Saímos de Alta Floresta por volta das 4:00 h, eu, Claudemir, Acácio e Iroít índio Kayabi designado para piloteiro. Destino : Porto do Meio, a 180 km de Alta Floresta, no Rio São Benedito e de lá ao Teles Pires, na proa de Marowi, aldeia dos Apiakás com pouco mais de 200 pessoas.
O trecho de terra nos custou pouco mais de 5h, com direito a parada em um atoleiro na cabeça de uma ponte de tora : a L 200 escorregou e encavalou no facão, baixinha que é (ah, se fosse o Land ...). Chegando ao Porto de Meio, tiramos sorte grande : dois Kayabis voltavam de barco da caça e nos viram, agilizando nossa chegada à aldeia S. Benedito, pouco mais de 200 m rio abaixo, onde pegaríamos o barco pra descer este rio e depois o Teles Pires até Marowi, lá quando já é quase Tapajós. Previsão: 8 horas de barco com motor 40 e uma hora pra vencer a cachoeira da Rasteira, que deveria ser passada a vau, empurrando o barco.
Cerca de 4h rio abaixo paramos em uma pousada de nome Santa Rosa, com cujo dono fizemos contato em Alta Floresta, conseguindo um apoio para o almoço (em nossas expedições, além do combustível para os barcos, o item que não pode falhar é a boia, pois o Acácio tem uma conexão direta do estômago com o sistema límbico, que regula o humor).
Barriga cheia, voltamos ao rio, que se torna cada vez mais volumoso pelos afluentes que recebe e encarapitado pelo declive. Chegamos pouco depois à Cachoeira da Rasteira, onde o Teles Pires se estreita de cerca de 300 para 100 m de largura. Devido à cheia, foi impossível a travessia a vau: tivemos então que desembarcar na ilha que ladeia a cachoeira e transportar a bagagem por terra, enquanto à Iroít, piloteiro Kayabi, caberia descer de barco a Rasteira que, nesta fase de cheia, se mostra como traiçoeira corredeira. Animado em descer junto de barco, a informação dos índios que ali chegaram pra nos auxiliar : "se desligar o motor, vai pro fundo, morre" com gestos largos das mãos me fez lembrar de minha morena e de nossos 4 filhos: melhor ir por terra com os outros. Iroít, com a Graça de Tupã, a força do quarentão e muita destreza, venceu a Rasteira.
Seguimos viagem, destino Marowi, corredeiras do Teles Pires pela proa, mãos seguras no barco e sinal da cruz. O Teles Pires não é o Xingu, manso que só no seu curso médio, local em que o conhecemos, onde corre suave cortando a planície. Aqui a calha é funda, rio de Planalto, rebojo e mais rebojo, montanhas ao lado, alta floresta.
Oito horas de rio, céu, sol, chuva, e o verde da floresta, muita Samaúma de beira d'água, algumas delas impressionantes, chegamos à aldeia Marowi, lá na pontinha do Mato Grosso, quase Amazonas, quase Pará; Teles Pires quase se abraçando ao Juruena pra formar o Tapajós.
A aldeia na verdade mais parece uma comunidade ribeirinha: casas de madeira em disposição não circular, rostos mestiços, quase não se fala a língua, mas a simplicidade no viver e a proximidade da natureza não pode ter vindo de outra parte: são índios. Os Apiakás, desenhados por Florence na expedição Langsdorf, de 1825 a 1829, deixaram seus traços mais fortes em apenas alguns dos atuais habitantes, e achei interessante conhecer mais um retrato do "Brasil Índio", este Brasil que o Brasil não conhece.
Lá, entre sorrisos simples e olhares tão humanos de gente sofrida, encontrei os médicos cubanos que fui supervisionar: Dra Ileana e seu esposo, Dr Vladimir. À hora que chegamos, sob um sol amazônico, atendiam ambos de jaleco, os rostos molhados de suor, a pele cravejada pelos piuns, fazendo algo que que muito médico não faz: examinado seus pacientes.
As condições do posto de saúde da aldeia, péssimas: atendiam na varanda da construção de madeira e conduziam os pacientes para uma sala quente e mal iluminada, com uma maca enferrujada onde, com atenção e de forma educada, examinavam homens, mulheres e crianças como todo brasileiro deveria ser examinado em um posto de saúde. Sorte grande para os Apiakás: os primeiros médicos que pisavam ali desde a fundação da aldeia, há 13 anos, os tratavam com presteza e humanismo, como toda gente gosta de ser tratada.
Quando vi suas condições de alojamento, ainda mais os admirei: uma barraca montada sobre o chão batido de um dos cômodos do posto de saúde era seu quarto. No posto construído pela própria comunidade, improvisou-se um chuveiro de lata e uma cozinha: a honra de receber pela primeira vez médicos teve uma doce contrapartida, percebida pelos cubanos na singeleza que observaram e me relataram em seu português espanholado ("sí, hay sítios em que nem isso nos dão"). Imediata foi minha reflexão: quantas vezes reclamei por melhores condições de trabalho em meus 20 anos de SUS! Pensei também nos consultórios perfumados de "medicina estética", tão distantes do ser humano. Pensei nos convênios de saúde, tão ávidos em promover a doença para vender o que chama de saúde. Pensei nos estádios da Copa, nos mensalões descobertos e nos incobertos, nas máfias da saúde. Pensei no ser humano, na medicina feita de humanos para humanos, que é como ela nasceu. Pensei, senti, me emocionei, ao ver aqueles humanos ali.
À noite, depois de conversarmos a respeito dos problemas identificados e de ter eu mesmo examinado alguns casos que os colegas cubanos deixaram para discutir comigo, atravessei a aldeia e olhei para cima: o Cruzeiro estava ali, quase ao alcance das mãos. Parei, agradeci em silêncio pelo meu pai, médico e homem simples, que sempre trabalhou para os simples, e também por um senhor de nome José Gabriel, que tive a felicidade de conhecer há 18 anos e que me fez resgatar o simples que havia em mim, plantado por meu pai.
Na manhã seguinte, na reunião que tivemos com a comunidade, expliquei em meio a olhares agradecidos o que era o Programa Mais Médicos, o que fazíamos ali e o que se pretende fazer. As palavras de agradecimento sincero que recebemos, os médicos cubanos e eu, estão registradas aqui no coração.
Despedimo-nos na barranca: tínhamos o Teles Pires e São Benedito para subir, mais 9 horas de rios, corredeiras e floresta. Os cubanos, por sua vez, seriam levados de avião para outra aldeia, ainda mais remota. Os corpos cansados, a pele queimada de sol, a marca dos piuns, o coração leve que só...
Grato aos amigos Acácio e Claudemir por tudo, vcs sabem
Grato ao apoio do amigo Walter, Clóvis da FUNAI, Pousada Santa Rosa e Osnycar que recebemos
Grato ao Dr Reinaldo pela honra em participar do Mais Médicos
Grato aos que leram até aqui
Sempre grato ao Mestre, por tudo isso
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