Repórter especial, faz parte da equipe de ÉPOCA desde o lançamento da revista, em 1998. Escreve sobre medicina há 14 anos e ganhou mais de 10 prêmios nacionais de jornalismo
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A saúde é a maior preocupação dos brasileiros. Esse foi o espírito captado por uma pesquisa encomendada ao Instituto Ibope pelo Movimento Todos pela Educação. Para 63% dos entrevistados, a saúde deveria ser a prioridade número 1 do próximo presidente. Nesses tempos de corrida presidencial, vamos ouvir os candidatos falando bastante sobre saúde. Nenhum deles, porém, terá coragem de dizer que o Brasil não tem condições de oferecer tudo a todos. Quem disser isso não se elege nem para síndico de prédio. Pois eu votaria nesse sujeito.
"Em algum momento, alguém vai ter de assumir o ônus político de dizer que não é possível oferecer tudo a todos", diz o professor Marcos Bosi Ferraz, coordenador do Centro Paulista da Economia da Saúde, da Unifesp. "Nenhum país dá tudo a todos."
Quem administra o próprio dinheiro – o salário ou as contas da casa, por exemplo – sabe que orçamentos não são elásticos. Eles não crescem sozinhos sempre que surge uma nova demanda. Pelo contrário. Novas necessidades (em geral, urgentes e inesperadas) sugam o nosso dinheiro. Se um filho fica doente ou se precisa de um casaco novo, os reais necessários para atendê-lo farão falta em outro setor da vida doméstica. A compra do supermercado terá de ser encolhida, os passeios da família serão reduzidos e assim por diante. Não existe milagre. Se apareceu uma despesa nova, o dinheiro para cobri-la sairá de algum lugar. E fará falta naquele lugar.
Qualquer criança que guarda o dinheiro no cofrinho sabe disso. Mas nós, povo brasileiro, gostamos da ilusão de achar que, na saúde, temos direito a tudo. Não é isso que está no papel? A Constituição de 88 criou o Sistema Único de Saúde (SUS), um belíssimo instrumento de inclusão social. Antes do SUS, milhões de brasileiros não tinham direito a atenção alguma. Quando ficavam doentes podiam recorrer a quem quisessem (ao padre, à benzedeira, às ervas) – menos ao Estado. Em 1988 isso mudou. O Brasil decidiu que a "saúde é direito de todos e dever do Estado".
Isso significa que o SUS deve atender a qualquer demanda do indivíduo? Qualquer uma? Se um cidadão precisar usar um remédio de R$ 50 mil por mês para tratar um câncer terminal, o Estado deve oferecê-lo? Mesmo que para isso seja necessário suspender o tratamento de dezenas de hipertensos que recebem um tratamento barato?
Não há resposta fácil. Principalm ente quando os doentes em questão deixam de ser meros números e passam a ser as pessoas mais importantes da nossa vida. Como pensar friamente nos custos que a sociedade terá de pagar por determinado tratamento se a pessoa necessitada é o nosso filho? Ou o nosso pai, mãe, marido etc.
Se o assunto é espinhoso e impopular, melhor deixar tudo como está. Acho que é isso que os políticos pensam. Principalmente os candidatos à presidência da República. Ou seja: vamos deixar a classe média continuar entrando na Justiça para conseguir as drogas mais caras e modernas enquanto os pobres morrem sem o básico do básico. Sem sequer saber que tinham direito a alguma coisa.
Como não sou candidata a nada – sou apenas uma cidadã que paga impostos como todo brasileiro – gostaria que essas iniquidades fossem reduzidas. Não me parece justo que só quem grita mais, quem conhece seus direitos, quem pode pagar um advogado seja socorrido.
- Não tenho dúvidas de que falta dinheiro para cuidar da saúde dos brasileiros. Nosso primeiro impulso quando ouvimos isso é dizer que "se os corruptos parassem com a roubalheira, sobraria dinheiro". Devemos combater a corrupção sempre, em todas as áreas. Mas só isso não basta. Mesmo que não houvesse um único corrupto no Brasil, ainda assim o dinheiro da saúde não seria suficiente para atender a todos os nossos anseios por novas drogas e tecnologias.
