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sexta-feira, 9 de abril de 2010

"A Aurelio González, pela confiança de que haveria futuro"


O fotógrafo uruguaio produziu, entre as décadas de 50 e 70, cerca de 70 mil instantâneos para o jornal comunista El Popular. Nas imagens, estão histórias de luta da sociedade uruguaia até o início da ditadura, quando o próprio Aurelio foi obrigado a deixar o país. Antes de partir, escondeu todos os negativos entre dois andares do Edifício Lapido, em Montevidéu, onde funcionava o periódico. Não poderia imaginar que o lugar sofreria uma grande reforma durante o exílio no México. Na volta, nada encontrou. Mas, em 2006, reencontrou de forma mágica um pedaço da história de seu país. O artigo é de Clarissa Pont.

"A Aurelio González, pela confiança de que haveria futuro". A inscrição está na parede da sala de Aurelio e a homenagem é da Associação de Imprensa do Uruguai. O fotógrafo uruguaio produziu, entre as décadas de 50 e 70, cerca de 70 mil instantâneos para o jornal comunista El Popular. Nas imagens, estão histórias de luta da sociedade uruguaia até o início da ditadura, quando o próprio Aurelio foi obrigado a deixar o país. Antes de partir, escondeu todos os negativos entre dois andares do Edifício Lapido, em Montevidéu, onde funcionava o periódico. Não poderia imaginar que o lugar sofreria uma grande reforma durante o exílio no México. Na volta, nada encontrou. A história poderia terminar aí se, em 2006, Aurelio não tivesse reencontrado de forma mágica, como ele define, a história do país, que se confunde com a dele próprio. 

“Sou um espanhol nascido em Marrocos que chegou aqui de polizón no Andrea C”, assim Aurelio define a própria nacionalidade e resume a chegada no Uruguai, trazido clandestinamente no navio italiano que atracou no Puerto Marítimo de Montevideo no dia 14 de novembro de 1952. Com a roupa do corpo e nenhum documento no bolso, Aurelio rodou a cidade durante uma semana até que, na Avenida 18 de Julho, viu o letreiro da Casa de Espanha e um cartaz que convidava para um ato político. Ali, encontrou os seus: um grupo de espanhóis antifranquistas. “Além da solidariedade, consegui um lugar para viver, me arrumaram trabalho. Havia um senhor espanhol chamado Lucio, que precisava de cuidados. Tuberculoso e fotógrafo. Cuidei dele e ele me ensinou a fotografar”.

Das reuniões antifranquistas até o fotojornalismo militante para o Partido Comunista uruguaio, foi um pulo. Em 54, Aurelio começou a trabalhar no Justicia, periódico oficial do partidão. “Comecei a colaborar. Fazia fotos e entregava fotos. Tinha aprendido a fazê-las, mas não era fotógrafo de imprensa, estava só aí, fotografando e revelando”. Logo veio o El Popular, diário sucessor do Justicia que nasceu com o objetivo claro de dar voz e imagem “àquelas pessoas pobres do Uruguai, a gente que vivia do seu salário, de seu trabalho”. Aurelio estava lá, câmera em punho, nas greves, nos sindicatos, com os trabalhadores. As Zenits chegavam de presente da União Soviética. “Deixavam muito a desejar. Como não tínhamos outras, sacávamos as fotos mesmo assim”. A situação só melhorou quando a Alemanha Oriental começou a fabricar as Prakticas. Os filmes Kodak eram comprados em rolos de 30 metros e chegavam em latas.

Em 27 de junho de 1973, o presidente uruguaio Juan María Bordaberry, apoiado por militares, decretou a dissolução do parlamento e a instalação de um Conselho de Estado. A ditadura militar no Uruguai seguia o exemplo do que acontecia em toda América Latina. Desde então, o diretor do El Popular e Aurelio, então chefe da fotografia, procuravam um esconderijo para os arquivos do jornal.

“Os 70 mil negativos estavam perdidos”
Edifício Lapido, esquina da Avenida 18 de Julho com a Rua Rio Branco, centro de Montevidéu. No dia 6 de julho de 1973, Aurelio se esgueirou entre o térreo e o primeiro andar da construção com 70 mil negativos dispostos entre latas de filme Kodak e uma grande mala de couro. Três dias depois de garantir o esconderijo para o arquivo fotográfico, as forças armadas invadiram a redação do El Popular. Aurelio foi preso, solto e passou ainda três anos em Montevidéu, com medo da própria sombra. Carregava consigo apenas os rolos de filme da Greve Geral, convocada pela Convención Nacional de Trabajadores, espécie de central sindical uruguaia, que repercutiu com ocupações de locais de trabalho, escolas, universidades, hospitais, fábricas e comércio. Durante quinze dias, os trabalhadores sustentaram uma das mais firmes e prolongadas ações contra a máquina de ditaduras que avançava sobre o território latinoamericano. “Três anos depois, quando saí para o exílio no México, levei estes negativos comigo. Eles foram a minha denúncia do que estava acontecendo no Uruguai”. O exílio de Aurelio no México durou nove anos. 

