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domingo, 27 de fevereiro de 2011

Duas entre 10 casas estão no limbo

No ritmo atual, Brasil levaria 500 anos para regularizar os 12 milhões de domicílios informais. Prefeituras não sabem o que fazer


POLLIANNA MILAN na gazeta do povo
O Brasil tem hoje 12 milhões de domicílios em áreas irregulares na zona urbana. Ou seja, duas em cada dez residências brasileiras não têm qualquer regularização fundiária. O problema, já antigo, aumentou principalmente nas décadas de 30 e 50, quando houve um grande êxodo do meio rural para as cidades. A regularização de lotes urbanos anda a passos lentos porque esbarra, segundo especialistas, no desconhecimento das prefeituras sobre como proceder, na falta de vontade política e no preconceito. Nos últimos seis anos, apenas 136,7 mil títulos foram registrados. Nesse ritmo, o país levaria 500 anos para tirar essas residências do limbo social e jurídico. A expectativa, porém, é de que novas legislações em vigor acelerem o processo.

Viver na informalidade é um problema social e econômico enfrentado por Joanita Ferreira dos Santos e Joelma Aparecida da Rocha. A primeira, como ela mesma define, vive no improviso tanto em casa como no comércio que montou no mesmo espaço. “Nosso processo de regularização não tem data para sair, por isso não sei qual será a metragem certa do meu terreno. Tenho medo de começar a construir tudo certinho e depois ter de derrubar. Fiz o básico, por enquanto, para poder sobreviver com meus dois filhos”, afirma.

