Todos os perigos parecem ainda morar no corpo da mulher, inclusive, de várias maneiras, para os políticos brasileiros em campanha
Aconteceu de novo. E logo cedo. Depois de assistir à missa de Páscoa
no Santuário Nacional de Aparecida, no interior de São Paulo, Eduardo
Campos, pré-candidato à presidência da República pelo PSB, foi
confrontado com a pergunta do aborto. Contra ou favor? Era o colarinho
do cardeal Dom Raymundo Damasceno, presidente da Conferência Nacional
dos Bispos do Brasil (CNBB), ao seu lado, que estava justo, mas foi Campos que espremeu a seguinte resposta:
“Acho que a legislação brasileira é adequada e, como cidadão, minha
posição é a de todos. Não conheço ninguém que seja a favor do aborto”. E
acrescentou: “Como cristão, cidadão e pai de cinco filhos, minha vida
já responde à pergunta”. Dias depois, Campos afirmou, durante uma
coletiva de imprensa, que seu “ponto de vista é muito claro”, mas que
“respeita o ponto de vista dos outros”. Disse ainda que sua posição
sobre o aborto é “pública”, porque já foi candidato outras vezes, e
sugeriu aos jornalistas que dessem “um Google” para buscar a resposta, o
que é um tanto extraordinário.
Nos últimos anos, o tema se tornou uma moeda de barganha eleitoral.
Todos os dias mulheres de todas as religiões fazem abortos no Brasil.
Aos 40 anos, uma em cada cinco brasileiras já fez aborto. A cada dois
dias uma mulher morre por aborto ilegal. Muitas deixam crianças órfãs,
num ciclo de dor e miséria que mereceria a atenção de qualquer cidadão,
mais ainda de alguém que pleiteia governar o país. Mas a questão do
aborto, de fato, nenhum candidato parece querer discutir com a seriedade
e a honestidade exigidas para algo com tanto impacto sobre o país. O
assunto só aparece como instrumento de chantagem na busca inescrupulosa
por todo o apoio possível, nesse caso o voto religioso. O ex-ministro da
Saúde Alexandre Padilha, pré-candidato do PT ao governo de São Paulo,
foi outro que assistiu à missa de Páscoa em Aparecida.
A cada dois dias uma mulher morre por aborto ilegal. Mas a questão do aborto, de fato, nenhum candidato parece querer discutir com a seriedade e a honestidade exigidas para algo com tanto impacto sobre o país
Está aberta a temporada de beija-anel de bispo e cardeal. Logo, será a
vez dos grandes pastores midiáticos. O Estado é laico, mas as últimas
campanhas mostraram que parte dos candidatos impõe as mãos, rala os
joelhos e rasga princípios no maior número de altares que conseguir. A
transformação de vidas humanas em moeda eleitoral mostra o quanto o
debate político é rebaixado no Brasil. Revela também o quanto o Estado
brasileiro ainda é frágil diante da pressão das religiões. As igrejas
podem defender comportamentos morais para os seus fiéis, mas não impor
suas prescrições ao conjunto dos cidadãos brasileiros. Cabe ao Estado
laico zelar para que os limites não sejam ultrapassados, o que se perde
quando direitos fundamentais viram instrumento de chantagem.
A declaração de Campos – “não conheço ninguém que seja a favor do
aborto” – provocou protestos nas redes sociais. Páginas foram criadas no
Facebook nas quais pessoas se apresentam, ironicamente: “Prazer,
Eduardo Campos, eu sou a favor da descriminalização do aborto e existo”.
A frase usada por Campos é um conhecido truque retórico, como bem aponta a jornalista Carla Rodrigues em seu blog.
Evoca a ideia de que ninguém seria a favor de eliminar embriões como
método contraceptivo. Mas a questão, como Campos sabe muito bem, é ser a
favor das mulheres que fazem aborto, assegurando seu direito de decidir
sobre a própria maternidade e protegendo a sua saúde, para que não
morram em procedimentos clandestinos. O tema que precisa ser enfrentado,
como Campos sabe muito bem, é de como amparar as mulheres que têm
morrido por não serem amparadas – mesmo nos casos em que o aborto já é
permitido no país: risco de morte da mãe, gravidez por estupro, gestação
de feto anencefálico.
