Médico americano alerta que o atual modelo brasileiro de saúde, focado em especialidades, é inviável financeiramente e não satisfaz população
na Folha de Londrina (dica da Carol Rocha)
Um sistema caro, com pacientes infelizes. Em linhas gerais, esta é a definição do atual sistema de saúde brasileiro (nas redes pública e suplementar) feita pelo médico norte-americano Robert Janett, professor da Harvard Medical School.
Integrante da Cambridge Health Alliance, rede de serviços de saúde, composta por clínicas e hospitais que adotam o sistema de Atenção Primária à Saúde (APS), em Boston, Janett esteve em Londrina no último final de semana para participar do 8º Fórum Anual de Planejamento Estratégico da Unimed Londrina. O médico tem sido a referência técnica da cooperativa médica para implantar projetos-piloto de APS em várias regiões do Brasil. Estudioso do assunto há mais de 30 anos, Janett é taxativo: "Se o sistema não mudar, pode quebrar".
O conceito de APS surgiu no final da década de 1970, como uma diretriz da Organização Mundial da Saúde (OMS). A ideia é oferecer um atendimento focado nas necessidades do paciente, por meio de equipe multidisciplinar, que fica responsável por um grupo de pessoas e o acompanha ao longo de anos, o que resulta, inevitavelmente, em uma relação de amizade e confiança.
O modelo é bem diferente daquele que predomina atualmente no País, onde para cada problema de saúde o indivíduo tem um médico diferente. O resultado são muitas e diferentes prescrições, excesso de exames e relações menos humanizadas entre médicos e pacientes. O Programa Saúde da Família (PSF), implantado pelo Ministério da Saúde em 1994, é reconhecido e elogiado por Janett, mas para o estudioso a falta de investimentos nos profissionais, somada a outras falhas, impede a obtenção de melhores resultados.
Por que o senhor acredita que o modelo de Atenção Primária à Saúde é o melhor?
Os custos de saúde no Brasil estão aumentando em níveis insustentáveis. Um dos motivos é a mudança da epidemiologia da população, que hoje apresenta altas taxas de mortalidade por doenças crônicas, e não apenas doenças agudas, como era no passado. Este é um fenômeno global ligado ao desenvolvimento. Quando o Brasil entrou na época moderna, com mais lucros, a sociedade toda sofreu transformações, mudou a maneira de comer, de se exercitar, levando ao aumento das doenças crônicas. Só que o sistema de saúde foi organizado originalmente para atender doenças infecciosas, acidentes, traumas. Estes problemas continuam existindo, mas o que temos que fazer agora é organizar o atendimento também às doenças crônicas. Outro motivo para o aumento de custos são as falhas nos serviços preventivos e de vigilância à saúde. E se há falhas, vão aparecer doenças que poderiam ser evitadas. Além do trauma para o paciente e sua família, doenças como câncer, diabetes, quando não prevenidas ou controladas, significam gastos que poderiam ser evitados. Com serviços bem organizados, motivados e equipes multidisciplinares, podemos diminuir as complicações, o sofrimento das pessoas e o gasto global com saúde.
Quais são as principais falhas do Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro e do Programa Saúde da Família (PSF), na sua opinião?
Admiro o sistema público de saúde do Brasil. É um dos maiores do mundo em termos de justiça, de cobertura universal e de atendimento às pessoas, independentemente da situação econômica de cada um. O modelo do PSF também é muito bom. Mas eu diria que a primeira falha é a falta de recursos. Um médico do PSF hoje é responsável por cerca de 5 mil pacientes. No modelo que adotamos nos Estados Unidos um médico tem responsabilidade sobre 2 mil pacientes. É impossível dar a mesma qualidade de atendimento com uma agenda tão cheia. Outra falha é não dar opção de escolha ao paciente: o médico é definido por região, por bairro da cidade. Não importa se o paciente não se identifica com este profissional, não tem outra opção. O modelo que propomos é que vários médicos trabalhem na mesma região, dando ao paciente a opção de escolher o melhor médico para ele, de acordo com suas necessidades, personalidade, interesses e emoções, porque cada pessoa é única. A principal mudança no atual modelo deve ser esta: em vez de um sistema centrado no médico, um sistema centrado no paciente. Essa é uma mudança cultural difícil, mas deve ser a meta.
