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segunda-feira, 3 de maio de 2010

Gestão de riscos ou crônica da morte anunciada



Na primeira semana de Abril os moradores do Rio de Janeiro acordaram com a cidade alagada, muitos deles sem ter conseguido chegar a suas casas desde a noite anterior.
Faltou luz em vários bairros do Rio e Niterói, como conseqüência faltou água, os telefones e celulares deixaram de funcionar com as baterias descarregadas, os ônibus e outros meios de transporte coletivo pararam de funcionar. Esse cenário de caos urbano que se assemelhava a um terrível filme de ficção transformou-se de imediato em um filme de terror quando começaram a circular as informações e imagens de inúmeras pessoas que foram soterradas sob os escombros de suas casas, em baixo de toneladas de lama e do lixo sobre o qual haviam construído suas habitações. Não se tratava de barracos de madeira ou zinco que foram soterrados, mas sim de casas de alvenaria, ruas, creches, igrejas, um bairro, muitas vidas.
A tragédia do Morro do Bumba em Niterói, onde um bairro fora construído sobre um antigo lixão deixou muitas vítimas fatais, inúmeras pessoas desabrigadas e muitos traumatizados. Em menor escala, o mesmo ocorreu em São Gonçalo e em outras partes do Rio de Janeiro, como no Morro dos Prazeres em Santa Teresa, na Rocinha, no Alemão. Posteriormente, as chuvas fizeram estragos semelhantes em vários estados do Nordeste.
A população seguiu com admiração e compaixão o trabalho heróico dos bombeiros, que buscava atenuar os danos da tragédia sobre uma população desamparada que assistira a seus entes queridos, vizinhos, amigos e estórias de vida serem tragados pela lama e pelo lixo.
Algumas instituições tiveram seu trabalho criticado como a defesa civil, outras se mobilizaram para prestar atendimentos jurídicos ou sanitários aos desabrigados, autoridades governamentais estiveram presentes em alguns casos embora demonstrando sua perplexidade diante da situação enquanto outras ou se ausentaram ou demonstraram sua total inépcia para o exercício da autoridade pública em prol da comunidade. A sociedade organizada que em décadas anteriores conseguira mobilizar milhares de pessoas em campanhas como o combate à fome não demonstrou a mesma capacidade de dar uma resposta organizada ao caos que se instaurou na cidade.
Restou a solidariedade individual de milhares de cidadãos, que mesmo temendo a volta da chuva, a corrupção e o desvio de doações, a ignorância e a quase total ausência de orientação sobre como melhor ajudar naquele momento, arregaçaram suas mangas e decidiram agir da melhor forma que puderam. Mesmo com o apoio dos meios de comunicação, que conseguiram ir além do espetáculo do horror, fornecendo informações sobre vias bloqueadas e outras de igual relevância, não havia um comando central que organizasse esse trabalho de formigas da população solidarizada com as vítimas, canalizando as múltiplas formas de ajuda para os locais mais adequados. Havia postos de coleta de donativos, mas não se sabia como uma pessoa poderia trabalhar como voluntário, cuidando de crianças e idosos, por exemplo.
Passados alguns dias do ocorrido, a vida vai voltando ao normal: fala-se cada vez menos na situação dos desabrigados, algumas medidas estão sendo divulgadas como a construção de um novo bairro em Triagem que abrigará os desabrigados do Rio de Janeiro enquanto outros, no Rio e em Niterói, passaram a receber aluguéis sociais. Estas medidas louváveis não foram objeto de um planejamento anterior, portanto não se sabe seu impacto, por exemplo, sobre o mercado de imóveis populares, nem mesmo qual seria a dimensão deste mercado e a sua capacidade de absorver esta população. Por outro lado, nem todos já foram contemplados com estas medidas e sabe-se que algumas pessoas começam a voltar a suas casas que estão condenadas, enquanto outras continuam instaladas em abrigos precários e sem saber o que será feito de suas vidas.
Este episódio reascendeu o debate sobre a remoção versus urbanização de favelas. Alguns estudiosos chegaram a usar o exemplo do bem que fez a remoção da Favela do Pinto na Lagoa, o que permitiu a valorização dos imóveis nesta área nobre da cidade.
No entanto, diferentemente dos debates anteriores, por primeira vez a discussão se encaminhou para a questão central que diz respeito não à remoção, mas à realocação das pessoas removidas.
Este fato mostra a evolução da política pública no tratamento do tema das favelas, depois da Constituição Federal de 1988. Da preocupação básica com a erradicação das manchas representadas pelas favelas em prol da saúde urbana, a política pública passou a partir da década de 90 a se voltar para a busca dos meios de inserção destas comunidades na rede urbana da cidade. A associação entre os territórios de ocupação
