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sábado, 16 de fevereiro de 2013

Profissão: sanitarista


na Revista Radis 

Formação, carreira e profissão. O subtítulo da mesa-redonda Graduação em Saúde Coletiva, realizada no Centro de Eventos Plaza São Rafael, já predizia quais seriam as palavras mais pronunciadas entre os cerca de 200 presentes, a maioria estudantes, que ocuparam a plateia. Eles demonstraram entusiasmo e até uma dose de idealismo, necessários aos que desejam ser sanitaristas, mas também quiseram compartilhar preocupações e esclarecer muitas dúvidas, com os especialistas que compunham a mesa.  

Existem no país 13 cursos de graduação, e as duas primeiras turmas já haviam colado grau até o momento da realização do congresso, uma da Universidade de Brasília (UnB) e outra da Universidade Federal do Acre (Ufac). Outras concluíram o curso no final de 2012. 
 

Profissão, não ‘pós-profissão’

A graduação não substitui as especializações; ajuda a criar um campo de saber específico, ressaltaram docentes e pesquisadores presentes ao debate. “São objetivos distintos. A graduação forma profissionais, sanitaristas, e a pós-graduação forma pesquisadores”, definiu Maria Amélia Veras, representante do Fórum de Pós-Graduação na área.  Jairnilson Paim, professor da Universidade Federal da Bahia (UFBa), relembrou que o debate sobre a especificidade da graduação já vem acontecendo há uma década. Hoje, segundo ele, existe razoável consenso. “Faz parte da Saúde Coletiva a dimensão política. Essa é a diferença fundamental entre Saúde Coletiva e áreas correlatas como Saúde Pública e Medicina Preventiva. Já foi construída a delimitação teórico-conceitual e epistemológica da Saúde Coletiva, e a crítica é vital para o campo”, afirmou. 

“Há uma convergência no marco teórico conceitual: formar um profissional crítico, interdisciplinar, reflexivo, voltado para o sistema público”, concordou Miriam Ventura da Silva, da UFRJ. “É uma profissão e não uma pós-profissão”, explicou Miriam, para quem o desafio agora é pedagógico. “O referencial curricular, a formação de novos docentes, a necessidade de haver disciplinas integradoras e atividades extracurriculares”, listou. As atividades de ensino e pesquisa no âmbito privado também se fazem necessárias, ressaltou.  “Além dos conteúdos programáticos mínimos, é importante agregar autonomia aos cursos e fundar o novo perfil: a profissão sanitarista”. 

Miriam lembrou ainda que o graduado em Saúde Coletiva pode escolher cursar pós e especialização em diferentes áreas, como Epidemiologia, Saúde Ambiental etc. “Estamos vivendo um momento de especialização, a busca por especialistas. Pode parecer uma fragmentação, mas isso demonstra a conformação de um campo”, reforçou. 
 

Reflorescimento

Karina Cordeiro, aluna de graduação da UFBa e representante da Coordenação Nacional dos Estudantes de Saúde Coletiva (Conesc), falou com orgulho da importância da formação de recursos humanos capazes de formular políticas públicas que promovam saúde e fortaleçam o SUS. “Alguns usam a expressão novos sanitaristas? O sanitarista que vem da graduação apenas trilha um caminho diferenciado. O que nos motiva é o desejo de modificar a realidade. Não é fácil construir uma coletividade. Estamos colocando em novos termos a construção da identidade. A formação, carreira, profissão, tudo isso está em curso no momento”, resumiu. 

Jairnilson Paim considerou que a criação das graduações trouxe vitalidade acadêmica e política. “A vinda de novos atores, gestores, alunos, coordenadores, permite um reflorescimento, não só do SUS, mas da Reforma Sanitária brasileira. Nos fóruns e outros espaços de interlocução, os alunos têm demonstrado grande vitalidade e energia. O momento é de cuidado para que não se perca a especificidade do campo. Não é para se fazer mais do mesmo, se não, não valeria a pena tanta luta”, disse.  

Maria Amélia também alertou para a necessidade de se preservar o espaço da Saúde Coletiva dentro da grade curricular de cursos e carreiras. “Não devemos descuidar”, afirmou. No âmbito das pós-graduações, ela fez um alerta também sobre a redução “ao quase desaparecimento” da residência médica em Saúde Coletiva e Medicina Preventiva. “São diferentes dos atuais programas de Saúde da Família e Comunidade”, ressaltou, enfatizando, mais uma vez, a dimensão política. 

