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segunda-feira, 24 de março de 2014

Meio século depois, Brasil começa a reverter desigualdade econômica da ditadura

País retorna ao nível de concentração de renda dos anos 60, um dos mais baixos da História


por Cássia Almeida (Email) e Lucianne Carneiro (Email) no Globo
 
RIO - Demorou 50 anos para o Brasil se recuperar do estrago que a política de arrocho salarial do regime militar e a inflação fizeram na distribuição de renda brasileira. O Índice de Gini, que mostra o nível da concentração de renda no país e que, quanto mais perto de zero, mais igualitária é a sociedade, voltou atualmente aos 0,500 nos rendimentos de todos os trabalhadores, o mesmo índice de 1960 captado pelo Censo Demográfico. Em 1970, a taxa já tinha subido para 0,56; em 1980 para 0,59; e em 1991 para 0,63. A queda só começou a acontecer sistematicamente no Século XXI. 


A chaga da desigualdade manchava o Milagre Econômico. O crescimento do país de dois dígitos foi posto em questão no início dos anos 1970 por Robert McNamara, então presidente do Banco Mundial. Ele citava o artigo do economista Albert Fishlow, de 1972, professor emérito da Universidade de Columbia, que constatava esse salto na direção da concentração de renda. Era o período que a repressão do regime militar alcançava seu auge. Além da repressão, na política econômica a fórmula de reajuste de salários embutia uma perda. Corrigia-se o salário real médio dos últimos 24 meses, somava-se taxa de produtividade e uma parte da expectativa de inflação. Só que as previsões sempre eram bem menores que a subida real dos preços. A fórmula ajudou a segurar a inflação.

— Depois do artigo, outros economistas tentaram seguir essa informação sobre salário. Surgiu o interesse sobre o problema. Saíram livros, artigos, estudos. Delfim Netto (ministro da Fazenda na época) pegou a ideia de que era necessário crescer para poder distribuir. No Brasil, apesar da censura à imprensa, houve esse debate. Hoje há um reconhecimento generalizado sobre a melhora na distribuição de renda — conta Fishlow.

Educação, outro fator determinante

Na mesma época, o doutor em Economia Agrária Rodolfo Hoffmann fazia a mesma constatação:

— Meu trabalho foi publicado na Revista de Administração de Empresas. Fishlow publicou na “American Economic Review”. Todos nós deduzimos, matematicamente, que (o aumento da concentração) tinha a ver com a ditadura. Fiquei preso em Piracicaba. Era o único estudante preso, os outros eram lideranças sindicais. Isso não afetou a distribuição de renda? Diminuiu o poder de barganha do trabalhador. O arrocho salarial certamente contribuiu.

O ex-presidente do Banco Central Carlos Langoni, na época recém-chegado do doutorado na Universidade de Chicago, diz que o arrocho salarial afetou a desigualdade, mas aponta outro fator determinante: a falta de educação. Em 1960, quase 40% da população de 15 a 69 anos eram analfabetos. A pedido de Delfim Netto, então ministro da Fazenda, o economista fez o estudo depois que as conclusões de Fishlow e Hoffmann vieram à tona.

— Como a economia acelerou seu crescimento, a demanda por mão de obra começou a disparar. Só que a oferta de mão de obra qualificada era pouco elástica, e a disparidade dos salários começou a aumentar. Havia enorme disparidade entre diferentes níveis de educação. Meu estudo deixou claro que a educação era fator preponderante para explicar a piora na distribuição de renda — diz Langoni.

A jornalista María Clara R. M. do Prado, que escreveu artigo recente destacando a recuperação do Gini aos níveis dos anos 1960, atribuiu o aumento da concentração ao arrocho salarial e à inflação. O salário dos 10% mais ricos, que era 34 vezes maior que o dos 10% mais pobres, pulou para 40 vezes mais dez anos depois.

— Sem dúvida, foi o arrocho salarial. A política econômica na ditadura, pelo menos até meados dos anos 70, foi implementada com o claro objetivo de estimular o crescimento. Mão de obra barata era parte importante da equação porque garantia custo baixo para investidores. O mínimo sofreu expressiva redução real, numa política que deliberadamente visava a beneficiar a atividade empresarial.

Mínimo menor que em 50

O salário mínimo ainda não se recuperou. O valor de R$ 724 ainda é menor que o do início de 1964, que ultrapassava mil reais, e do pico dos anos 1950, de acordo com levantamento feito pela professora da UFRJ Lena Lavinas:

— Em fevereiro de 1964, João Goulart dá um forte aumento para o mínimo. Mas ainda estamos recuperando valores dos anos 1950. Estamos hoje perto dos de 1962. Não estamos avançando, estamos ainda recuperação.

Segundo Hoffmann, a abertura democrática mostra esses efeitos paulatinos sobre a distribuição, que ficam mais fortes depois de 2000:

— Não foram só as eleições gerais. Começa-se a mexer na distribuição de renda, a proteger os salários mais baixos, cria-se bolsa-escola, depois o Bolsa Família, o salário mínimo começa a subir em 1995. A mudança política reverteu o quadro.

O economista Edmar Bacha diz que não se pode atribuir a desigualdade de renda no país ao regime militar, mas reconhece que apenas recentemente retomamos o índice de Gini que tínhamos em 1960. Ele afirma que 70% do crescimento da renda entre 1960 e 1970 foram apropriados pelos 10% mais ricos da população:

— O período militar apenas agravou (a desigualdade). O Gini hoje no Brasil ainda é alto, está entre os dez mais altos do mundo. 

Especialista em mercado de trabalho, Lauro Ramos, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), lembra que os preços relativos da força de trabalho na época perderam para todos os outros fatores da economia:

— Salário era o único ativo da camada mais baixa na estrutura de renda.O salário mínimo foi o instrumento. A indexação funcionava com múltiplos do mínimo. Segurava o salário mínimo, segurava todo mundo.

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