Joelma foi mais corajosa. Mesmo sem o título, mas depois de a prefeitura confirmar a metragem do terreno, investiu tudo o que pode e conseguiu levantar a tão sonhada casa de dois pisos. A situação poderia estar melhor se ela conseguisse um financiamento para comprar o material para o acabamento. “Você fica de mãos atadas porque não é oficialmente a proprietária”, comenta.
Walter Alves/Gazeta do Povo
Walter Alves/Gazeta do Povo / <b>Nos passos dos pais - </b>Os pais de Joelma invadiram uma área em Curitiba quando vieram do interior do Paraná e hoje são donos do próprio imóvel. Já ela, depois de separada, seguiu os mesmos passos e achou um terreno barato numa área de invasão no Sítio Cercado. “Aqui tinha uma casa de madeira que pegou fogo. Guardei dinheiro e consegui construir esta casa (uma meia água nos fundos do lote), mas preciso de um financiamento para terminar. Não consigo porque ainda não sou proprietária do terreno.”Ampliar imagem
Nos passos dos pais - Os pais de Joelma invadiram uma área em Curitiba quando vieram do interior do Paraná e hoje são donos do próprio imóvel. Já ela, depois de separada, seguiu os mesmos passos e achou um terreno barato numa área de invasão no Sítio Cercado. “Aqui tinha uma casa de madeira que pegou fogo. Guardei dinheiro e consegui construir esta casa (uma meia água nos fundos do lote), mas preciso de um financiamento para terminar. Não consigo porque ainda não sou proprietária do terreno.”
Desconhecimento é regra geral
Pergunte a um morador o que ele deve fazer para regularizar o terreno onde vive e a resposta será a mesma que muitas prefeituras costumam dar: é possível, mas é complicado e demora anos. Para o advogado Luís Portella Pereira, professor de Direito Imobiliário e Urbanístico, as pessoas costumam falar isso porque não sabem como fazer e quais instrumentos usar. “O direito urbanístico é algo novo que começou a crescer no país só recentemente. Por isso muitas prefeituras não sabem como agir”, afirma.
“Esta agenda é nova na política pública e o conhecimento vem sendo construído. Não é como uma sala de aula, mas é aprendendo a operar na prática mesmo”, diz a gerente de regularização fundiária da Secretaria Nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades, Ana Paula Bruno. O preconceito é outro fator que prejudica a celeridade do processo.
“Se regularizamos, muitos enxergam isso como um incentivo para que as pessoas continuem fazendo mal feito, porque sabem que depois será aprovado. Mas não é bem assim”, afirma a arquiteta e urbanista Maria Lú­­­cia Refinetti Martins, do Labo­­­ratório de Habitação e As­­­sen­­­tamentos Urbanos da Univer­­­sidade de São Paulo (USP). Ao invés de deixar na informalidade, Pereira lembra que é necessário regularizar para que a própria prefeitura não incentive novas irregularidades.
“Se essa população não consegue energia elétrica, por exemplo, vai fazer o famoso gato. Gera-se uma outra informalidade que é paga por toda a comunidade. Por isso, defendo que vamos fornecer endereço sim, vamos cadastrar e regularizar. E quem deve fazer isso são as prefeituras. Não dá para onerar quem já não tem nada”, diz o advogado.
Mais empecilho
A população que depende das prefeituras para regularizar a área enfrenta outro problema: a disputa entre as secretarias, causada muitas vezes por disputas partidárias. “Por incrível que pareça, essa comunicação entre as secretarias é difícil em qualquer município. O secretário lotado na Habitação é de um partido diferente do da Secretaria de Planejamento. Já vi os dois brigando para ver quem entregava o título porque isso poderia render votos no futuro”, diz Pereira. A solução seria criar uma única secretaria, a da regularização fundiária, ou centralizar as decisões com o prefeito.
“É preciso ter um engenheiro, um assistente social e um advogado e, então, se resolve o problema”, diz. Mas não é só fornecer o título. Pereira lembra que regularizar é acima de tudo dar condições sociais e urbanas para essa população. “Mas não dá para aplicar o conceito de plano diretor de uma cidade, cheio de regras [recuo e distanciamento de divisas, por exemplo], para áreas invadidas, porque senão não se regulariza nunca.” (PM)
Entrevista
Problema persiste por falta de incentivo à legalidade
A história das ocupações irregulares no Peru se deu de maneira diferente que no Brasil. Lá, as terras invadidas pertenciam principalmente ao Estado e, na América Latina de um modo geral, a maioria das irregularidades não existiu por ocupação ilegal, mas sim porque a população fez subdivisões de terras sem permissão ou edificações sem autorização. “O problema também atingiu as heranças que não foram bem divididas, as cadernetas de transferência não escritas no registro de imóvel ou por duplicidade de direitos escritos no registro”, afirma a gerente do Instituto de Liberdade e Democracia do Peru (IDL), María del Carmen Delgado Menéndez.
Quem é o dono, afinal?