Apesar de, para os integrantes da mesa, o balanço desses primeiros anos dos cursos de graduação ser positivo, os primeiros formandos e os estudantes mostraram ter muitas dúvidas e preocupações. O reconhecimento e a regulamentação da carreira vêm tirando o sono dos primeiros graduados, uma vez que, ao tentar se inscrever para concursos públicos no âmbito do SUS, eles vêm esbarrando em editais de seleção que exigem inscrições em conselhos corporativos (como o Coren, de enfermagem, e o CRMV, de Medicina Veterinária etc). 
 

Aflição

“Até editais para pós-graduações muitas vezes exigem inscrições em conselhos corporativos”, afirmou Laís Relvas, estudante do oitavo período, na UFRJ. Da plateia, ao final do debate, ela resumiu o que chamou de “aflição dos estudantes”. “A visão que temos é que a saúde coletiva é um movimento social. Mas precisamos resolver essas questões práticas. Turmas já se formaram. Estou aconselhando meus colegas a arranjarem bons advogados”, disse. Segundo Laís, os fóruns e encontros de estudantes têm dialogado sobre a questão, e entendem que ter um conselho próprio seria excludente. “Vamos nos preparar para a luta jurídica”, declarou. 

“Para haver regulamentação, vamos ter que inovar. O Estado brasileiro abriu mão de regulamentar muitas das profissões e delegou a função para os conselhos corporativos”, disse Jairnilson, como resposta aos estudantes.

A professora e pesquisadora da UFMG Soraya Belisário, integrante do Núcleo de Educação em Saúde Coletiva (Nescon), apresentou panorama histórico da formação do sanitarista e afirmou que a criação da graduação confere nova face a esse profissional. Conforme relembrou, a formação em saúde pública surgiu como especialização da área médica. Em meados dos anos 1950, quando a Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz) foi fundada, uma escola própria já era reivindicação de décadas e, desde o início, se estruturava de forma multiprofissional. A partir dos anos 80, segundo ela, com a política de descentralização, houve multiplicação de cursos e inflexão política na formação de sanitaristas. “A multiprofissionalidade se incorpora nesse momento crítico do sistema de saúde. Isso vai descaracterizar a profissão como especialidade exclusivamente médica”. Para Soraya, as características principais desse novo perfil profissional são a essência coletiva de seu objeto, o caráter interdisciplinar e multiprofissional e a natureza cooperada do trabalho. 

“Estamos passando por um novo processo de formação, mais diverso. É preciso formar em quantidade suficiente para suprir os quadros de todo o país. É uma ocupação de tempo integral. O que transforma uma ocupação em uma profissão é o movimento de reconhecimento. Hoje, a necessidade social da graduação é advinda da própria consolidação do SUS”, disse. Segundo ela, para que se  obtenha a devida colocação e inserção no mercado dos egressos se faz necessário um movimento junto aos gestores e ao aparelho de Estado pelo reconhecimento. “É uma luta histórica, é preciso muita mobilização e ação política, não só ação no âmbito jurídico”, concluiu.

Da plateia, a professora  Maria Lúcia Magalhães Bosi, da Universidade Federal do Ceará (UFC), pediu a palavra ao final da mesa e, em tom otimista e emocionado comentou: “Participei do Abrascão de 2002, em Brasília, e, lá, a graduação em Saúde Coletiva ainda era uma utopia. Hoje se discute algo que já está concretizado”. E continuou: “A identidade já existe, Já se tem um campo concretamente criado, de uma maneira diversa, inicialmente como pós, até se chegar à graduação. É preciso atentar para a questão da expansão”, destacou Maria Lúcia, que foi a primeira coordenadora do Fórum de Pós-graduações em Saúde Coletiva, formado em 2007, e compôs a comissão inicial de criação dos cursos de graduação da UFRJ em 2001. 

Em entrevista à Radis após o debate, Maria Lúcia afirmou que vê com preocupação a possibilidade de uma expansão rápida dos cursos de Saúde Coletiva, por efeito de indução do programa Reuni, do Governo Federal. “Hoje, temos uma dezena de cursos de graduação. Existem cerca de 65 programas de pós-graduação na área no país. O recurso [promovido pelo Reuni] tem potencial para ser um impulso de criação de novos cursos, até de uma forma apressada. Em outras áreas, como Nutrição, existem até 450 cursos em um único estado. O desafio é a expansão com qualidade”, observou, acrescentando, no entanto, que, para que haja reconhecimento da profissão, a expressão numérica é positiva”.

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