irregular com a ausência do poder público e o domínio da coerção dos traficantes ou milicianos e a percepção da ameaça que este fato representava, cada dia mais, para o conjunto do tecido social urbano marcou os rumos da política recente. Maiores investimentos urbanos e sociais foram destinados às favelas, associados à ocupação destes territórios com unidades policiais pacificadoras. As favelas e periferias deixavam, progressivamente, de ser o espaço da política miúda, da troca de favores representada pelos votos em um vereador em busca de alguma melhoria para a comunidade, para entrar na agenda política governamental como prioridade.
Não se pode negar a evolução do tratamento da questão das favelas nesta trajetória, desde a remoção por meios coercitivos até a busca da urbanização e integração destes territórios à cidade, o que só pode ser viabilizado pela presença do Estado como poder público que se exerce de forma igualitária tanto no asfalto quanto na favela. Por esta razão, a tentativa imediata de mero retorno à política de remoção foi fortemente repudiada por estudiosos e movimentos sociais.
No entanto, a gravidade da situação mostrou que não se pode tolerar a omissão do poder público que permite a construção de bairros urbanizados em cima de lixões ou a construção de habitações em situações de alto risco. Foi preciso uma calamidade como esta para alertar os governantes sobre suas responsabilidades com relação à garantia de uma vida com dignidade nas cidades. Mas, ainda é preciso ir além da visão esquemática da falsa polarização proposta neste debate e assumir a complexidade do planejamento urbano, que não apenas envolve a decisão sobre urbanização ou remoção de favelas, mas deve ser acompanhado de políticas habitacionais de acesso à população mais carente, em áreas dotadas de infra-estrutura urbana e social, além de condições de transporte coletivo. É preciso repensar a cidade como um todo, encontrar áreas públicas ou privadas disponíveis para construção de bairros que revitalizem áreas abandonadas ou degradadas. Não será preciso obrigar a população a se mudar das áreas de risco se forem oferecidas estas condições para que cada cidadão e cada comunidade exerçam o seu direito de decidir livremente onde morar.
A moradia em uma área de risco não é uma opção, é uma fatalidade. No entanto, os seres humanos que ali habitam criam seus laços e vínculos sociais, culturais e econômicos que não podem ser desconsiderados. Por isso, a questão envolve múltiplos aspectos e deve ser equacionada a partir da condição de exercício da cidadania, ou seja, da autonomia de decisão diante de opções e contingências que são dadas, mas também da obrigação de respeitar os limites impostos por aqueles que são responsáveis por zelar pelo bem estar coletivo. Mas, os agentes privados não estão isentos de responsabilidades, pois os indivíduos que ali habitam são empregados, faxineiras, desempregados e subempregados, de um mercado que se opõe fortemente às políticas de proteção ao trabalhador e aumento do salário mínimo.
Portanto, trata-se da necessidade de pensar a cidade como um todo, o que exige um modelo de planejamento de médio e longo prazo, uma integração produtiva entre diferentes áreas das políticas, uma frutífera colaboração entre academia, movimentos e organizações sociais, representações comunitárias. Além disso, é preciso assegurar o envolvimento de autoridades dos três níveis governamentais, que possibilite os recursos necessários à implementação das políticas. No entanto, nenhuma sociedade está isenta do enfrentamento de situações de crise, que devem ser, na medida do possível, evitadas e previstas por este poderoso e democrático sistema de planejamento. Portanto, ao lado deste sistema, é necessário pensar outro mecanismo integrado e eficiente de gestão de riscos em situações de crise. A gestão de riscos é um campo de estudos e de políticas que envolve múltiplas disciplinas e objetos diversos, tais como o terrorismo, as pandemias, a degradação ambiental, a escassez de energia, etc.
As escolas de administração e planejamento, os agentes governamentais, o setor privado, o voluntariado, os movimentos sociais, são alguns dos atores que devem estar envolvidos nesta grande tarefa de gestão coordenada de riscos, cada vez mais imprescindível para evitar situações de crise, minimizá-las e também saber como lidar com elas quando seja necessário.
Se estas providências não forem tomadas, assistiremos, mais uma vez, à triste crônica de uma morte anunciada. 

Sônia Fleury é Doutora em Ciência Política, Professora Titular da EBAPE/FGV onde coordena o PEEP- Programa de Estudos da Esfera Pública
http://www.ebape.fgv.br/pp/pee
Boletim de Conjuntura/2010

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