z A grande dificuldade no Brasil sempre foi comprovar que a pessoa que ocupa um terreno é quem tem direito a ter o título da propriedade. Isso porque antigamente muitos dos que fizeram os loteamentos simplesmente venderam os terrenos (alguns inclusive sem delimitação exata de divisa), pegaram o dinheiro e foram embora. “Esses loteadores deixaram essa população compradora à mercê de tudo”, afirma a arquiteta e urbanista Maria Lúcia Refinetti Martins.
O Estado é o responsável por ajudar pessoas como elas, pois a moradia é um direito social garantido pela Constituição. O Estatuto da Cidade, de 2001, encarrega as prefeituras de tratar da questão. O problema, porém, começa bem antes. Historicamente, as cidades incharam e não houve um planejamento para que a população de baixa renda também tivesse a oportunidade de adquirir um lugar para morar, o que seria, literalmente “cortar o mal pela raiz”.
“A irregularidade acontece quando não há alternativa de moradia formal. Essas pessoas não tinham condições de comprar uma casa no mercado imobiliário e não existia, na época, uma política pública adequada para a renda dessas famílias”, afirma a gerente de regularização fundiária da Secretaria Nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades, Ana Paula Bruno. Quem, na época, conseguiu pagar aluguel, o fez, os outros foram atrás de uma área “desocupada”.
“Se você não tem recurso para nada e está entre a opção de dormir na rua ou montar uma barraca na encosta do rio, é preferível montar a barraca. O governo também não se preocupou, durante a migração, em dar condições para as pessoas permanecerem no campo”, diz a arquiteta e urbanista Maria Lúcia Refinetti Martins, do Laboratório de Habitação e Assentamentos Urbanos da Universidade de São Paulo (USP).
Depois de uma grande sequência de loteamentos e ocupações irregulares criadas no país, o que as prefeituras têm feito são experiências isoladas de regularização, muitas delas bastante tímidas. A Companhia de Habitação do Paraná (Cohapar), que ajuda os municípios que não têm um setor de habitação bem estruturado, até hoje não contabilizou nenhuma entrega de registro de propriedade para áreas urbanas irregulares. As iniciativas que existem ainda são novas e não foram concluídas.
“Temos uma área em Piraquara que não consideramos como o melhor lugar para as pessoas viverem, mas pelo fato de a comunidade estar consolidada por ali, vamos dar condições a estas pessoas de ter uma vida melhor, com mais conforto. Só não ficam as que estão em área de risco”, afirma o diretor de regularização fundiária da Cohapar, Nelson Cordeiro Justus. Um levantamento ainda será feito pela Cohapar para apontar quais são as ocupações irregulares que existem no estado. “Já existia um diagnóstico antes, mas eram dados soltos, que não seguiam os mesmos critérios. Queremos agrupar informações de mesmo valor para ver como agiremos”, conta.
Maus exemplos
Só no município de Conselheiro Mairinck, no Norte Pioneiro do Paraná, que tem 3,6 mil habitantes, 80% da área urbana é ocupada irregularmente, segundo Justus. “As pessoas foram construindo e nunca se preocuparam em registrar os imóveis. É um prejuízo para fins de herança, para adquirir financiamentos. Estu­­­damos com a Anoreg [Associação dos Registradores do Paraná] como conseguir uma custa judicial diferenciada para regularizar a área toda”, afirma Justus. Na região metropolitana de São Paulo, de acordo com a arquiteta Maria Lúcia, estima-se que 40% das residências estejam em áreas irregulares.
A Companhia de Habitação de Curitiba (Cohab) tem uma realidade um pouco melhor: entregou, nos últimos dez anos, 7.880 títulos para quem estava irregular e não vivia em área de risco. Mas ainda há muito para ser feito. Só no Chapinhal, que fica dentro do bairro Sítio Cercado, onde Joelma mora, existem 700 famílias aguardando a regularização. “A capital paranaense sempre investiu nas áreas de ocupação irregular e levou algum tipo de infraestrutura a essas famílias. O processo, contudo, é burocrático porque envolve questões de ordem documental”, explica o coordenador de projetos especiais da Cohab, Maurício Aurélio Becker. Uma das medidas adotada pela prefeitura de Curitiba para agilizar o processo foi, desde 2007, consentir o perdão da dívida de IPTU para os lotes ocupados irregularmente. Como as pessoas não eram proprietárias, não pagavam a taxa e o montante onerava ainda mais o processo de regularização.
Segundo pesquisa do IBGE, apenas 800 cidades declararam ter instituído programa ou plano de regularização fundiária, ou 14% dos 5.565 municípios brasileiros. “A regularização fundiária não estava dentro da agenda nacional, o que começou só nos últimos oito anos, com a criação do Ministério das Cidades”, afirma Ana Paula. O número de processos de regularização iniciados no país nos últimos seis anos é grande: 1,9 milhão. “Eles não avançaram porque o trâmite final é complicado. As amarras legais foram destravadas apenas em 2009 [com a Lei 11.977]”. Antes disso, por exemplo, para regularizar uma área era necessário que ela tivesse um determinado tamanho padrão. “Agora podemos olhar para a realidade de cada comunidade e aprovar.”

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