na FSP
O eminente jurista Ives Gandra acusa Cuba e o Brasil de serem responsáveis pela condição que classifica como de escravatura do contrato que rege o programa do governo federal Mais Médicos ("O neoescravagismo cubano", 17/2).
Sua argumentação exclusivamente burocrática ignora as condições em que Cuba se encontra. Para entendermos a realidade daquele país, comecemos por uma analogia.
Quando um país é ameaçado, o seu governo atribui a um grupo de cidadãos, voluntária ou compulsoriamente, a missão de defendê-lo. Essa é uma prática universal.
Com frequência, os salários desses soldados são insignificantes. Não obstante, se qualquer um se recusar a servir seu país, será considerado um criminoso.
Há mais de 50 anos, os Estados Unidos impuseram drásticas sanções econômicas contra Cuba, resultando na extrema pobreza daquele povo.
Sua principal fonte de renda de então, a indústria de açúcar, perdeu competitividade e hoje está em frangalhos.
Para sobreviver e assegurar insumos vitais, tais como remédios, certos alimentos, combustíveis etc., conta Cuba quase que exclusivamente com a exportação de tabaco (charutos), rum e, intermitentemente, dos serviços prestados pelos seus médicos no exterior.
Podemos imaginar o quanto de renúncia do povo de um país pobre como Cuba significa custear a formação desses médicos.
Um contrato como esse que Cuba assinou com o Brasil não serve apenas para reduzir a miséria das famílias dos participantes do programa Mais Médicos, mas antes de tudo serve para garantir a sobrevivência de centenas de milhares de indivíduos daquele país.
Pergunto àqueles que argumentarem que os recursos provenientes do programa Mais Médicos vão para o bolso dos "opressores", baseados exclusivamente em hipóteses, sem evidências concretas, se sua atitude não poderia ser enquadrada naquilo que os juristas chamam de difamação.
Se meia dúzia de médicos cubanos oportunistas se valeu desse subterfúgio para se refastelar nas praias da rica Miami, às custas de um programa ignóbil da potência americana, não deveríamos enaltecê-la, mas deplorá-la, pois apenas 1 em 1.000 traiu o seu compromisso com o Brasil e com o seu povo.
Quantos na sua própria família e em seu país vão sofrer por causa da fuga de cada inadimplente?
Apoiar esses poucos infensos não é apenas uma falta de percepção da questão social envolvida, mas é, antes de tudo, falta de humanidade.
Reduzir a questão do Mais Médicos a uma infringência burocrática ou, pior ainda, a um conflito partidário ou ideológico –o que certamente não é o caso do jurista– é uma indignidade.
ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE, 82, físico, é professor emérito da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e membro do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia e do Conselho Editorial da Folha
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