A decisão sobre se pode ou não levar adiante uma gravidez é privada,
pertence à cada mulher. É uma escolha íntima, em geral difícil. Essa
decisão individual só assume uma dimensão pública na medida em que o
Estado deixa de assegurar às mulheres os meios para ter sua escolha
respeitada. Assim, a questão do aborto no Brasil, se não diz respeito
apenas à saúde pública, é também de saúde pública. E uma das mais
sérias, já que atinge as brasileiras mais pobres, que arriscam a vida no
banheiro de casa, enquanto as mais ricas interrompem a gestação com
razoável segurança em clínicas privadas. O direito ou não ao aborto no
Brasil, como qualquer um que não é cínico sabe, tanto quanto o direito a
sobreviver ou não a ele, é uma questão de ter ou não dinheiro para
fazê-lo em condições seguras. Só é assim porque barganhar com a vida das
mulheres pobres, que dependem do SUS, continua sendo um esporte
lucrativo, tanto nas eleições quanto nos corredores do Congresso.
Em 2013, grupos evangélicos e também católicos, como o Pró-Vida e
Pró-Família, ameaçaram Dilma Rousseff com a retirada de apoio na
reeleição, alegando que ela estaria, “na prática, legalizando o aborto
no Brasil”. A presidente havia acabado de sancionar sem vetos a lei,
aprovada pela Câmara e pelo Senado, que obriga os hospitais a prestarem
atendimento integral e multidisciplinar às vítimas de violência sexual.
Entre outros direitos, a mulher que sofre estupro pode obter na rede
pública a chamada pílula do dia seguinte, para não correr o risco de
engravidar do estuprador. Era sobre isso que grupos religiosos radicais
protestavam.
A decisão sobre se pode ou não levar adiante uma gravidez é privada, pertence à cada mulher. É uma escolha íntima, em geral difícil. Essa decisão individual só assume uma dimensão pública na medida em que o Estado deixa de assegurar às mulheres os meios para ter sua escolha respeitada
Na época, escrevi um artigo intitulado “O aborto e a má fé”, em que
apontava para a possibilidade de que o nível da campanha de 2014 pudesse
ser ainda mais baixo que o de 2010. É curioso, mas também triste, que a
largada tenha sido dada por quem se apresenta como protagonista de uma
“nova política”, e também como “socialista”. Novo, de fato, seria
enfrentar a questão do aborto com a profundidade que o tema exige. E bem
longe da simplificação de plebiscito, defendida na campanha anterior
por Marina Silva (Rede), a anunciada vice de Eduardo Campos nas eleições
presidenciais desse ano, que é evangélica.
Propor que o aborto seja matéria para um plebiscito é usar de má fé,
ao tentar dar uma aparência democrática a um pensamento autoritário.
Cabe à democracia respeitar a vontade da maioria, ao, por exemplo,
eleger um presidente da República, governadores e legisladores, mas
também cabe à democracia assegurar os direitos das minorias. Questões de
ética privada, como o aborto e a união de pessoas do mesmo sexo, não
são matérias de plebiscito. Referem-se à garantia dos direitos
fundamentais de cada cidadão. Num debate político é menos importante
saber o que cada candidato fará diante de uma escolha de ordem moral e
privada em suas próprias vidas, do que saber claramente como vão cuidar
das brasileiras que morrem porque o aborto é criminalizado no Brasil. A
crença ou não crença religiosa de cada candidato só diz respeito ao
eleitor se essa crença ou não crença interferir na garantia dos direitos
fundamentais de quem fará escolhas diferentes no âmbito da sua vida
privada. Homens ou mulheres públicos governam para assegurar os direitos
fundamentais de todos – os que fariam a mesma escolha moral que eles e
também os que não fariam. Ao transformar o aborto em moeda eleitoral
para faturar o voto religioso, a democracia escorre para o esgoto.
Nas primeiras campanhas eleitorais após a ditadura, os candidatos
costumavam evitar abordar o tema do aborto. Aos poucos, ao perceber o
potencial eleitoral do crescimento dos evangélicos no Brasil, alguns
oportunistas começaram a perceber que jogar o aborto na mídia e no
palanque poderia ser conveniente. Tanto para conquistar o voto religioso
quanto para derrubar opositores (cada vez mais raros) com escrúpulos de
se tornar coroinhas de última hora. No período recente, ninguém fez
isso com maior truculência do que José Serra (PSDB), na campanha
eleitoral de 2010.
