por Marcelo Kimati (*) no FalaRioGrande
Meu amigo Ion convidou-me para continuar escrevendo, à distância, para o Falariogrande. O motivo é de haver certa universalidade nas questões relacionadas à saúde no âmbito do SUS e, neste caso, geografia é contexto, é história. Na medida em que o sistema é um só, pensar comparativamente é revelador. Pensar Natal então ajuda a compreender outros locais (estou em Curitiba). E curiosamente trabalhamos em áreas semelhantes; mundo pequeno.
Em Curitiba, a proposta é criar um departamento que trate da composição de redes de atenção. Este vem sendo um desafio de inovação que procura dar ao cuidado em saúde uma dimensão sistêmica, que articula a clínica aos dispositivos de assistência e sua organização em rede. Tratando deste modo, parece técnico e descolado da realidade, mas não é, e pensar nestes conceitos ajuda a retomar a discussão da relação entre Estado e sociedade a partir da saúde coletiva. O contraponto das duas experiências mais recentes, em Natal e agora no sul me tem feito pensar muito sobre o conceito de redes. Por ser antropólogo, esta reflexão às vezes foge da saúde pública.
Uma rede de saúde tem aproximações e distanciamentos de uma rede de relações sociais. Aproxima-se na medida em que ambas baseiam-se em relações institucionais ou pessoais, onde existem afetos envolvidos e na qual se desenvolvem papéis. Mas afastam-se numa dimensão pragmática, em que, ao contrário de uma rede de relações sociais, a de saúde procura promover equidade. Redes de relações afetivas podem ter a potência de tornar o cotidiano melhor, mas não têm a totalidade de promover equidade. Esta totalidade, que define rede como um sistema público e voltado para um objetivo, insere a rede de saúde no âmbito do Estado.
Há um erro comum em confundir as duas dimensões- redes sociais e rede de saúde. Ouvi muitos trabalhadores de saúde dizerem que “fazem rede”. Isto é bobagem. Profissionais do SUS podem estabelecer relações privilegiadas que facilitam acesso, mas não há como, através de relações pessoais, organizar o sistema. Esta é uma forma demagógica e personalista de criar espaços de exclusão (ou inclusão privilegiada)- e esta confusão eu pude verificar diversas vezes em Natal. Criar uma rede de relações pessoais e de governabilidade própria num sistema não promove equidade, mas mina a ação pública e promove privilégio.
Entretanto, a proximidade das relações sociais e de saúde é fundamental quando entendemos que esta última tem uma dimensão afetiva, e isso é impossível ignorar. O chamado “comprometimento” de trabalhadores de saúde seguramente não garante que uma rede de atenção se forme, mas é fundamental para a composição de uma rede solidária e que, numa dimensão pragmática, apresente resultados (diminuição da pobreza, aumento da expectativa de vida, diminuição da mortalidade infantil, etc). Assim, as pactuações são fundamentais para o exercício da gestão e formação de redes. Exemplo disso são os frequentes retrocessos que ocorrem após a troca de gestões, muitos decorrentes de rupturas que promove a alternância de poder. Em alguns lugares a transição tem um caráter mais disruptivo que em outros, especialmente quando acontecem no âmbito de disputas personalistas e numa cultura de retaliação.
Em meu contraponto agora curitibano, atuo num sistema complexo, amplo, diversificado, com uma profunda inserção do Estado nas ações de saúde. Entretanto, com uma baixa articulação no interior do sistema e, salvo algumas exceções, sem dispositivos que garantam a complementaridade dos espaços de cuidado. Em redes desarticuladas, em que os caminhos são muito mais paralelos do que complementares, aparece um Estado que faz muitas ofertas a partir de prestadores. Neste cenário, não há debate e os cuidadores não se apropriam nem negociam seus papéis. As instâncias neste caso se sobrepõem, não se somam muitas vezes. O exemplo clássico são as famosas guias de referência e contra referência, que levam os usuários do SUS de um lugar para outro do sistema, sem que se pactue o papel de cada instância. O Estado, neste caso, pensa ofertas de forma vertical. Oferece muito, sem saber ouvir o que se pede.
Acredito que para que este sistema de Curitiba se torne uma rede, tem de haver uma injeção de afeto. Acredito que dotar as pessoas de papéis no sistema, de forma que entendam sua totalidade, tornará possível que se encantem pelo que fazem. O encantamento é fundamental. Temos promovido e instituído muitos espaços de encontro e pactuação que recolocam o trabalhador no processo. Neste processo, a surpresa de se tornarem protagonistas se vê nos olhos de todos. Surpresa por encontrarem parceiros, verem a gestão como parceira (muitas vezes o próprio secretário participa destes encontros). Quando percebo este movimento então encantamento é mútuo. E, feliz, percebo este meu afeto como constituinte do processo.
(*) Marcelo Kimati é médico, psiquiatra, foi coordenador adjunto de Saúde Mental no Ministério da Saúde e é o coordenador de Redes Assistenciais da SMS de Curitiba.
Parabéns, texto sensível, contextualizado, atualizado e que demonstra caminhos interessantes.
ResponderExcluirRedes de Atenção erigidas sob a batuta de consultorias à distância não podem dar certo e criamos uma colcha de retalhos onde as diversas instâncias do que deveria ser uma rede integrada de cuidados em saúde pouco se conhecem, não se complementam e possuem objetivos, não raras vezes, diversos e conflitantes.
Antonio C Nascimento (SMS Ctba)