o casamento de Vargas Llosa passou por um momento difícil em meados dos anos 70, e que García Márquez se arvorou para consolar a mulher ressentida e pertubada de Mario. Outros dizem que fez isso aconselhando-a a iniciar os procedimentos do divórcio; outros, que o conforto foi mais direto. É evidente que Mario concluiu García Márquez colocara a preocupação por Patrícia na frente da amizade entre os dois. Apenas Patricia Llosa sabe o que disse ao marido quando os dois se reconciliaram. Em outras palavras, somente ela sabe a história inteira”.
Ao menos Gerald Martin reconhece que alguém sabe a verdade
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