É verdade também que o dinheiro é mal gasto. Muita coisa pode ser feita para melhorar a gestão dos recursos da saúde no Brasil. Ainda assim, o melhor sistema possível de gestão financeira não daria conta dos nossos desejos ilimitados.
Entre 2005 e 2009, o número de ações contra o Ministério da Saúde (para fornecimento de remédios que não estão nas listas do SUS) cresceu seis vezes. O gasto com a compra desses remédios saltou de R$ 2,4 milhões para R$ 52 milhões.
< br />Quem pagou essa conta? Certamente quem estava no elo mais fraco da cadeia. A prova de que o SUS não é capaz de oferecer tudo (ilimitadamente) a todos é a precariedade do atendimento básico que vemos em tantos pontos do país. Quando entra uma despesa nova, um jeito de racionar os recursos é fechar a torneira do atendimento. A forma mais simples de racionamento é excluir parte da população do acesso à saúde. Ou criar barreiras que o dificultem (longas filas para conseguir marcar uma consulta, espera de meses para realizar um exame, distribuição irregular de medicamentos). Os brasileiros conhecem bem essa prática.
Gostaria que essas escolhas fossem mais transparentes. Acho que a sociedade deveria estabelecer – depois de muita discussão – quais são os procedimentos de alto custo que o SUS deve e quais são os que ele não deve oferecer. Essa lista deveria ser conhecida de todos. Todos, indistintamente, deveriam saber quais são os limites de seus direitos. Em contrapartida, o dinheiro economizado seria investido na melhoria do atendimento básico de saúde. Todo cidadão teria direito a um pacote básico – com total qualidade. E abriria mão da ilusão de achar que o Estado está oferecendo tudo a todos (do esparadrapo ao transplante) quando, na verdade, não está.
É possível que você, se leu esse texto até aqui, esteja com raiva de mim. É possível também que concorde plenamente comigo. Como disse lá no começo, esse tema é dificílimo. É daquelas polêmicas que político nenhum quer comprar. Só porque o assunto é polêmico devemos fingir que ele não existe? O custo de fingir que ele não existe é ver a saúde brasileira piorar ainda mais.
Esse tema provoca reações apaixonadas porque cria uma tensão entre o direito individual e o interesse coletivo. O Brasil precisa assumir essa tensão e encará-la de frente. A Inglaterra, por exemplo, criou em 1999 o Instituto Nacion al para a Saúde e a Excelência Clínica (Nice). O órgão avalia os custos e os benefícios dos produtos de saúde a partir de critérios claros. Também realiza reuniões com representantes da sociedade (pacientes, médicos, indústria farmacêutica) para debater o que deve ou não ser oferecido pelo National Health Service (NHS), o sistema que banca 95% de toda a atenção à saúde no país. O que o Nice decidiu está decidido. Todos têm direito ao que está na lista. Ninguém recebe o que estiver fora dela.
É claro que as decisões do Nice deixam pessoas descontentes (e outras contentes). Um sistema como esse faz todo sentido na Inglaterra, a terra do utilitarismo. Ou seja: da ética baseada nas obras de filósofos e economistas do século XVIII, segundo a qual uma ação é moralmente correta se tende a promover a felicidade. Não só a felicidade do agente da ação, mas também a de todos afetados por ela. O objetivo do Nice é cristalino: aplicar os r ecursos limitados de forma a garantir ao maior número possível de cidadãos a maior quantidade de anos de vida vividos com qualidade. O interesse coletivo, portanto, é colocado acima do individual.
A cultura brasileira é outra. O Brasil é a terra do paternalismo. Gostamos de pensar que, nos momentos mais difíceis, sempre haverá um protetor para passar a mão na nossa cabeça. No âmbito da saúde, aceitamos a ilusão de que o Estado cuida de tudo e pode nos oferecer tudo. Evitamos as discussões duras. Se algo der errado, se uma doença pegar a família de surpresa, sempre haverá o recurso de enviar uma carta ao presidente.
(Cristiane Segatto).
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