Mas esta mudança geraria um grande impacto, inclusive nos cursos de medicina, que hoje estão adaptados ao modelo centrado em médicos especialistas. O senhor concorda?
Sim, sabemos que não é fácil mudar. Os fatores que provocam as especializações hoje no Brasil são verdadeiros. Mas temos que ter uma visão de futuro, em que a posição do médico de família seja superior, que ele tenha mais prestígio e melhor salário. Porque para o médico, escolher uma especialização que pague 50% mais que o PSF é uma escolha racional. Temos que entender que para melhorar os resultados do sistema de saúde temos que reformar o seu modelo. Mas temos também que andar antes de voar, por isso estamos propondo projetos-piloto, com uma boa base de dados, com indicadores que comprovem os benefícios deste modelo em relação ao anterior. Foi o que fizemos nos Estados Unidos, e com isso a procura por prontos-socorros diminuiu em mais de 30%, a permanência de dias no hospital teve uma queda de mais de 33% e o custo global de saúde diminuiu em mais de 15%. Isto é bastante dinheiro, que pode ser reinvestido na melhoria da assistência.
Além disso, os pacientes ficam mais satisfeitos e os resultados relacionados às doenças crônicas são muito melhores. Nossa taxa de internação por diabetes, por exemplo, diminuiu em 30% com o programa de controle que implantamos. Também caiu nossa taxa de internação por asma. No começo do projeto de atenção primária, o índice de crianças com a doença internadas por ano era de uma a cada 10. Após cinco anos do programa, a taxa de internação é quase zero. Isso porque não estamos mais passivos, esperando os clientes virem às nossas clínicas, temos um programa de busca ativa: mandamos lembretes a eles sobre uso de medicamentos e outros cuidados, identificamos por nosso sistema de informática pacientes que 'estão fora da linha'(que não estão comparecendo às consultas e não estão buscando seus medicamentos nas farmácias, por exemplo). E para pacientes de alto risco enviamos serviços especializados para assistir e coordenar sua participação no programa de saúde. Dados epidemiológicos e econômicos mostraram que 3% da nossa população consumia 50% do gasto médico no país. Essa situação nos levou a trabalhar em dois eixos: em um deles, fazer o que for possível para oferecer à população acima da linha (de risco) vigilância em saúde, prevenção e gestão da doença crônica para que se mantenha sem complicações, por evidência e com confiabilidade. Em outro, para a população abaixo da linha, coordenar os serviços de forma que estas pessoas tenham acesso a serviços de alta complexidade tecnológica, baseados em evidências e ainda com garantia de ser bem tratadas. É maximizar o atendimento aos pacientes de alto risco e oferecer serviços de alta confiabilidade à população mais saudável.
Há quantos anos o modelo de atenção primária foi adotado nos Estados Unidos e qual a sua abrangência hoje no país?
Começamos a adotar o sistema há cinco anos, e neste tempo já obtivemos todos estes resultados positivos citados. Não sei dizer qual a porcentagem da população que já utiliza o modelo de atenção primária, ainda há muitos centros no modelo antigo. O que posso garantir é que trata-se de um modelo inovador.
O senhor acredita que não há outro caminho viável para a saúde, no futuro?
Não tenho dúvidas disso. Porque se continuar no atual sistema, o futuro é cheio de sombras. Os gastos estão subindo, a expectativa de vida dos pacientes está aumentando e eles não estão satisfeitos com o atual sistema. Hoje há duas opções: cortar serviços para controlar os gastos ou aumentar os serviços para diminuir as falhas. Acho que esta última é a escolha óbvia.
Os Estados Unidos espelharam-se em outros modelos para implantar seu próprio sistema de atenção primária?
Conhecemos sistemas implantados em vários países, como Espanha, França, Inglaterra, Suécia, cada um com suas especificidades. O que é certo é que cada sistema que funciona bem tem um modelo forte de atenção primária. Sistemas sem atenção primária forte são fracos.
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