Para lembrar, porque é importante manter a memória viva. No final do
primeiro turno de 2010, a internet e as ruas foram tomadas por uma
campanha anônima, na qual se afirmava que Dilma era “abortista” e
“assassina de fetos”. Dilma começou a perder votos entre os evangélicos e
parte dos bispos e padres católicos exortou os fiéis a não votar nela.
Serra empenhou-se em tirar proveito do ataque vindo das catacumbas,
determinando o rumo da campanha dali em diante. E Dilma correu a buscar o
apoio de religiosos, acabando por escrever uma carta declarando-se
“pessoalmente contra o aborto”. Nela, comprometia-se, em caso de vencer a
eleição, a não propor nenhuma medida para alterar a legislação sobre o
tema. Logo, tanto Serra quanto Dilma despontaram no espetáculo
eleitoreiro como devotos tomados por um fervor religioso até então
desconhecido de quem acompanhava a sua trajetória. Serra apregoou que
tinha “Deus no peito”. Dilma agradeceu “a Deus pela dupla graça” e,
usando o mote dos grupos mais radicais do catolicismo, afirmou que fazia
“uma campanha, antes de tudo, em defesa da vida”.
Questões de ética privada, como o aborto e a união de pessoas do mesmo sexo, não são matérias de plebiscito. Referem-se à garantia dos direitos fundamentais de cada cidadão
Nesse sentido, talvez a campanha de 2010 tenha sido o momento mais
baixo desde a redemocratização do país. O que nela se passou escancarou
as portas para todas as leviandades e recuos que vieram depois, nos
temas relativos à saúde da mulher e ao respeito à diversidade sexual.
Basta lembrar, entre outros, do cancelamento do kit anti-homofobia, que
seria usado nas escolas públicas, e a retirada do ar do vídeo de uma
campanha de prevenção a doenças sexualmente transmissíveis, na qual uma
prostituta dizia ser “feliz”. O fato de uma mulher ser feliz e ser
prostituta parece ter ferido mais a sensibilidade dos hipócritas de
ocasião (e do governo) do que pessoas adoecerem ou mesmo perderem a vida
por doenças evitáveis.
Os protagonistas desse rebaixamento do debate político jamais devem
ser esquecidos. A coerência dos candidatos, assim como seu comportamento
diante de temas espinhosos, mas de extrema importância, revelam como
cada um deles vai atuar quando tiver o poder. Se a campanha eleitoral de
2014 superar a de 2010, na chantagem com temas que dizem respeito a
vidas humanas – e isso num momento em que os brasileiros nas ruas exigem
maior participação na política e maior responsabilidade daqueles que
foram eleitos para cargos públicos – será assombroso. Quando Eduardo
Campos afirma que não conhece “ninguém que seja a favor do aborto”,
apenas reforça a suposição de que, em vez de uma alternativa à “velha
política”, como seus marqueteiros se esforçam para difundir, ele seria
mais um representante da política viciada e permeável às chantagens de
ocasião.
A pergunta é por que, ainda hoje, no século 21, é tão crucial manter o controle sobre o corpo feminino
É importante pensar por que o aborto, mais uma vez, ameaça despontar
numa eleição presidencial como instrumento de barganha para o apoio e o
voto religioso – e não outro dos temas morais. Por que, de novo, é do
corpo da mulher que se trata. Por que, outra vez, a disputa rasteira se
dá sobre a topografia feminina. O que isso oculta? O que revela? A
questão talvez seja menos o aborto, mas sim em que medida a religião
pode controlar, via Estado, a reprodução das mulheres – e,
especialmente, a sexualidade das mulheres. A pergunta é por que, ainda
hoje, no século 21, é tão crucial manter o controle sobre o corpo
feminino.
Parece que a visão medieval que localiza no corpo das mulheres a
morada de todos os perigos continua atual. Inclusive para políticos em
campanha. Enquanto isso, mulheres reais morrem porque, quem tem o dever
de debater e promover políticas públicas para assegurar seus direitos
fundamentais, chantageia com suas vidas. Cabe a cada cidadão impedir que
a eleição de 2014 se torne uma trágica repetição da indignidade
testemunhada em 2010, na qual votos foram negociados sobre cadáveres
femininos.
Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos e do romance Uma Duas. Email:elianebrum.coluna@gmail.com. Twitter: @brumelianebrum
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