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terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Ex-moradores de rua viram fotógrafos e retratam São Paulo em exposição


As 40 fotos da exposição Eco da Ocas serão expostas a partir desta terça (5) na Livraria Bookstore, zona central da cidade

Davi Lira - O Estado de S. Paulo



Ele queria ter um olhar só dele. Uma visão de mundo que pudesse ser registrada e transmitida para os demais. Foi com essa motivação que o ex-morador de rua Gerson Roberto, de 45 anos, resolveu participar da oficina fotográfica promovida pela Ponto Cultural Ocas, localizado no Brás, zona leste de São Paulo.
A oficina funcionava com turmas trimestrais desde o segundo semestre de 2011 até final de 2012 - Joelia Cavalcante/Divulgação
Joelia Cavalcante/Divulgação
A oficina funcionava com turmas trimestrais desde o segundo semestre de 2011 até final de 2012


Finalizada no final de 2012, depois de quase um ano de curso, a oficina foi capaz de revelar não apenas um, mas cerca de 30 novos fotógrafos, que assim como ele, conseguiram registrar uma São Paulo bem particular. O apanhado final dos trabalhos resultou numa seleção de 40 fotos que serão apresentadas na exposição Ecos da Ocas a partir desta terça-feira, 5, às 19h na Livraria Bookstore, localizada na Rua Bento Freitas, 314, Vila Buarque, zona central da capital.

"Os participantes já estão acostumados com a cidade, as ruas e o cotidiano de São Paulo, até porque vários dos integrantes da oficina já moravam na rua, mas através da fotografia eles passaram a perceber esse visual de uma forma mais crítica", diz o fotógrafo e arquiteto Lucas Barros, professor voluntário responsável pela oficina de fotografia.

E o resultado final dos trabalhos não impressionou apenas o professor, surpreendeu a todos os participantes. "Eu nunca tinha pego um equipamento para fazer foto. Com a oficina, aprendi a perceber que a fotografia é capaz de levar as pessoas a vários lugares, ela convida a visitarmos o mundo de acordo com a nossa visão", diz Gerson, atualmente morando em albergues.

Outros ex-moradores de rua e ex-dependentes químicos, também participaram da oficina juntamente com outras pessoas, de enfermeiros a arquitetos, a maioria moradores da região do Brás. "A mistura é proposital, com isso a enfermeira perde preconceito com o morador de rua. E o morador de rua não se sente renegado. Acaba rolando um entrosamento entre eles", diz Barros.

O resultado final da iniciativa, que conta com a parceria da Pinacoteca do Estado de São Paulo e do Instituto Pró-Diversidade, poderá ser conferido até o dia 9 de março.



Oficina de texto


A busca da valorização da dignidade de ex-moradores de ruas também foi aprofundada através de uma outra oficina, a de produção textual. Focada na criação de poesias, ela foi realizada de julho a dezembro de 2012 e também contou com cerca de 30 integrantes, em sua maioria ex-moradores de ruas, sem tetos e moradores de albergues. Os trabalhos do grupo também estarão apresentadas na exposição Ecos da Ocas.

"No primeiro momento, eles estavam desconfiados, mas depois eles se abriram completamente. Percebemos com a oficina que não é apenas as pessoas que têm medo dos moradores de rua, o medo deles da sociedade tem a mesma proporção", afirma Péricles Formigoni, professor da oficina de poesia e criação de texto.

Com o final da oficina, um dos participantes tem até uma lição de todo o ensinamento compartilhado pelo grupo. "Quanto mais conhecimento as pessoas têm de nós, mais se diminui o preconceito", diz Paulo Sérgio, de 38 anos, conhecido como Jamaica.

"É importante que as pessoas consigam enxergar as ruas sob uma nova forma, e repensar a cidade e a população de rua ou em vulnerabilidade social de uma maneira mais humanizada e social", pontua Formigoni.

No última dia da exposição, está programado o lançamento do livro sobre a história de 10 anos da Ong Ocas, conhecida por oferecer oportunidades de trabalho para moradores de ruas com a venda de revistas.

Poesia


Confira um dos textos que estarão na exposição

Qual é o Caso? 
Descaso da Sociedade!
Pelas ruas sujas e escuras do centro, as pessoas vivem, sobrevivem, comem, defecam, dormem e se consomem.
Descaso da Sociedade!
Mas isto não é o caso, o caso é que na rua existe poesia viva,
da vida em movimento
Nos repentistas da praça, nas estatuas vivas de rua a fazer reverência, no teatro de rua... todos somos atores?
O grande circo de rua com suas atrações!
A cidade é diversa!
E na adversidade... o descaso da Sociedade!
Mas eu prefiro ver a arte, na rua somos todos artistas!
Somos obras inacabadas de Deus
a sobreviver...
ora nos cantos... o absurdo!
ora na luz do Sol... o improvável!
Somos poesia viva!
Todo morador de rua é uma expressão de arte,
rostos marcados pintados como um quadro,
mágicos que vivem a beira da cidade, da civilidade,
da inocência, da decadência, da demência, do descaso...
E o caso é que existe
Mesmo que de uma forma inexplicável
intensa, inacadêmica e viva
Num descaso da Sociedade
É o morador de rua que ri
E faz descaso da Sociedade!


(Tula Pilar e Péricles Formigoni) 

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