“Quando retornei a Montevidéu, fui ver se o Lapido ainda existia. O prédio estava lá, passei a mão em uma parede e perguntei se nosso segredo estava bem guardado. Treze anos depois, era como se o prédio fosse uma noiva que eu havia deixado por todos aqueles anos e agora reencontrava”. Aurelio entrou nas galerias comerciais que formavam o andar térreo e foi surpreendido. Depois de uma reforma, o primeiro andar inteiro estava transformado em uma garagem. “Fiquei mudo. Subi no andar de cima e fui procurar o lugar onde estavam escondidas as latas. Não encontrei nada, 70 mil fotogramas perdidos. Todo o arquivo do periódico, de 1954 até 1973. Depois comecei a pensar que uma coisa dessas não poderia desaparecer assim. Minha política era perguntar aos conhecidos que haviam ficado no Uruguai: Ouviram falar de alguém que encontrou uns negativos¿ Eu falava que havia escondido, mas não contava onde. Dizia que não lembrava e sempre que encontrava alguém, voltava com esse assunto”.

Em março de 2006, o Centro Municipal de Fotografia e a Prefeitura de Montevidéu organizaram uma exposição em homenagem a Aurelio. As principais fotos que seriam ampliadas eram as da Greve Geral. Aurelio passava bastante tempo no Centro, organizando o arquivo e selecionando fotos para a exposição. “Eu estava lá trabalhando, quando vi que todos os fotógrafos pararam como se recebessem uma autoridade”. Era o prefeito de Montevidéu, Ricardo Ehrlich. “Eu disse a ele que precisava de um favor, queria marcar uma reunião”. Ehrlich, surpreso, pediu que um assessor marcasse o encontro. Aurelio não explicou o motivo e Ehrlich tampouco perguntou. “Depois, todos me perguntavam o que eu queria com o prefeito. Contei a história dos negativos que estavam extraviados desde 1973. Eu queria plantear uma autorização para colocar abaixo aquele prédio. Todos riram. Na verdade, queria permissão para esburacar a reforma e tentar encontrar alguma coisa”.

No mesmo dia, Gabriel García, também fotógrafo, deixou o Centro com a história de Aurelio na cabeça. Encontrou Pablo La Rosa, fotógrafo do El Observador de Montevidéu, e reproduziu a história que acabara de ouvir. “A redação do Popular era no Lapido, não? Meu irmão costumava guardar o carro na garagem e contou que um menino lhe disse que havia encontrado uma lata de negativos ali. Não será isso?”, disse Pablo. Os dois seguiram juntos até a esquina da 18 de Julho com a Rio Branco e perguntaram pelo menino que trabalhava ali e encontrara uma lata de filmes Kodak antiga. Quique, por final, trabalhava em outro estacionamento, a poucos passos dali. A lata estava enrolada em uma sacola plástica dentro da mochila de Quique. Gabriel abriu o rolo e colocou contra a luz. Eram imagens de manifestações populares. Eram os negativos de Aurelio. 

Ninguém teve coragem de telefonar. “Eles achavam que eu ia ter um troço. No dia seguinte, fui até o Centro trabalhar nas fotos da exposição e estavam todos me esperando. Puxaram uma cadeira e me disseram para sentar. Disseram: Aurelio, Gabriel saiu ontem e encontrou o arquivo do Popular”. As latas e alguns negativos soltos foram encontrados em um duto de ventilação, longe de onde Aurelio os tinha escondido na década de 70. O que aconteceu no Edificio Lapido neste intermezzo, ninguém sabe. Aurelio gosta de imaginar. Criou para si a figura mítica do homem que escondeu o segredo melhor que ele próprio e salvou os negativos. “Imagine que você é um trabalhador da construção civil durante a ditadura militar. Vai fazer uma parede e encontra latas e uma mala fechada. O que você iria pensar? Aqui há um tesouro! Imagine a decepção deste homem quando abriu a mala e as latas e encontrou apenas negativos. Mas este operário pensou em todos outros trabalhadores que enfrentavam a ditadura e pensou que ali existia a redação de um jornal que se chamava El Popular e esses negativos não estão aqui por acaso. Vou escondê-los ainda melhor”.

O resgate das latas e dos rolos que estavam soltos foi uma operação complicada. Gabriel e Aurelio pescaram cada lata com um imã preso no final de um cabo. “No primeiro dia, resgatamos 47 latas cheias de negativos. Abri a primeira e encontrei o rosto de um companheiro que trabalhava comigo, a ditadura o manteve sete anos preso. Quando vi Ismael era como se estivéssemos conversando”. No dia seguinte, o dono do estacionamento impediu que Aurelio seguisse retirando as latas. Depois de numerosas negociações, que contaram com a ajuda do prefeito Ricardo Ehrlich, o grupo conseguiu voltar ao Lapido. Alguns negativos permanecem até hoje no duto. “Faltam alguns muito importantes. Muitos foram recuperados, mas a visita do Che a Punta del Este que eu acompanhei por 15 dias não foi encontrada, as fotos de quando Fidel esteve em Montevidéu, em 1959. No Centro Municipal, existem ainda muitos negativos nos quais não posso nem tocar, eles trazem gente especial com líquidos especiais para tratar os rolos que estavam soltos no duto. Tudo que estava dentro das latas se manteve intacto”.

“É uma história romântica. Nem todos os dias alguém consegue resgatar a história do próprio país em imagens”. Aurelio tem razão. “Esses negativos têm amor, eu tenho carinho por eles. As forças da repressão me pegaram por poucos dias, o que eles queriam era o arquivo fotográfico do El Popular. E eu dizia que não sabia onde estava. Asseguro a ti que se me dissessem para escolher entre os negativos ou a vida, eu sentiria como se estivesse entregando meu filho ou minha mulher. Esses negativos têm alma”, completa.

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